Encontrávamos-nos na ampla sala Tiradentes localizada no quinto andar da Câmera Municipal de São Paulo. Era final de 1990 e com numerosas dificuldades tentávamos fechar o texto relativo a alguns parágrafos do projeto que deu origem a Lei Rouanet, de incentivo fiscal à cultura. Em torno da grande mesa mais de 20 dirigentes e representantes de entidades culturais de todos os segmentos: de video-arte à movimentos de rua, passando por cinema, literatura, artes-plásticas, artes cênicas, música, patrimônio-histórico, etc.
Tratava-se de mais um encontro das entidades culturais numa seqüência de discussão iniciada quase um ano antes pelo Ministro da Cultura Sérgio Paulo Rouanet que, involuntariamente, terminou emprestando o seu nome ao mecanismo. A reunião já ultrapassava às 3 horas de duração, era quase 23:00 horas e estávamos ainda longe do consenso. A sessão seguia tumultuada com muitos oradores inscritos, ansiosos para falar, e várias tensões para administrar entre algumas entidades rivais com atuação na mesma área.
O texto da lei deveria receber a aprovação de todos os setores da cultura, seguindo a determinação do próprio ministro, e o obstáculo naquele momento para se avançar rumo ao consenso era a figura de um mágico. Sim, isto mesmo, um mágico, o seu nome: David Copperfield, o elegante ilusionista norte-americano.
Passou-se que a produção deste pop-star da mágica tinha feito uso da Lei Sarney alguns anos antes para realizar uma apresentação no Rio de Janeiro e, embora esta lei já tivesse sido extinta àquela altura – não exatamente por esta razão – o fantasma daquele “sacrilégio” contra o dinheiro público brasileiro ainda assombrava o meio cultural e ameaçava o futuro daquele mecanismo em fase de gestação: nossos suados impostos usados para financiar o lixo da cultura norte-americana, este era o tom geral dos inflamados protestos. O nosso desafio era incluir um dispositivo no texto capaz de impedir, a qualquer preço, que aquele fato tivesse a chance de se repetir. Mas como fazer isso? Que dispositivo seria esse? Como seria a sua redação jurídica? Naturalmente colocar na lei uma proibição expressa para que mágicos norte-americanos não fizessem uso da lei seria, digamos, inapropriado para um documento oficial, até mesmo em se tratando daqueles “cães yanks”. Então o que fazer? Esta foi a grande questão daquela reunião que entrou madrugada adentro.
A primeira sugestão, óbvio, foi um impedimento genérico, ou seja, uma proibição capaz de impedir que qualquer artista estrangeiro recebesse os benefícios daquele mecanismo reservando-o, exclusivamente, para uso dos artistas pátrios. A proposta foi apoiada de forma ruidosa. Porém, um representante de música que se mantivera calado até ali, levantou o dedo e com voz calma fez uma pergunta incômoda: “tudo bem, artista estrangeiro não poderá, mas, por exemplo, um quarteto de cordas de Berlim, poderia?”
Fez-se o silêncio na imensa sala. Ninguém tinha pensado num quarteto de cordas de Berlim ou de qualquer outra parte. E a famosa orquestra sinfônica de Israel, a de Boston, também não poderão? As óperas italianas, alemãs? Exposições dos estrangeiros Picasso e Van Gogh também estariam fora? Sinuca de bico. A idéia do veto a artistas estrangeiros se desmanchou no ar. Definitivamente não era uma boa idéia já que o problema, como todos sabíamos, era o mágico pop-star norte-americano, não a alta cultura mundial. Ao fim e ao cabo, prevaleceu o texto original proposto que transferia – e ainda hoje é assim – este tipo de decisão para a CNIC – Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, que deve decidir orientada pelo bom senso.
