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Arte não é mercadoria

Existe hoje uma forte tendência, reforçada pelos meios de comunicação e, infelizmente, adotada por vários governos, de que cultura é sinônimo de entretenimento, diversão. Ouve-se frequentemente as frases: “quero ir ao cinema para me distrair…”, “não quero ir ao teatro para pensar, e sim relaxar…”, “já trabalho muito durante o dia, à noite quero esquecer”.

Todas essas frases refletem uma realidade inquestionável. Entretanto elas definem também uma questão de política cultural de suma importância: se as atividades ditas “culturais” praticadas pela sociedade são escolhidas pelo seu caráter de entretenimento, diversão, esquecimento e não pelo seu caráter de “formação evolutiva dos valores intelectuais, etc.”, cabe ao governo incentivá-las? Ou mesmo se concluirmos que elas necessitam de apoio governamental por serem de interesse social, seria isso sinônimo de política cultural a ser aplicado pelo Estado?

Seria impensável, dentro da política de incentivo cultural de países como os Estados Unidos, por exemplo, oferecer deduções fiscais a empresas ou indivíduos para aplicação em projetos de Hollywood ou Disney, ou eventos únicos como shows de rock ou musicais da Broadway. Países onde existe isenção fiscal para estímulo à cultura, definem claramente o que é cultura, e onde os recursos podem ser aplicados. A cultura de massa, aquela “imposta pela indústria cultural” definida no Aurelião, não se credencia a ter seus eventos produzidos com o dinheiro do contribuinte.

Incentiva-se aquilo que, primordialmente, tem mérito mas não recursos para seu desenvolvimento. Aquele ou aquilo que já dá lucro, ou cuja função traz benefício mínimo à sociedade, não necessita de incentivo. Ou sobrevive pelo apelo popular ou valor intrínseco, ou caduca.

Investe-se naquilo que dá resultados. Um bom investidor na bolsa de valores não se apega emocionalmente às suas ações, mas ele é levado a agir pela racionalidade de números que mostram resultados positivos. Investe-se naquilo que, potencialmente, e baseado em fortes dados reais, virá a dar resultados maiores do que o montante originalmente aplicado.

Como política cultural essa premissa deveria ser equivalente: investir em distração, relaxamento, entretenimento, não é investimento, é gasto, pois os retornos são efêmeros e nada de substancial nessa aplicação será medido nas gerações presentes e futuras de nossa sociedade.

Retornando às definições dos dicionários acima citados, podemos concluir que cultura não é evento e, sim, processo. Pela sua própria natureza, ela só se manifesta de maneira contínua, focada, empregando-se elementos das mais variadas formas de manifestações artísticas que visam, não o momento em si, mas a transformação paulatina e constante de uma sociedade possibilitando a revelação e o aprimoramento do “cabedal de conhecimentos” que a permeia. A arte, a ciência e a educação, são os maiores remédios a combater a massificação da ignorância. Se permitirmos o uso da cultura como analgésico e não como antídoto, aliviamos temporariamente o sintoma mas não curamos a sociedade da perniciosa influência que a cultura de massa impõe a essa mesma sociedade.

Essa distorção do sentido original de se incentivar a boa cultura não se limita apenas à Lei Rouanet, mas ela se faz presente em praticamente todas as esferas governamentais. Exemplo disso foi o recente embate entre a prefeitura do Rio de Janeiro e a Orquestra Sinfônica Brasileira. Citando a necessidade de se economizar recursos para aplicá-los na preparação da Copa do Mundo e das Olímpiadas (ambos eventos temporários, lucrativos, que deveriam facilmente ser apoiados pela iniciativa privada), o prefeito carioca retirou subsídio correspondente a 25% do orçamento total de uma das mais tradicionais orquestras do país. Ou seja, a manutenção de um organismo cultural que vem tendo um papel importante no processo de emancipação cultural do Rio de Janeiro, um instrumento essencial na qualificação da cidade maravilhosa como polo cultural internacional além do samba e do carnaval, ficou relegada a segundo plano diante do desafio de se conseguir recursos adicionais a serem gastos em eventos que pela própria popularidade e lucratividade poderiam se manter com as próprias pernas. Felizmente o prefeito voltou atrás na sua decisão, embora citasse argumentos subjetivos e imediatistas para justificá-la.

Outro exemplo do perigo em se deixar levar por uma interpretação errônea do que é cultura e do que deve ser incentivado, é a criação do Vale Cultura. A ideia em si é digna de elogios. Passa, a toda a sociedade, a mensagem de que cultura é importante e de que todos merecem acesso a ela. Pensando assim, o governo facilita esse acesso ao promover uma ação social que convida o brasileiro a frequentar atividades culturais que venham a contribuir para que a sociedade brasileira caminhe rumo a um amadurecimento cultural real.

No entanto, o custo estimado para a implantação do Vale Cultura é de R$ 7 bilhões por ano, enquanto o orçamento total de todo o Ministério da Cultura, de acordo com seu próprio site, chega perto dos R$ 3 bilhões. Ao não definir claramente qual o benefício disso em relação ao seu custeio, estabelecendo parâmetros específicos para a utilização do Vale em real cultura, como se depreende da sugestão ou de TV a cabo ser uma opção plausível, o governo entra justamente na armadilha citada por Aurélio, ao permitir que o cidadão seja “entretido” por aquilo que é imposto pela indústria de cultura de massa às custas do contribuinte. Seria como se incluíssemos na cesta básica itens como mortadela, salgadinhos, refrigerante, margarina, etc. Tudo uma delícia, mas o efeito a longo prazo é devastador para a saúde do brasileiro.

Assim sendo, uma boa política cultural seria a aplicação de recursos do governo (na verdade, do contribuinte, já que o governo em teoria não tem dinheiro próprio) em atividades culturais e educacionais, instituições, organizações “ligadas à criação e difusão das belas-artes”, que visem a formação evolutiva cultural de sua sociedade, cobrando daqueles que se propõem a trabalhar pelo cultivo de uma sociedade melhor, resultados palpáveis que justifiquem esse fundamental investimento. Por meio da capacidade e qualidade de trabalho de seus habitantes nosso país encontrará a produtividade que define as grandes nações, ao mesmo tempo que o cultivo da civilidade levará certamente a mais igualdade, justiça e respeito por todos.

Investir pesadamente na educação e cultura de nosso povo, é a melhor maneira, embora não a mais rápida, de alcançarmos legitimamente uma posição de destaque internacional consolidada na capacidade criativa, produtiva e crítica de todos os brasileiros.

*Versão na íntegra de artigo publicado no jornal Estado de Minas no dia 8/6/2013

Fabio Mechetti

É diretor artístico e regente titular da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.

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