Há uma década, os Racionais lançavam Sobrevivendo no Inferno, seu CD-Manifesto. O rap vale mais que uma metralhadora. Os quatro pretos periféricos demarcaram um território, mostrando que as quebradas são capazes de inverter o jogo, e o ácido da poesia pode corroer o sistema

Uma década se passou e a profecia anunciada pelosRacionais MC’s vem se confirmando a cada ano. Em 1997, Mano Brown, IceBlue, Edy Rock e KL Jay trouxeram ao mundo uma obra que marcou o rapnacional em definitivo e lançou as bases do que, hoje, chamamos deCultura de Periferia. Estou falando do CD Sobrevivendo no Inferno.Esse disco alçou o grupo à condição de maior representante, no Brasil,de um gênero musical que renovou a música no planeta. Pode observar.Quando algum artista quer dar uma roupagem moderna às suas canções, oprodutor bota lá uns scratches, faz uma colagem com letras de rap ou tenta copiar os manos que dominam a composição rimada e ritmada do rythman and poetry.

Mas a qualidade artística de Sobrevivendo no Infernoé apenas um lado desse marco. O CD é um manifesto. Do começo ao fim,canção por canção, os Racionais vão compondo a carta de intenções dogueto. Uma declaração de revolta — revide de quatro sobreviventes. Suasarmas? O rap que vale mais do que uma rajada de metralhadora. Com seu“verso violentamente pacífico” os quatro pretos periféricos demarcaramum território, até então, definido apenas pela concentração da pobreza,violência e descaso das autoridades.

Nesse disco, os Racionais mostraram uma periferiapoderosa, capaz de reverter o jogo. Uma periferia altiva, consciente desua condição social e do quanto lhe foi negado. Um povo que, durantedécadas, foi amontoado nos arrabaldes, volta-se agora contra os que aempurraram pro gueto. “A fúria negra ressuscita outra vez…”, anunciaMano Brown. E vestidos com “as roupas e armas de Jorge”, esses quatrojovens, na faixa dos 27 anos, convocavam, na época, todo povo pobre doBrasil. “Periferia é periferia em qualquer lugar”, dizia Edy Rock eminspirada canção. Estava decretado o orgulho e a exaltação do serperiférico.

Com mais de 1 milhão de discos vendidos oficialmente(e, pelo menos, a mesma quantidade reproduzida, digamos,extra-oficialmente…), esse poderoso manifesto, até hoje, calaprofundamente e ainda vai influenciar multidões. Os Racionais mostraramque a poesia pode corroer o sistema, constranger as elites. Um anodepois de lançar o Sobrevivendo no Inferno, o grupo ganhou o Vídeo Music Award da MTV com o clipe da canção mais famosa do disco — Diário de um Detento.Surpreendendo a todos, ao aparecer para receber o troféu Mano Browndisparou: “dedico este prêmio a minha mãe que me criou lavando muitaroupa suja de playboys como vocês…”.

Não, Mano, o sistema não está sob teus pés. Mas aperiferia tornou-se altiva, admirada, consicente de sua condição e doquanto lhe foi negado

Em uma das faixas do CD, a que mais gosto, Estou ouvindo alguém me chamar,a letra fala de um jovem que se inicia no mundo do crime. Seu batismofoi num assalto a uma butique do Itaim. “Todo mundo pro chão, pro chão,o cofre já estava aberto, o vigia tentou ser mais esperto…”, e por aívai. Em tom reflexivo, vem conclusão dessa parte da história: “Pelaprimeira vez eu vi o sistema aos meus pés, apavorei, desempenho nota10”. Imagino que o Mano Brown e seus amigos, diante daquela platéia debrancos bem-nascidos no evento da MTV, tenham pensado o mesmo. Derepente, diante dele, centenas rapazes e moças de bochecha rosadaaplaudindo-o por ter feito um clipe falando do massacre de 111 presos,quase todos pretos, todos pobres, gente encarada pelo Estado comoentulho. Não, Mano Brown, o sistema ainda não está sob seus pés. Comovocê próprio diz, és um “efeito colateral que seu sistema fez…”. Mas osRacionais abriram um caminho. Como é dito no CD/Manifesto: “eu souapenas um rapaz latino-americano apoiado por mais de 50 mil mano…”.