Dezessete anos depois, outros mágicos, voltam a apavorar o meio cultural brasileiro, ameaçando severamente o futuro da Lei Rouanet. Desta vez, são os ilusionistas do Cirque de Soleil, e seus colegas de picadeiro. Esta companhia canadense foi transformada numa espécie de “kit terror” contra a nossa principal lei de apoio à cultura. A razão é a aprovação, para que esta multinacional da lona fizesse uso dos benefícios fiscais previstos neste Lei. Este fato ocorrido anos atrás, tem sido utilizado, às vezes, pelo próprio MinC para desqualificar o mecanismo e, em alguns casos, até justificar a extinção da mecânica do benefício fiscal, essência desta ferramenta. Ficam as perguntas:
1- Por que a captação de vultosos recursos para a turnê brasileira deste circo recebeu habilitação do MinC quando a lei oferece dispositivos seguros para o seu indeferimento? Aliás, como veio a acontecer numa segunda edição do empreendimento, conforme divulgado pelo próprio ministério. Se o projeto pôde ser indeferido na sua segunda edição, dentro da legalidade, por que a primeira edição também não o foi?
2- O Decreto da lei assegura expressamente ao ministério, e a suas supervisionadas, valer-se dos serviços de peritos antes da aprovação, durante e depois da execução de um projeto para avaliar a sua pertinência e a fiel aplicação dos recursos incentivados, aferindo os benefícios reais do empreendimento cultural junto a sociedade. Como, então, o proponente do circo aqui citado, pôde captar R$ 40 milhões de reais ao longo de cinco anos – dados do próprio ministério – cobrando da população ingressos de até um salário mínimo? Isso não aponta mais para uma falha no gerenciamento do processo do que para um suposto vício da lei?
Ninguém responsável e razoavelmente informado poderá ser contra qualquer proposta de alteração e aperfeiçoamento na lei aqui em questão, que há muito tempo reclama mudanças. É natural que seja assim, ela foi formulado há 17 anos para um país que também já não é o mesmo. Mas somente uma discussão ampla e democrática poderá cancelar e substituir decisões geradas num processo anterior, igual nestes princípios.
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Esse artigo nos diz duas coisas muito importantes. Primeiro: é possível corrigir mal uso da lei sem mudar a lei. Isso é uma questão administrativa. (E não cansamos de ver a incompetência adminsitrativa desse ministério açoitar brutalmente o setor artístico brasileiro.) Segundo. Qualquer mudança na lei só será legitimada se passar por um processo de discussão amplo e representativo. O que estamos assistindo hoje não é isso. Quem diz que tem uma proposta para mudar a lei é exatamente esse mesmo pessoal que esconde de forma desonesta e rasteira que a responsabilidade sobre o caso do Cirque du Soleil é do MInC e não da Lei Rouanet, como ficou claro neste artigo. O que de positivo podemos esperar de quem faz uso de tal expediente para atacar a Lei Rouanet ? E ainda tem a coragem de querer atribuir à problemas da Lei , o fato das temporadas de teatro estarem mais curtas. O próprio Gerald Thomas reconheceu no programa do Sergio Groismann no último sábado que o teatro está numa crise profunda porque trava-se uma concorrência brutal deste com muitas mídias e opções de lazer e cultura, além da pressão da falta de educação e cultura do brasileiro que deprime a formação de público para o mesmo.
Quem está querendo mudar a lei me parece estar completamente despreparado para esta tarefa. Primeiro por que usa de má fé, depois por que não parece ser capacitado a fazer uma análise razoável sobre as questões culturais. É uma lástima que na mina opinião coroa a gestão péssima que esse ministério está produzindo.
Senhor Tales!
Ainda bem que não vi uma besteira dessas da boca do senhor Thomas.
