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A irrealidade da arte contemporânea

A crise não afeta apenas  a arte contemporânea, a produção de novas obras de arte: se a arte não continuar, tudo aquilo que resta da arte do passado e que constitui ainda hoje uma parte notável do ambiente material da vida, perderá todo o valor e acabará por ser abandonado e destruído. – (Giulio Carlo Argan)

Todo trabalho cultural requer um mínimo de compromisso com uma determinada forma ou sistema de saber. O objeto artístico é resultado de uma pesquisa especializada para interrogar a própria natureza da arte. É inútil o trabalho do olhar debruçado na incerteza de uma definição de arte, perdido na impossibilidade de uma verdade definitiva.

Estranha, a obra de arte é aquilo que é reconhecido como manifestação de um saber. Uma aventura imprevisível, um jogo sem fim, com regras sendo inventadas a todo momento, sem ganhador nem perdedor.

A arte está sempre nos propondo mais problemas que soluções. Uma relação de tensão e desconfiança passou a reger a arte contemporânea, pela sua condição de ser provocativa e recusar a contemplação passiva.

Com a modernidade e suas vanguardas, principalmente Marcel Duchamp, a arte passou a ser qualquer coisa deslocada para o circuito da arte. Um objeto/lugar de um pensamento ou de uma idéia, independente do verniz textual e da autorização de um curador. O artista era um pensador, tinha uma atitude crítica. A produção do belo era a transformação de uma matéria-prima em produto simbólico, segundo a razão e a sensibilidade de um artista que dominava um saber, porque a arte não era um acidente diante da razão. Nos anos 70, no império da arte conceitual, fazer qualquer coisa arte era dominar uma teoria, se posicionar de forma consciente no universo da arte, da sociedade e da cultura de uma maneira geral.

O processo de inventar o objeto estético deteriorou-se com a facilidade e a rotina de um fazer mecânico que se repete sem o hábito da reflexão. Duchamp, quando inventou o readymade tinha consciência da armadilha da facilidade: “Logo percebi o perigo de repetir indiscriminadamente esta forma de expressão e decidi limitar a produção de readymades a uns poucos por ano.”  O tempo da arte parece condenado com o descrédito dos paradigmas que norteiam a arte contemporânea. O artista precisa conhecer o seu ofício, é indispensável ter referências, na arte acadêmica o artista dominava um conhecimento que era o artesanato, a técnica, o saber das mãos. As chamadas novas linguagens e os novos suportes utilizados sem a precisão do raciocínio, são inovações duvidosas, muitas vezes, aquém dos suportes tradicionais. Num cômodo deslize, um estilo fácil dominou a contemporaneidade, como se a arte fosse um clichê, uma moda, ou um evento para o entretenimento de um público.

A obra de arte passou a ser secundária. E quem decide é o curador, o marchand, o cronista social ou o produtor cultural. A hegemonia do mercado foi acompanhada do aparecimento do curador em lugar do crítico, do produtor cultural e depois as leis de incentivo a cultura.

O objeto deslocado do contexto de origem, por determinação de um artista, é sustentado pela “teoria” imaginária de um curador. Dessa forma a arte como produto de um conhecimento específico deixa de existir. Por outro lado, esse suporte teórico é incapaz de fazer uma leitura crítica desse sucateado trabalho de arte e situá-lo no seu devido lugar cultural.

Um fluxo descontrolado de produtos artísticos deixa de ser uma surpresa. A imagem da arte não é um fragmento do mundo sensível destinado a ornamentar uma experiência mundana; mas um esquema de ordenamento do espaço plástico, a partir de um modelo abstrato de pensamento. Essa qualquer coisa chamada arte, que se utiliza de fáceis e limitados procedimentos, faz da arte contemporânea um estilo simulador de complexidades, cada vez mais incentivada pelos salões, pelo mercado e pela crítica inventada pela indústria cultural.

A arte contemporânea, recalcada nos anos 70, ficou na moda, faz parte do cotidiano dos atuais salões de arte. O belo é, para os novos especialistas da arte, a negação do pensamento, uma brincadeira da sociedade do espetáculo. A arte foi confinada a um campo restrito de experimentação, que tem como referência a tradição da facilidade. Os salões estão de cara nova, mas continuam com o mesmo modelo de seleção e premiação, o mesmo processo burocrático de outros tempos, que reforça a idéia de cultura como uma superstição, e não algo real.

