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A música não é o que se ouve, é um pouco mais

É muito comum no Brasil ouvirmos de alguns idealizadores a argumentação rasteira, provinciana de que pensar em cultura brasileira é coisa pequena diante do universo da arte. Confesso que tenho uma ponta de inveja dos nossos visionários.

Imagino que eles de fato tenham uma percepção privilegiada, não sobre a arte simplesmente, mas sobre o ser humano universal, pois essa é uma característica dos grandes “homens da cultura” no Brasil que, de en passant, pelo simples fato de ouvirem aquela música, desenvolvem técnicas aconselhadas por uma tradição. Os nossos visionários conseguem estender-se a tal ponto que fazem com que a escolha por esse universo da grande arte universal tenha uma urgência muito maior do que a compreensão do seu próprio mundo.

Eu, na minha santa ingenuidade, imaginava que esta música dos grandes mestres estrangeiros fosse uma coisa maior, mais profunda, mais densa, fruto de um resultado de vários aspectos humanos que geram uma obra tão bela que ouvimos. Mas nada! Os nossos doutores brasileiros que andam pelas grandes academias e teatros Municipais Brasil afora deixam claro que não é bem assim, que é tudo bem mais simples. Não precisamos ser partícipes daquele universo artístico para compreendermos a arte. Lógico que não! Mas, especificamente no caso da música, tradicionalmente, nossos doutores ainda são muito dependentes, importam estéticas e técnicas, sem qualquer questionamento e nos esclarecem que, para copiar a forma e o pensamento artístico importado, (papel carbono), é só contornar a cartilha com papel de seda e depois rabiscarmos embaixo do papel, como naquela forma antiga de colar na escola.

Esta grande arte, esta grande música tão propalada pelos nossos maestrões, professores das faculdades públicas de música, é coisa pequena, pelo menos é essa a informação que nos passam. Não é uma questão de ouvir e sentir, é só tocar, papel-dedo, dedo-papel, como dizia Villa Lobos, “músico papelório”, é a técnica sobre o sentimento humano. Ah, sim! Alguns dizem que não, que sua alma vai se tornando mais leve, mais depurada e, aos poucos, sairá do umbral brasileiro e passará, a partir de então, a ser um homem refinado, um santo europeu e, então, enxergará a luz que habita no centro do universo artístico ocidental, coração cultural do mundo que vende suas franquias assim como as inúmeras franquias de lojas de uma determinada marca espalhadas por todo o Brasil. As mais bem-organizadas oferecem um gerenciamento padrão, treinamento a todo o conjunto de funcionários.

No Brasil, o conceito simples, livresco, tecnocrata é o mais apreciado por autoridades. É comum no Brasil culparmos as classes economicamente menos favorecidas por uma ausência de cultura, porque elas optam pelos seus próprios universos. Os dois Brasís não se falam, o real e o, digamos, cômico, não se vêem, não se bicam, um não quer saber do outro. O doutrinador, o domador de chicote na mão, insiste na opressão, no blefe intelectual e subjuga a fera e seus instintos que somos nós, povo. Sim, porque “povo brasileiro” é o que somos todos, até mesmo o doutor e o maestrão, por menos que eles acreditem, agimos e pensamos como povo. Há uma frase que diz que o rico é um pobre com dinheiro, em parte, concordo, apesar de que, culturalmente, o pobre, por ser menos contaminado pela chibata do doutrinador eurobrasileiro tem a possibilidade de criar livre, distante desse ideário estatutário que cobra nobreza artística como clichê de etiqueta comportamental.

A inclusão social através de toda essa lógica é a maior mentira que temos e que é comprada à balde no Brasil. Não há contraponto a isso, o nosso pensamento institucional já comprou a idéia de doutrina há muito. É comum, dentro de suas academias, o estudo de algo superficialóide, da mesma forma que é normal não ter conhecimento da cultura do seu próprio país, ou seja, da sua existência, dos seus códigos e dos seus sentimentos.

Essa bíblia sagrada, lida e decorada por nossos pastores culturais dentro das academias brasileiras de cultura, faz coro com toda essa doutrina que tem um papel inverso da profundidade, da extensão da arte, da tal arte universal que lhes serve de gancho para a proliferação do esnobismo, das manchetes culturais. Porque sim, todo este manancial de sabedoria saída de toda essa improdutiva lógica civilizatória aplaudida com gosto por essa linha de pensamento social, reduz a arte a um objeto sem valor algum, frio, sem sentimento, sem justificativa humana.

Fico às vezes a pensar no mico que é o nosso doutor cultural, sentado à mesa com seu colega europeu conversando sobre a tal arte eurouniversal. O nosso doutor, com sua erudição de meia-pataca neste quesito, de meia-dúzia de livros, desses iguais aos de um vestibulando e suas apostilas cheias de truques, perceberá que é melhor ficar calado e optar pelo antigo conselho caipira, “ficar de migué ou de tumé, no famoso anran”, quietinho para não dizer besteiras. Até aí, nada demais, o duro, o mico, a vergonha, a irresponsabilidade é quando o seu colega europeu lhe perguntar sobre o seu povo, sobre a sua cultura e ele não souber de absolutamente nada.

No Brasil chega a ser normal não saber de si. Essa deformidade, essa absurda leniência, fruto da burrice e do preconceito, nos põe cara a cara com uma realidade dura, mas concreta. Somos absolutamente ignorantes, irresponsáveis com o nosso próprio universo. A nossa lógica acadêmica está longe da compreensão maior de arte, longe, a léguas de um conceito republicano. O artista, a arte não são fatores isolados de uma sociedade, esta condição tão primária ainda não foi entendida por nossos doutores. Por isso, andam a martelar a mesma cantilena durante duzentos anos.

Carlos Henrique Machado Freitas

Bandolinista, compositor e pesquisador.

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