Nada é mais reacionário que uma declaração dessas. É odioso ter que ler um troço desses, de exclusão explícita "falta de educação e cultura do povo brasileiro". Essa é uma declaração xinfrim, medíocre, infundada e inadequada que só pode sair da cabeça de um reaça. Faça-me o favor! Estamos no seculo XXI. O senhor e o Thomas estão no século XIX? De chibata na mão? Esse seu discursinho de casa grande, de civilizador, de catequista, é tudo o que o Brasil não precisa. Essa lei, da forma que está, é uma titica. Esteve aí durante todo esse tempo à serviço dos doutores auto-proclamados. Que papo mais absurdo é esse de dizer que o povo brasileiro não tem cultura? Quem é o senhor e o senhor Thomas pra dizer uma asneira dessas? Ainda mais no programa de Serginho Groismann! Aquilo sim, é um bundalelê que o Sr. Thomas adora fazer. Essa lei que você, erroneamente, julga que é o Minc que quer mudar, ela, na verdade, tem que ser vigiada, patrulhada 24 horas por dia, a cada minuto, a cada segundo, pra que pessoas que se acham não se locupletem de uma verba que deveria servir única e exclusivamente destinada à arte, ao artista brasileiro, a quem de fato trabalha de sol-a-sol para manter o Brasil com a sua identidade. Esse papo furado de que o Minc é que quer destruir a lei, não cola. Quem não suporta essa injustiça, é o artista, cidadão, contribuinte, operário. Vamos cair na real! Vá para a rua e defenda com unhas e dentes no meio dos artistas, a sua lógica absurda. Aí sim, você ouvirá o que não quer, mas eu disse "RUA", não é salão, muito menos bistrô. E não é o Cirque du Soleil o problema não, ele está sendo usado aqui como boi de piranha, o buraco é mais em cima, fica nos escritórios refrigerados das confraternizações das irmandades empresariais. Não nos trate como tolos. A lei vai e tem que mudar muito, pois como está, é um assalto ao imposto pago pelo brasileiro. A primeira coisa a ser feita é limitar os recursos. Quem quer Brodway que tire o dinheiro do bolso e banque o seu próprio delírio. Isso é dinheiro público. Tem que ter o mais amplo e democrático conceito de fomento, pois há um buraco, um enorme buraco nisso tudo. O povo, o grande mecenas está fora do pique-nique das quintas e seus imperadores. Acordem senhores! Estamos num país democrático, num governo popular, que tem por obrigação ideológica sim, tratar de ampliar em alto e bom som as escolhas do povo brasileiro. Quem não gostar que feche os olhos e tape os ouvidos, porque o som da maioria é que tem que ecoar.
Acordem meus amigos! Noventa por cento dos artistas brasileiros foram, durante todos esses anos, da Lei Rouanet. Sobreviveram na penúria, vendendo literalmente o almoço para pagar a janta. Saiam da tribuna de honra e venham aqui para a geral!
Sr Carlos Henrique, considero que constatar que há problemas na educação e na formação cultural da população do nosso país é o primeiro passo para mudar tal situação. Com certeza, constatar isso não se trata de algo "reacionário", xinfrim, medíocre, infundado e inadequado como o senhor colocou. O pessoal que trabalha com teatro e o Gerald Thomas se inclui aí, sabe que se há público, a peça continuará em cartaz. Portanto o encurtamento das temporadas de teatro não tem nada a ver com a Lei Rouanet. Essa associação foi um golpe baixíssimo feito pelo Frateschi, ainda mais por que ele é ator e deveria saber muito bem disso. É o mesmo tipo de golpe baixo que usam colocando o boi de piranha do Cirque du Soleil como o senhor disse como símbolo anti lei rouanet. É esse tipo de gente que tá lá dizendo que precisa mudar, que isso e que aquilo. A primeira coisa que tem que mudar é a capacidade analítica desse pessoal. E se esse não for o problema real, então o que tem que mudar é a vergonha na cara para tratar de problemas reais, pois o ponto importante discutido no artigo é que a CNIC tem poder para exigir contrapartidas e foi ela mesma que aprovou o Cirque du Soleil. Então como é que vem um ator cara de pau falar que isso é um problema da lei sendo que é um problema de gestão. Parece que está ficando claro (leia o artigo do Kluk Neto que chama a atenção para isso) que tem muita coisa que dava pra mudar apenas com critérios administrativos bem definidos. Mas aí ao invés de assumir a sua responsabilidade na ciranda, é mais fácil colocar a culpa na Lei, e implodir tudo. É muito mais fácil fazer isso do que dar conta de analisar com competência a pilha de projetos que está parada na Funarte prejudicando um monte de gente que quer trabalhar. É muito mais fácil fazer isso do que administrar com competencia a prestação de contas dos milhares de projetos executados todos os anos.