No momento em que a diluição e a facilidade são as regras do fazer artístico, a reflexão cessa, a arte deixa de ser saber e passa a ser acessório de um lazer cultural. A ausência de estilo converteu-se num estilo inculto e inseriu o contemporâneo na periferia da cultura, protegida  pela publicidade do olhar do espetáculo.

Almandrade

Artista plástico, poeta e arquiteto.

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  • Isso, esse é o termo Almandrade. O olhar do espetáculo.
    Esse indulto só pode ser concedido aos novos mandatários. Esses novos mandantários são identificados como feiticeiros cinco estrelas com amplitude teórica a partir de suas lógicas de negocio, suprimindo assim com a força da grana qualquer outro sentido que esse "novo estudioso" tem para nos impor como tendência da moda em arte.

    Na música erudita no Brasil, por exemplo, a criação e toda a liturgia em torno do que distingue os nossos sons foi barbaramente extirpada dos saguões e salas de concerto. A batuta do maestro é um amuleto social que rege a orquestra, mas sobretudo o público.

    O maestro hoje não é compositor, não ergue a magia dos seus sons divinos para o encantamento por suas características originais, assim como foi a fabulosa obra de Villa Lobos.

    A magia dos novos deuses da música erudita no Brasil é outra. Defumaram a criação até que expulsassem todos os compositores para que pudessem impor seus fundamentalismos técnicos para a criação de uma nova seita.
    Por isso os maestros idolatram as grandes orquestras inglesas, e aí abusam do fetiche técnico. O julgamento é um vazo cheio de disciplinas prontas.

    Quais são, ninguém sabe. Só se sabe que esse novo reino cria sua dinastia através de sobrenomes, de cúpulas sociais, de irmandade religiosa ou de sociedades secretas.
    Não importa, em qualquer condição que estiverem hoje farão sempre culto a seus moldes.
    O que deveria ser estranho é que, a mesma sociedade que comanda institucionalmente todas as formas de arte no Brasil tenha atitudes tão distintas.

    Se, de um lado há um vale-tudo, do outro, uma absurda restrição. Mas como o olhar do espetáculo enxerga o que o dono manda enxergar, ele o publico,somente verá aquilo que lhe é imposto.

    Na verdade, Almandrade, são as novas fórmulas do saco cultural que o dito mercado criativo à moda inglesa vem nos oferecendo. É este o desenho da tal ressignificação arbitrada pelas classes dominantes que estão soprando o diapazão dos negócios da cultura.

  • Segundo Luiz Perez Omaras:"um dos problemas da produção atual é que,ao se aproximar da vida,a arte"tem se afirmado mais como comentario da realidade ,da sociedade e por isso não se questiona mais como discurso."Com isso a Bienal entra num velho debate ,que se renova permanentemente,sobre a autonomia da arte,no modernismo,e seus desdobramentos no contemporâneo,para alguns chamado de pós-moderno,outros hipermoderno,e mesmo alter-moderno."É preciso tomar cuidado com conceitos messiânicos",alerta o curador.

    "Agora querer voltar ao sec. XX , ou ao XIX para a la Kant fruirmos o conceito estetico de belo,só quando inventarem o tele-transporte"Qualquer semelhança com Dr.Spock é mera semelhança.Por enquanto trademark do Star Wars. A Historia só caminha para a frente,mesmo com releituras,Fukuyama quebrou a cara ao propagar o fim da Historia.A arte contemporânea é um jogo,quem não souber jogar pode tentar o futebol.

    I´ll be back.Este site ,cada dia mais dcareta e reacionario.What a pitty!

  • A palavra chave parece ser mesmo COMPROMISSO, com uma determinada forma ou sistema de Saber.Mas a algum tempo tento trabalhar com isto, pois muito além do compromisso deve se ter um ordenamento nas várias esferas profissionais do mercado e Arte e de Cultura no Brasil,pelo menos alinhados por um norteamento lógico inteligente destes compromissos interligados a uma mesma realidade cultural que se objetiva em ter.Mas isto não acontece.Cada um quer olhar o mundo a partir de si mesmo, vaidoso e enorpecido por seu próprio egoísmo e não consegue ultrapassar muito além de seu próprio nariz.Qualquer corrente artística que suprime qualquer outra forma de arte não pode e não deve ser considerada como arte.Em nome de uma farsa dita contemporânea, isto acontece todo os dias o tempo todo.Quando não usam como plataforma propriamente dita suportes antigos existentes, se valem de distorções de conceitos e valores precariamente intitucionalizados em nome da conquista de um grande público cada vêz maior e mais tolo que pouco entende o que está acontecendo verdadeiramente nestes sucateados espetáculos.

  • A burocacia, os podres poderes e a grana destroem coisas belas...

    ...a burocracia, os podres poderes e a grana, destroem coisas belas

    ...a burocracia, os podres poderes, a grana, destroem coisas
    belas...

  • De fato, o artista enquanto ser político, consciente do grande poder de penetração social da sua obra, aparentemente passou. Mas discordo que a figura do artista moderno tenha nascido ou encontrado em Marcel Duchamp sua mais perfeita expressão. Antes dele havia, no mínimo, duzentos anos de arte engajada. Vide o poderoso Jacques-Louis David e seu papel na revolução francesa.

  • Seu artigo é bastante oportuno e pertinente e chamo a atenção, em especial, para o trecho em que questiona a arte contemporânea por sua sujeição à “condição de ser provocativa e recusar a contemplação passiva”. É algo que, a mim, também tem provocado reflexões e críticas, particularmente quando vou a museus e galerias ver obras que “interagem” com o observador. Em geral, não passam de parafernálias eletrônicas e tecnológicas que obrigam o observador à prática de exercícios da tradicional ginástica sueca diante de sensores de movimento, sem o que não poderá usufruir os sons e efeitos visuais projetados sobre um determinado suporte. Em muitos casos se requer também do observador a habilidade e coordenação motora de um adolescente campeão de videogame, ou ele se verá privado de “entender” a obra do artista, por não ser capaz de acionar teclas e botões numa determinada sequência. Nesse ritmo, as novas gerações, em curto prazo, serão incapazes de reconhecer a densidade dramática de Os fuzilamentos de 3 de maio, de Goya; da Guernica, de Picasso; ou da série Os retirantes, de Portinari; a força e a monumentalidade de A porta do Inferno, de Rodin; ou a delicada beleza de Os peixinhos vermelhos, de Matisse. Nada disso mais será considerado arte, porque toda contemplação será considerada passiva e incapaz de “interagir” com o observador – mesmo que ele admita, eventualmente, que sua compreensão do mundo ou da humanidade tenham se modificado diante das obras desses artistas. É lamentável, mas na universidade, convivi com jovens alunos de Artes que “não tinham saco” para ver filmes de Chaplin porque “são mudos, em preto e branco, a câmera pouco se move e os efeitos especiais (quando existem!) são toscos”! Como, historicamente, todo movimento artístico só se impõe ao negar ou detratar seus antecedentes, talvez devamos esperar que uma arte pós-contemporânea venha logo reabilitar a Arte. Mas, antes que me julguem retrógrado ou anacrônico, devo dizer que considero Duchamp um gênio e visionário, que há cem anos nos mandou esse recado – que muitos contemporâneos (artistas ou não), ainda não entenderam.

  • À crise na arte se deu, porque ficaram nos mesmos artistas e não abriram para à verdadeira produção ! (Não conhecem) !!!

  • É necessário a existência do diálogo com a arte e sua produção estética. Buscar a comunicação com o indivíduo no ver, ouvir, sentir e conhecer a essência da arte e a coquista do belo.

  • Arte Contemporânea é coisa do século passado, então, nada como seguir as "regras" centenárias...segundo Jose Luis Brea, já estamos num outro nível: o da arte pós-contemporânea

  • Olá,

    Sou coreógrafa, moro no Rio de Janeiro e gostaria de me contactar com o autor da matéria. Almandrade? é esse o seu nome?

    Publiquei há pouco tempo um artigo que trata o assunto que vc abordou na matéria desde a perspectiva dos ideais da ciência moderna dentro da arte contemporânea.

    Gostaria muito poder trocar com vc. mais idéias.

    Obrigada

    Gimena Mello
    Bailarina e Coreógrafa

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