Toda ênfase que se dá aos benefícios e consequências produtivas da vida cultural brasileira se aloja no discurso de proteção e continuísmo da Lei Rouanet, para que não lhe toquem sequer um fio de cabelo.
Os antologistas de uma versão desconectada da realidade cotidiana da cultura nacional bradam um conjunto de sistemas do qual, segundo eles, somos reféns.
“Sem os tais elementos da obediência a estas normas fazendárias a arte brasileira estará liquidada”, sentenciam os alarmistas em seus exercícios diários de cavaleiros do apocalipse.
A essencialidade destes dispositivos estatísticos manipulados em grosso modo pelos que crêem que arte é operação financeira, insistentemente aplicam o raciocínio econômico em tudo e revestem, numa remodelada legislação privada, conceitos de doutrina que lhes garantam a continuidade de privilégios.
Para eles parece correto afirmar que operações financeiras têm luz própria dentro de um divisor simbólico tão delicado que estrutura e gera a produção de arte nacional.
Instituidores do direito soberano do capital sobre a arte, trilham caminhos demarcados pela doutrina neoliberal que fez da Lei Rouanet verdadeiros ninhos de distribuição de lucros e glórias para grupos imunes a fatores sociais e realidades econômicas do país.
O que precisa ser dito em tom claro, em alto e bom som, é que não existe fundamentalismo poeticamente pudico ou ódio incitado contra o lucro na arte, ou mesmo campanha de rivalidade sistematizada contra a remuneração dos envolvidos com a produção cultural.
O que se exige é uma lei que tenha verdadeiramente sentido de solidariedade como valor jurídico, preconizada pelo espírito justo e proporcional, ou seja, um conjunto de aspectos que está à milhas de distância do clichê que rege o espírito da Lei Rouanet, seletiva socialmente e com o agravante, pelo seu formato, transformou-se num convite a novas e inéditas práticas de fraudes políticas, sociais, artísticas e contábeis, um esgoto a céu aberto, um valão fomentador de pestes e pragas.
Essa presunção de mercado metropolitano dominante está vinculada a um só dispositivo da Lei Rouanet, prosperidade intelectual via captação restituível. Esta é a mola mestra da tal indústria brasileira de produção cultural.
Não há nisso qualquer virtude, não existe mercado de produtos culturais, e sim de projetos e produção, o que, na realidade, devido a tais práticas, traz a fisionomia de um mecanismo extrativista, colonial-facista.
A geração de subemprego-informal-temporário é o grande troféu de inclusão social da indústria cultural de fundo de quintal, regional e provinciana que a Lei Rouanet apresenta.
Ficcionistas da economia criativa, os auto proclamados “anjos da cultura” com seus oratórios privados em suas “casas do saber” carregadas de brilho de cristal e completa ausência de sedução humana, são à luz da verdade, pensionistas do Estado.
Estes grupos de empresários abolicionistas do capital se fazem passar como sociedade representativa, de quem? Do artista, da arte, da cultura brasileira, do povo?
Suas finalidades altruístas estão ligadas a interesses restritos e atendem tão somente a seletos grupos econômicos, buscando na discursiva excepcionalidade estratégica, um referendo de grupos fechados, capazes de entregar fermentadas contribuições públicas sem freios ou critérios republicanos.
Adicionam agora nesta receita de leite derramado, com a degola de seus intermináveis benefícios, cobranças de ressarcimentos como forma de manutenção de seus reinados, uma espécie de “seguridade cultural”.
As viúvas da Lei Rouanet, denominadas por uma faixa específica de dependentes irrecuperáveis deste mecanismo. Tributeiros compulsivos vestem-se como mosqueteiros em prol da vida cultural brasileira. Mas o que fazem fora dos tribunais de arrecadação? Reclamam mais e mais verbas do governo federal.
Afetadas frontalmente com as mudanças do jogo, essas viúvas vinculam aos seus ideais, receitas de exclusividade cultural, um alarido de importância estratégica, mas, com uma pedagogia arrogante, pois nunca se importaram com a arte e muito menos com o artista brasileiro.
Os empresários ”mecenas”, com as benesses da Lei Rouanet, sempre se sentiram reis. Milicianos, vingadores da cultura paralela, sempre tiveram licença para exterminar e nas mãos, como ilusionistas, manipularam todas as cartas do jogo político-empresarial, numa revoltante prática de cangaço mercantilista. Tudo em nome do marketing cultural, todo um sobre-esforço da sociedade foi jogado nesta receita de comércio político de impostos, intervenção de classes e a malandragem em forma de labirintos conceituais.
Tiveram uma constituição particular, emblemática, apresentando-se como “competentes exclusivos”, diante do próprio povo.
Uma das principais discussões travadas no âmbito da Lei Rouanet, está justo na infração da própria lei.
O tributarismo foi o grande representante dos burocratas, maioria absoluta dos contemplados com esse contrato de surdina, entre pares de uma mesma sociedade privada entrecruzada.
Este estratégico anonimato que durou 18 anos teve que sair da toca da raposa e, agora, desnudado diante da opinião pública, berram por uma particular liberdade, propriedade, igualdade e justiça.
Diante desta nova realidade se debatem em esperneio de autopromoção de idoneidade, pertinência e aptidão.
Ora, a proporcionalidade sugerida por suas práticas já desmontam qualquer idéia de pertinência, e mais, a Lei Rouanet não é e nunca foi idônea, tanto que este escândalo é nosso, bem da nossa elite econômica sem paralelos no mundo.
O desprezo pelo humano
Uma das marcas mais ferozes deste apelo corporativo embutido na Lei Rouanet, foi o desprezo pela mão-de-obra artística. A maioria das funções que recebeu o selo de qualidade funcional para se beneficiar dos aportes financeiros está no campo do mercado de marketing, isso se tornou mais que uma exigência formal dentro desta engenharia, de reestruturação econômica, da “cultura brasileira” e, pouco a pouco, o capital humano em decorrência desta sórdida política, foi perdendo importância provocando ainda mais recessão neste sensível mercado de trabalho.
Sim, houve uma perda da prática criativa, uma condição essencial para a sobrevivência dos artistas brasileiros. O “babilonismo” de grandes empresas captadoras, de fundações e institutos culturais desencorajou as práticas individuais ou mesmo coletivas, como movimentos artísticos, cooperativas e outras formas de busca de oxigênio neste mercado.
Cobrar visão critica de um ambiente tão contaminado pela argüição de institucionalidade e apelo de qualificação mecânica, soa hoje como uma demagógica retórica nesta espécie de integralismo organizacional.
Observando o movimento destas fechadas sociedades, podemos complementar a nossa critica a isso que chamam de economia criativa.
A rigor o que assistimos durante estes anos de Lei Rouanet foi o avesso de uma agenda de promoção da integração nacional.
Essa idéia palestrada nos cursos profissionalizantes de produção cultural buscou a essência gananciosa, financeira e individual deste ambiente e não de valores positivados em princípios concretos como a força simbólica da cultura para o desenvolvimento do Brasil.
O apelo vitimizado que infantiliza a discussão
Com o escopo de impor um manifesto individualizado, a grita de natureza genérica em prol do continuísmo da Lei Rouanet tentou buscar, assim como legisladores particulares do país, sustentação jurídica absolutamente inadequada para esta discussão.
Iniciaram a luta sem perceber o risco de uma analogia imprópria, alegórica e até ingênua, da questão tributária, mas mergulharam como forma de resistência, no instrumento publicado do editorialismo encomendado da grande mídia, como acidentados que procuram identificar num certo dirigismo a lesão corporal que endosse seus catálogos de mentiras democráticas para, assim, defenderem com todo um arsenal de artilharia pesada uma agenda de empreendimento unilateral e mistificador.
No entanto, é desagradável ver uma arena de discussão transformar-se em capitania de catarses com total perda de rumo. Pior que isso é ver as mesmas pessoas cortejarem imensas e arrogantes instituições que esmagaram sonhos de milhares de artistas. Para eles que perdem com a mudança da Lei Rouanet, o delito concreto está na quebra de paradigmas. Estes mesmos que se acham empregadores do mercado de arte, se dizem responsáveis por denunciar ditaduras, censuras, tiranias e etc. Os mesmos que ovacionaram toda a manipulação a que a arte, os artistas e o próprio tributo sofreram pelas mãos pesadas dos representantes mais raivosos do capital diante de uma lei que é a imagem do lixo tóxico travestido de ferramenta transformadora do complexo criativo de uma litúrgica caminhada expansionista do neoliberalismo no século XX rumo ao XXI.
A Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo abriu uma…
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) lançou a página Aldir Blanc Patrimônio,…
Estão abertas, até 5 de maio, as inscrições para a Seleção TV Brasil. A iniciativa…
Estão abertas, até 30 de abril, as inscrições para o edital edital Transformando Energia em Cultura,…
Na noite de ontem (20), em votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) no Congresso…
A Fundação Nacional de Artes - Funarte está com inscrições abertas para duas chamadas do…
View Comments
Carlos, perfeita a análise que vc sempre faz da formação e manutenção das elites no país, muito bem traduzidos nas políticas neoliberais dos anos 90, das quais a Lei Rouanet é apenas mais uma. Mas o mecanismo abarca muito mais do que isso. São 3 mil projetos incentivados por ano e muitos artistas, como você mesmo, já se utilizaram desse recurso, por ser o único existente (e, por menos que goste, efetivo). Não vejo nenhuma chance numa análise mais abrangente, macroeconômica, de termos mais dinheiro público para a cultura. Não acho que devemos desistir de lutar por isso, muito pelo contrário. Apenas não considero salutar "mudar as regras", como vc diz, sem a garantia de dinheiro e fortalecimento do fundo. Uma vez fortalecido e abastecido, o mecenato naturalmente será minimizado.
Concordo com vc que a discussão tornou-se estéril, esquizofrênica até. Mas é preciso enxergar além das ideias pré-concebidas de um mercado individualista e desumano. Há muitos Vales dos Tambores por aí. Eu tenho contato cotidiano com vários deles. E acho uma pena combatermos o neoliberalismo dando um tiro de misericórdia neles.
Abs, LB