Alguém aí pode colocar os pingos nos is? Alguém honestamente pode confirmar o que lembro sobre o caso Soleil? Ao que me consta o projeto de capitação de recursos aprovado pelo Minc sugeriu um corte substancial dos milhões inicialmente sugeridos pela empresa produtora. Segundo, o abuso foi constato após a captação, na definição dos preços dos ingressos. Resultado: administrativamente vetou-se o financiamento da segunda temporada. Onde está o erro de gestão neste caso? Lembro-me das palavras do ministro Gil à época, afirmando que o projeto havia sido aprovado com restrições orçamenarias, mas que ainda assim, haveria de se pensar em mudanças na lei, entendi que ele sugeria que deveriam ser criados critérios para garantir a democratização na produção e no acesso culturais. Sinceramente, neste caso, acho que não houve erro de gestão, o Minc observou a má utilização da Lei e vetou a sua reutilização. Mas o que foi dito, não significa que concorde o financiamento apenas de mega produções. A política cultural brasileira tem sim, como afirma Carlos H. Machado, que atender os operários da arte e da cultura do Brasil. A dificuldade da discussão está no fato de que estas pessoas não tem os meios de expressarem suas idéias e interesses, como tem os representantes da alta cultura e do espetáculo.
...A dificuldade da discussão está no fato de que estas pessoas (os operários da arte) não têm os meios de expressarem suas idéias e interesses, como têm os representantes da alta cultura e do espetáculo. Neste ponto, o Minc teria que ser radical: garantir a mesma verba para a orquestra sinfônica, para o Moçambique e para o Samba de roda. Como a pluralidade cultural é incomensurável, o remédio seria a descentralização. Uma ação integrada ente União, Estados e municípios. Ou seja, a democratização do acesso e do financiamento da cultura pressupõe a descentralização democrática da gestão.
Finalmente a discussao comeca a superar a superficialidade e o imediatismo que vinha reinando. Em primeiro lugar eh importante localizar os problemas de gestao por parte do MinC. Isso (a gestao) eh tarefa do ministerio e nao se pode aceitar a cortina de fumaca que o MinC usa para se proteger da critica 'a pessima atuacao naquilo que eh sua responsabilidade: os mecanismos estao previstos na lei; boa parte de seus problemas decorre da sua ma execucao. Por outro lado a Renuncia Fiscal nao eh substituta de uma politica publica, esta majoritariamente baseada em programas com foco, fiscalizacao e transparencia, realizados com verba direta, seja do ministerio, seja atraves de um Fundo Nacional de Cultura mais transparente e democratico, com comissoes paritarias, mecanismos de avaliacao e PRESTACAO DE CONTAS 'a sociedade brasileira que paga por isso. E, finalmente, numa sociedade capitalista como a brasileira, eh preciso tocar no tabu da corrupcao nao so publica, mas privada. A lei favorece brechas 'a corrupcao e a defesa da livre iniciativa nao pode ser a defesa da livre rapinagem. Alem disso, faltam mecanismos para uma cultura de patrocinios privados, ja que se fala nisso mas LEI DE INCENTIVO A CULTURA eh dinheiro publico. Deveria ser proibido chamar isso de patrocinio. Isso eh renuncia fiscal, apoio, etc. Patrocinio eh de quem paga. E quem paga eh o contribuinte. Vamos parar com essa farsa.