Penso que a “base social” dos Racionais tenha multiplicado- se pelo menos dez vezes. Depois de Sobrevivendo no Inferno,veio o Ferrés, mostrando que na Favela tem escritor de qualidade.Surgiram o Samba da Vela, o Sarau da Cooperifa e outros tantosmovimentos que engrandecem a periferia. A última canção do discochama-se Salve. Nela, os músicos dos Racionaiscitam mais de 60 quebradas: Jardim Ângela, Jardim Ebrom, Vaz de Lima,Vila Calu, Grajaú, Cidade Tiradentes, São Mateus, Brasilândia etc. Sãoregiões da metrópole paulistana que só apareciam nas páginas policiaise nos registros dos detentos nas delegacias e no extinto Carandiru. Mashoje, caros racionais, graças ao talento e à firmeza ideológica, parausar uma expressão cara ao MST, de artistas como vocês, esses bairrosperiféricos aparecem, cada vez mais, como redutos de uma arte original,bela e comovente.

Não por acaso surgiu a Agenda Cultural da Periferia.O movimento cultural já justifica um Guia próprio. Uma novidade surgidaem 2007 que nos enche de orgulho. De São Mateus, vem o melhor disco desamba do ano com o registro fonográfico do Berço do Samba de São Mateus. Um dos projetos literários mais interessantes do ano é a Coleção Literatura Periférica,da Global Editora, que trouxe, nos três primeiros volumes lançadosneste ano, Sergio Vaz, Sacolinha e Alessandro Buzo. O Sacolinha já foiescolhido para a Jornada Literária de Passo Fundo do ano que vem. O Vazrecebeu proposta para traduzir sua obra na França. O Buzo logo seráassediado por cineastas em busca de uma história original, veloz einstigante. E para 2008 teremos mais.

Dez anos depois, a profecia se cumpre outra vez. Nestegrande ano, o exemplo maior, entre tantos outros, da força da culturasuburbana, foi a realização da Semana de Arte Moderna da Periferia,realizada em novembro, liderada pelo Sarau da Cooperifa. Nesse evento,o povo do gueto mostrou bem o que diz o belo samba interpretado porBeth Carvalho: “da fruta que eles gostam, eu como até o caroço…”. SalveRacionais MC’s. Salve Periferia. Que 2008 tenha muito mais arte. Nãotenho dúvida. Por meio da cultura, pode-se virar o jogo.

Mais

Eleilson Leite é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique. Edições anteriores da coluna:

No meio de uma gente tão modesta
Milhares de pessoas reúnem-se todas as semanas nas quebradas, em tornodas rodas de samba. Filho da dor, mas pai do prazer, o ritmo é o mantosimbólico que anima as comunidades a valorizar o que são, multiplicapertencimentos e sugere ser livre como uma pipa nos céus da perifa

A dor e a delícia de ser negro
Dia da Consciência Negra desencadeia, em São Paulo, semana completa demanifestações artísticas. Nosso roteiro destaca parte da programação,que se repete em muitas outras cidades e volta a realçar emergência,diversidade e brilho da cultura periférica

Onde mora a poesia
Invariavelmente realizados em botecos, os saraus da periferia sãodespojados de requintes. Mas são muito rigorosos quanto aos rituais depertencimento e ao acolhimento. Enganam-se aqueles que vêem essesencontros como algo furtivo e desprovido de rigores

O biscoito fino das quebradas
Semana de Arte Moderna da Periferia começa dia 4/11, em São Paulo.Programa desmente estereótipos que reduzem favela a violência, e revelaprodução cultural refinada, não-panfletária, capaz questionar ainjustiça com a arma aguda da criação

A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza
Vem aí Semana de Arte Moderna da Periferia. Iniciativa recuperaradicalidade de 1922 e da Tropicália, mas afirma, além disso, Brasilque já não se espelha nas elites, nem aceita ser subalterno a elas.Diplô abre coluna quinzenal sobre cultura periférica

Eleilson Leite – Caderno Brasil Diplô
publicado originalmente em s://diplo.uol.com.br/2007-12,a2102


editor

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *