Categories: PONTOS DE VISTA

A última obra


Com seus inúmeros eventos, a Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo tem se tornado um ponto de encontro para troca de idéias, debates, intercâmbio entre pensadores e interessados em literatura e espaço de produção de conhecimentos.

Recentemente participei de uma mesa redonda com o mote Estética e Subjetivação. O tema era intrincado, complexo e ao mesmo tempo, muito simples, o “suicídio”, a partir da obra de dois poetas de origens distintas: uma anglo-saxônica, Silvia Plath, e um latino, Mário de Sá Carneiro. Como debatedores foram convidados Ana Cecília Carvalho, da UFMG, e Lino Machado, da UFES. A moderação ficou a cargo de Ítalo Campos.

O suicídio foi sempre uma atitude humana controversa, alvo de rejeições as mais diversas, mas também de admiração. Visto, ora como algo corajoso e heróico, ora como covardia e fraqueza. Abrir mão voluntariamente da própria vida será sempre um gesto contraditório ao qual não conseguimos compreender nem explicar satisfatoriamente, seja por meio do instrumental da psicanálise, seja através dos impulsos auto-destrutivos presentes muitas vezes nas pessoas sensíveis e criativas que catalisam a dor do mundo.

Nas pessoas comuns, ele desperta a compaixão e a recusa em aceita-lo. Na literatura, esse ato adquire geralmente traços gloriosos e atraentes. Inúmeros poetas se suicidaram ao longo da história, entre eles, os dois poetas escolhidos pelos debatedores.  Basta lembrarmo-nos dos “Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe, obra que tive o prazer de traduzir para a Editora Liberdade, que provocou na Europa no final de século XVIII e início do XIX uma onda de suicídios sem igual. Werther, o personagem do romance, se suicidou pela impossibilidade de realizar plenamente seus desejos amorosos.

Na mesma época, Schopenhauer escrevia que a vida é dor, e que querer significa desejar, e o desejo implica a ausência daquilo que se deseja. Desejo seria, portanto, privação, deficiência, indigência e, por conseguinte, dor, e o prazer a cessação da dor, sendo desse modo negativo e transitório.  Para o filósofo alemão, o homem tem como objetivo libertar-se da realidade da dor, mas o suicídio não serve a esse objetivo, pois o suicida almeja a vida, ele destrói a vida, mas não a vontade de viver que não fica diminuída com o seu gesto. Por outro lado afirmava que as artes são libertadoras, pois o prazer que oferecem corresponde à cessação da dor de existir, embora temporária e parcial.

Borges, por sua vez, afirmou a propósito de Kafka que “cada escritor cria a seus próprios precursores, pois seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro.” Porque se Kafka nada tivesse escrito não perceberíamos seus traços nos antepassados.

Nesse sentido, poderíamos pensar que o escritor ao se suicidar, escreve com ele a sua última obra, pois tudo o que produziu até então será reinterpretado à luz desse ato. Tal como tendemos a considerar o poeta cego como um sábio, o poeta suicida nos parece um gênio incompreendido e, portanto, o sentido de tudo o que deixou ganha em profundidade e alcance, transcendendo em muito o seu curto período de existência.

Empédocles se lançou no Etna para se reintegrar à natureza, o poeta deixa de viver, talvez, para ampliar o significado e a importância da literatura na vida humana o que contraditoriamente o poeta João Cabral de Melo Neto chamou de “voo do pássaro aprisionado”.

Erlon José Paschoal

Gestor Cultural, diretor de teatro, dramaturgo e tradutor. Foi gerente na Secretaria de Políticas Culturais do MinC e é sub-secretário da cultura do Espírito Santo.

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