André Luiz,
Você ou está mal informado, ou no afã de repetir a cartilha que decorou fala coisas que sabe não ser verdade. Primeiro ponto: o preço dos ingressos não é "supresa" nenhuma para o Ministério. No formulário de apresentação de projetos há um campo chamado "distribuição do produto cultural" que aliás se repete e se desdobra em uma planilha que leva o mesmo nome onde você tem que indicar o preço final que será cobrado do publico . Portanto, o Minc sabia exatamente quanto custaria o ingresso do Cirque du Soleil . Se o proponente mentiu, isto é falou uma coisa no projeto e depois cobrou outra, o Minc tem aí o elemento que precisa para punir o proponente.
Segundo lugar, o Minc dispõe de vários outros instrumentos para atender a população de baixa renda. Aliás, a produção cultural dessa população tem se mostrado tão vigorosa, que prescinde do dinheiro do governo em qualquer instância. Veja-se toda a produção da chamada "Central da Periferia" - música e literatura estão sendo produzidas muito bem obrigda.
O grande problema das políticas culturais é que elas misturam estrutura econômica com julgamento de mérito. Para a economia, não existe produto "bom" ou "ruim". Existe produto que tem demanda e produto que n ão tem demanda. Ora, a produção cultural popular - seja da periferia urbana ou da rural, acaba encontrando sua demanda. Talvez possa ser mais ajudada, já que os valores de produção podem se tornar mais altos do que o público pode pagar, por outros motivos alheios à área cultural. Já o que está se tornando di´ficl de manter é quem produz dentro da tradição européia : concertos, teatro, música erudita, artes plásticas contemporâneas etc etc. Esse tipo de produção requer público não apenas com dinheiro disponível, mas com formação para consumir. Formação que normalmente se adquire na escola, que é o aparelho encarregado da reprodução dos gostos e parâmetros de avaliação da dita "arte erudita". Ora, nossas escolas não estão dando essa formação e as pessoas estão se afastando desse tipo de consumo. Então, torna-se difícil concorrer com a televisão e o DVD que oferecem fruição gratuita. Para que pagar ingresso se você pode ter o mesmo show de graça, o mesmo CD baixado no seu MP3, etc, etc. Ou para que pagar ingresso de uma peça "cabeça", se o pessoal que não é formado para assistir teatro não consegue ficar uma hora ou uma hora e meia sentada, imóvel em uma cadeira? Aí está a raiz do problema.
Outra coisa é a questão da representatividade das Comissões, conselhos etc. Aí sim, podemos dizer que os operários da cultura não têm voz. Mas o público, a quem afinal tudo deveria se destinar, também não. Você já viu representante do público em alguma dessas comissões? Tem representante dos experts, dos críticos, dos intelectuais de alto nível que querem fazer o público consumir o que eles acham importante. Mas o público só pode se manifestar deixando de comparecer ou então fazendo arruaça. Abraços Maria Alice
Dona Maria Alice Gouveia
Tem horas que a senhora me lembra uma sinhazinha e seus bons modos. A senhora citou uma cartilha que André Luiz, possivelmente, andou lendo. Não sei exatamente do que está falando, no entanto, é perceptível, pelo seu discurso de grilagem, que tudo é justificável pela, digamos, tradição sanguínea, a famosa, "formação de berço". Acho que a senhora anda às voltas com uma leitura oitocentista. Devo lhe dizer que seu manifesto mais parece uma carta das famosas sesmarias. Mas o que a senhora ainda não entendeu é que hoje somos todos forros, mais ainda, somos contribuintes, cidadãos que, compulsoriamente, entregamos parte do nosso trabalho aos impostos e, dentre esses, uma parte assume o destino de RENÚNCIA FISCAL e não patrocínio de empresas privadas ou públicas. Patrocínio é tirar a grana do bolso, assim como qualquer investimento empresaria em publicidade. Lógico que, com isso, o empresário trabalha com a visão de que a imagem é valor agregado, portanto, transforma o seu produto numa espécie de griff. A diferença neste caso é que, mesmo ele embutindo os custos de uma publicidade ao seu produto, ele tem um mercado a concorrer, palmo a palmo, com outros produtos. No caso da lei, não há qualquer compromisso consignado, não há a preocupação empresarial de fazer do produto algo competitivo. Por quê? porque a bolada contempla custo, lucro e algumas coisas a mais. O que o empresário da arte hoje no Brasil precisa para entrar no maná da Lei Rouant e saborear o manjar dos deuses, não é de competência, e sim, de trâmite político, social, capacidade de frequentar festas e conhecer alguns rótulos de vinho para se comportar direitinho em alguns desses encontros subterrâneos da nossa sociedade.
