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A Invenção da Cultura

Publicado pela primeira vez em português, 35 anos depois de sua edição original, A invenção da cultura, de Roy Wagner, é provavelmente o livro mais esperado pelo meio antropológico brasileiro nos últimos anos. Radicaliza uma reflexão sobre o polêmico conceito de cultura em antropologia – a partir da consideração dos modos de conceitualização nativos, ela reformula a própria disciplina antropológica, fazendo-a pensar sobre si mesma.  Para Wagner, não se trata de entender o que outros povos produzem como “cultura” a partir de um dado universal (a “natureza”), mas antes, o que é concebido como dado, e portanto como cultura, por outras populações.

Experenciar o mundo é inventá-lo. Tal a idéia de Roy Wagner ao definir a agência humana como uma máquina de símbolos que opera por meio de uma dialética sem síntese entre convenção e invenção. Por sua vez, Cultura corresponderia ao modo predominante entre populações no Ocidente moderno de objetificação dessa experiência sob a forma de um domínio circunscrito de regras, valores e representações artificialmente estabelecidas, contrastado com um fundo universal de realidade, que abarcaria tudo que supostamente preexiste ao domínio cultural. As implicações antropológicas, sociológicas, psicológicas e políticas disso que o autor identifica como nossa grande ilusão são exploradas na obra A invenção da Cultura (The invention of Culture), só agora traduzida para a língua portuguesa por Marcela Coelho de Souza a partir da edição revista pelo autor de 1981, a ser publicada pela Cosac & Naify.

A 1a edição da obra, datada de 1975, corresponde ao período inaugural do que Eduardo Viveiros de Castro e Marcio Goldman vêm chamando de “antropologia pós-social” [2], em que pessoas com diferentes repertórios e trajetórias passam a ser afetados pelas mesmas questões, concernentes a uma recusa do pensamento entitário e dicotômico, que opera por meio de categorias como “indivíduo e sociedade”, “natureza e cultura”, “realidade e representação”. De encontro a essas dicotomias e atravessado pelo pensamento melanésio, Roy Wagner, em artigo de 1974 (“Are there social groups in the New Guinea Highlands?”), introduz a noção de socialidade, em que o plano relacional ganha proeminência. Largamente incorporada e desenvolvida por sua interlocutora e também melanesista Marilyn Strathern, socialidade corresponderia à matriz relacional de que se constitui a vida das pessoas, as quais a um só tempo existem através de suas relações e as renovam. Nessa perspectiva, as relações sociais são intrínsecas à existência humana, não se podendo, portanto, conceber pessoas como entidades circunscritas.

O modelo construído por Roy Wagner em A invenção da Cultura inicia explorando essa temática por meio das implicações do contato com diferentes modos de vida na invenção da Cultura e das culturas – estas entendidas como manifestações singulares daquela, tomada como fenômeno humano. É preciso experenciar outras formas sociais para que o próprio modo de vida precipite como algo construído e particular, perdendo o estatuto de dado e universal. Tal operação constitui por excelência o mote da antropologia, sendo a Cultura seu principal idioma.

A peculiaridade da disciplina reside na ausência de exterioridade possível em relação ao objeto de estudo. Ao se propor estudar o homem tanto em sua singularidade (“Cultura”) como em sua diversidade (“culturas”), o antropólogo não pode desvencilhar-se da perspectiva singular de sua própria cultura. A proposta intelectual de Roy Wagner, em vista da inexistência de uma posição analítica transcendental, combina o que chamou de objetividade relativa com relatividade cultural. Esta última situa o observador em posição de eqüidade com os observados, já que ambos pertencem a uma cultura; enquanto aquela atenta para a mediação de sua própria cultura na compreensão de uma outra. Assim, a experiência da alteridade só adquire sentido nos termos da própria cultura, mas o desafio do antropólogo é relativizar sua própria cultura por meio da formulação concreta de outra. Como enfatiza Wagner, é preciso ultrapassar as fronteiras das próprias convenções e investir a imaginação no mundo da experiência.

Esse investimento ocorre sobretudo no trabalho de campo, uma vez que a experiência etnográfica impõe resistência às categorias analíticas do antropólogo. Ele vai se tornando o ponto articular entre duas culturas e, à medida que ambas vão sendo objetificadas (ganhando contornos), a invenção de uma é concomitante à reinvenção de outra. Quanto mais familiar o estranho se torna, mais e mais estranho o familiar parecerá ao observador. E esse estranhamento é que faz precipitar a cultura, dando-lhe visibilidade. A dupla experiência de inventar culturas para os outros e, por contraste, uma cultura para si, desdobra-se na invenção da Cultura como advento universal do fenômeno humano.

Sobre o autor: Roy Wagner nasceu em Cleveland, Ohio, em 1938. Estudou astronomia, literatura inglesa e história entre 1957 e 1961 na Universidade de Harvard, recebendo um B. A. em História Medieval em 1961. Em 1966 recebeu o título de PhD em antropologia. Foi professor na universidade de Southern Illinois (1966-68) e de Northwestern (1968-74). Em 1974, foi convidado a assumir a chefia do departamento de Antropologia da Universidade da Virginia, onde ensina até hoje. Deu conferências nas Universidades de Bergen, na Noruega, e Helsinki, na Finlândia, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris. Mora em Charlottesville, Virginia.

A Invenção da Cultura

Autor: Roy Wagner

Editora: Cosac Naify

Leonardo Brant

Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

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