O seu discurso é uma gongada na inteligência de qualquer um. Essa sua classificação humana é de uma sensibilidade ímpar. D. Maria Alice, não existe homem A, B ou C. Essa sua regra diz ou orienta um mercado para definir segmentos sociais de CONSUMO. Creio que a senhora, pela formação, deve se auto-classificar como uma erudita, uma coisa dos deuses. Arnaldo Jabor também se acha um, quase Jesus, da pirotecnia intelectual, por isso, julga-se capaz de fechar os olhos e tapar os ouvidos para a lógica humana. A senhora se lembra da declaração do nosso príncipe da sociologia, FHC, o moderneiro, o privateiro, o sociólogo esquecido? Pois é, com toda a sua leitura, com toda a sua erudição, com todo o seu berço, o nosso ilustre sociólogo classificou a todos nós brasileiros como caipiras. O nosso presidente e seu fraque, quando andava pelos principados mundo afora, gostava de tachar a mim e a senhora de provincianos. Sabe por quê? Porque ele precisava importa tecnologia
ao invés de investir em seu próprio país, um tipo de entreguista chique. Ele nos tacava uma pecha de provincianos e assim justificava a destruição do pensamento tecnológico brasileiro, abrindo, arreganhando as portas para a entrada de tecnologias estrangeiras. Sua erudição pouco valeu nessa hora. Mesmo que, no dia-a-dia, no campo da arte isso valha centavo furado, os diplomas balançaram nas paredes dos nossos solários, jardins afora, não é mesmo? Afinal, temos que respeitar as nossas dinastias sociais.
A senhora fala em mercado, o que me consta, desde o geladinho ao monumental mercado, o balcão estabelece primeiro, o conceito de investidor. Tira-se um qualquer do bolso, vai-se a um banco ou mesmo a um agiota, toma-se uma dinheiro emprestado para financiar o sonhado investimento. Este é o conceito clássico de mercado, ou não é? A senhora, assim falando, parece o ilustre maestro da OSESP, quando diz que toda grande cidade do mundo que se preze, tem que ter uma grande orquestra. O nosso importador de modos e costumes europeus deveria pensar diferente. Toda cidade que se preze, tem que ter cidadãos, sob a lógica mais ampla que este termo pode trazer, um homem e sua cultura, um homem e seu universo. Aí sim, teríamos uma grande cidade, não com a sua visão que insiste em classificar geograficamente o ser humano. Não existe homem periférico, não existe sentimento periférico, não existe arte periférica, existem homens, mulheres, crianças, ou seja, brasileiros que constroem o país a cada dia e tentam se integrar ao conjunto da sociedade. Essa sua classificação é o que permitiu todo esse apartheid que foi a Lei Rouanet durante todos esses anos. Uma lei tem que ser para todos, absolutamente todos os brasileiros. A senhora está falando de lei, lembra-se? Todos nós temos o direito de ir e vir. Todos nós brasileiros somos iguais perante a lei. É aí, nesse ponto nevrálgico, na cultura, que o homem se revela um cidadão, expondo suas estéticas, suas escolhas, seus sentimentos. É pra isso que a arte serve, para o homem se expressar sem amarras conceituais e estéticas. A arte se difere das outras atividades porque é justo nela que o homem se liberta das excessivas regras sociais. A arte tem pernas próprias, caminha como um homem livre, com um pensamento libertário, anárquico, fora disso, reproduzir um outro homem, de um outro continente, é estimular, reeditar um papel carbono e seus flagrantes borrões. Essa sua cidadania está associada ao mundo desse homem, ao seu entorno, à sua família, ao seu país. A sua formação técnica nada tem a ver com a sua forma de se expressar artisticamente. Isso é de uma puerilidade sem tamanho. O público que a senhora clama, talvez não seja exatamente o povo. O público que a senhora clama, deve ser algo requintado, bem formado como a senhora crê, doutores, gente perfumada, finamente perfumada, conhecedores dos mais nobres sabores das adegas mundo afora. Mas infelizmente, tenho que lhe dar uma péssima notícia, quem nos dá identidade, isso já dito pelos modernistas brasileiros, ou mesmo os que não aplaudiam o modernismo como Monteiro Lobato, que a nossa cultura, a nossa identidade foram construidas distantes desse universo erudito, frequentado pelos bem-nascidos. Sugiro-lhe que leia algo sobre a semana de 22, preferencialmente de Mário de Andrade, algumas décadas à frente do seu pensamento oitocentista.
Para terminar, D. Maria Alice, que a Lei Rouanet funcione verdadeiramente como uma lei para todos, ou do contrário, que desapareça. Porque, se o tal pobre, o periférico, não erudito, é desclassificado para frequentar o ambiente dos nossos doutores, então, na mesma monta, eles deveriam ser excluídos da obrigatoriedade do pagamento de impostos que se transformam em mecenatos para os nossos ilustres pensadores de saguão.
Como cidadão e trabalhador vejo, como na maioria dos debates de alto nível cultural, muita arrogancia, falta de respeito entre as pessoas, certeza de opiniões, cinismo, etc. - mas vocês devem me desculpar porque sou um pobre coitado ignorante.
Mesmo assim vou dar minha opinião porque também sou brasileiro e pago impostos e os comentários parecem que são públicos.
Não consigo entender como pessoas tão inteligentes puderam fazer uma lei tão inútil para o povo. Em minha cidade de 50.000 habitantes nunca vimos um grande evento desses que o governo paga até 70% e já tenho mais de 40 anos. Nosso cinema que era um prédio lindo muito bem montado com cadeiras acolchoadas e dobraveis instaladas em um piso gradualmente rebaixado entre as fileiras e com uma tela de projeção imensa e um palco a frente da tela com uns 7m de largura por uns 15m de comprimento onde grupos locais e de outras cidades fizeram a alegria da minha infância com suas apresentações musicais, teatros amadores ou não, eventos de várias espécies enfim que na maioria absoluta das vezes pagamos para assistir, está definitivamente destruído por abandono. Então agora mesmo que um evento quiser vir até aqui pago pelo governo não precisa mais vir porque não tem onde se apresentar mesmo e eu já nem iria só de raiva pelo descaso de anos - sabe essas coisas não aconteçem de uma hora para outra.
Na minha humilde sabedoria não consigo aceitar que o governo financie artistas e espetáculos com o nosso dinheiro, o mundo mudou e se até agora artistas não conseguiram se tornarem profissionais como em outras profissões eles devem procurar outra coisa para fazer, eles devem rever a maneira como estão fazendo as coisas porque se o público não vai não é porque não tem cultura e sim porque esses artistas não se atualizaram, o formato 'xarope' dos espetáculos teatrais é de dar sono, as operas continuam tocando músicas do ano de 1500 porque esses músicos só sabem tocar e a europa e o mundo ensina cultura nos colégios para as pessoas consumirem esse lixo velho ao invés de ensinar criatividade para novos compositores geniais se formarem (coisa que ainda aconteçe só em casa), nem vou falar sobre as artes plásticas que estão mais longe de serem interessantes para investimento de dinheiro público. Se for para continuar assim então o governo terá que financiar a minha profissão também: ou seja pagar meu salário e investimentos que faço em minha carreira para que eu mostre o resultado de meu trabalho depois e ainda fique com o lucro deste trabalho só pra mim.
Então só vejo quatro coisas acertadas a fazer se o governo quer gastar nosso dinheiro: 1) Financiar sem retorno: se, através de um estudo técnico, o governo entender que uma determinada obra ou evento é útil para a coletividade, seu custo x benefício é viável, poderá ser consumida por grande parte da população gratuitamente;
2) Financiar com retorno: se, através de um estudo técnico, o governo entender que uma determinada obra ou evento é util para a coletividade, seu custo x benefício é viavel e o investimento terá grande chance de retorno financeiro então faz o investimento no projeto contanto que após o término da execução do projeto o governo receba de volta o que investiu e uma parte dos lucros - como em qualquer profissão o que não é bom o suficiente para algum lucro é perda de tempo.
3) Criar e manter obrigatoriamente espaços culturais populares;
4) Em qualquer outro caso o artista deverá se preocupar em encontrar patrocínio privado, já que vai atingir um público específico, ficará com os lucros e/ou utilizara seu talento para atrair atenção aos produtos do patrocinador ou ainda é tão ruim e desinteressante que não vale nada.
Os artistas precisam entender que o povo tem a cultura suficiente sem para isso ter que entender de uma obra de arte, a arte tem que atingir o público sem que para isso ele precise ser treinado, sem que para isso ele precise saber quem é Van Gogh. O artista que quiser ser percebido tem que falar a língua universal da arte, a emoção, a reação, o que instiga, o que atrai !!
Dica: é bom também que o artista que não ganha dinheiro com arte tenha outra profissão ao invés de ficar choramingado para assistirmos ou pagarmos a conta com dinheiro público. Também é bom saber que mesmo que todos os artistas profissionais ou amadores sumissem da face da terra nossos filhos, nossos vizinhos e nossos amigos tocariam, cantariam, dançariam, desenhariam e pintariam como sempre fizeram nem que para isso fosse preciso bater em latinhas ou rabiscar em pedras. A cultura popular não depende deles, eles é que dependem da cultura popular.
Prezado Carlos Henrique:
Incentivo fiscal é receber dinheiro do governo. Portanto, patrocínio incentivado é feito com dinheiro do imposto que empresa paga. Esta é a lei Rouanet. Você quer outra, outro modelo, ótimo - proponha. A lei não é feita para todos. As pequenas empresas, por exemplo, que não pagam imposto no sistema de lucro real, não podem se beneficiar dela. Isto está na lei, não no meu discurso. Aliás, as empresas pagam imposto, tá - só para lembrar, não somos só nós - eu, você. Se não pagassem nao poderiam receber incentivo.
Aliás, eu, ao contrário do presidente Lula , não bebo vinho. Muito menos dos mais finos. O consumo cultural - se você tivesse feito pesquisa, como eu fiz, durante dois anos, é completamente segmentado; ou seja, tem gente que não gosta de teatro, não gosta de concerto e não gosta de ballet. Não porque "não tenha cultura", mas porque gosta de outras coisas. Portanto, mesmo que esses espetáculos sejam gratuitos, não vão ter publico nesses segmentos da população. Eu não quero impingir nada a ninguém, apenas constato. Já a lei escolhe esses setores para financiar. Não financia quadrinhos, desenho animado, ringtone, site na Internet ou qualquer outra manifestação mais próxima do que os jovens da indústria criativa estão fazendo. Discrimina a arte popular como "folclore". A lei financia projetos nas áreas das "belas artes" - não fui eu que escrevi a lei ou que selecionei os setores a serem financiados. Está lá. Essa cultura é da Casa Grande - concordo plenamente. Eu sou totalmente contra a definição de cultura que está na lei. Mas ela está lá e não fui eu que inventei. Se eu sou sinhazinha, talvez seja porque eu procuro conservar a calma e uma certa civilidade nas discussões. Até porque acho que agredir verbalmente as pessoas que não concordam com minhas idéias não contribui para a democracia.