Edital confirma política do MinC de descentralização dos recursos. Figurões acusam “perseguição” aos “consagrados”. Para governo, regras vêm para acabar com privilégios

Brasília – Tudo começou com uma crítica aparentemente despretensiosa do poeta Ferreira Gullar divulgada na imprensa no dia 21 de dezembro de 2005. Gullar afirmou ter ouvido falar que as ‘coisas não iam bem no Ministério da Cultura’ e que havia centralização na pasta. Instigado a detalhar a situação, revelou-se desinformado. O comentário capenga do poeta gerou uma resposta do secretário de políticas culturais do ministério, Sérgio Sá Leitão, que rebateu de forma irônica perguntando se ‘a centralização não era marca registrada dos finados regimes stalinistas dos quais Gullar foi e segue sendo um defensor?’, em uma clara referência à relação de Ferreira Gullar com o Partido Comunista Brasileiro (PCB).

A resposta de Leitão foi a faísca para uma chuva de críticas e produtores consagrados como Luiz Carlos Barreto e Zelito Viana organizaram um abaixo-assinado endereçado ao ministro Gilberto Gil pedindo a demissão do secretário. Os altos dirigentes da pasta, entre eles o próprio Gil, reagiram e foram à imprensa revelar o que dizem ser a razão verdadeira das críticas: a não contemplação de ‘figurões’ do cinema no resultado do edital do programa de apoio ao cinema do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que será divulgado nesta quinta-feira (19). O BNDES é a segunda maior estatal financiadora do cinema brasileiro – logo atrás da Petrobras – e reserva cerca de R$ 17 milhões para a área apenas neste ano.

A disputa está colocada entre 30 projetos pré-selecionados para defesa oral dentro de um universo de 178 inscritos. A ira teria sido motivada após Viana, Barreto e outros nomes de peso no mercado como os próprios filhões do ‘barão’, Bruno e Fábio Barreto, Paula Lavigne e Paulo Thiago terem tomado conhecimento que não teriam projetos aprovados. Em entrevista à revista Carta Capital, o ministro afirmou que a onda de críticas mirou nas mudanças feitas por seu ministério na política de recursos para o audiovisual: “Acredito que essas queixas são em relação ao atendimento geral que o ministério e as estatais vêm dando aos filmes, adotando políticas públicas de fomento um pouco mais abertas e democráticas. Acho que tem a ver com a discriminação positiva que estamos tentando fazer, focando áreas que não eram focadas e estabelecendo um conflito produtivo com estes setores”. “Ou estamos diante de uma campanha concertada contra o ministro [Gilberto Gil] ou diante de pessoas que não se sentem satisfeitas porque o ministério segue as regras do capitalismo democrático”, saiu em defesa o secretário de políticas para o audiovisual do MinC, Orlando Senna, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo.

Por meio de cálculos com base nos dados do Minc, a reportagem da Carta Maior verificou que, de 2000 a 2005, houve uma alteração no perfil da distribuição regional das verbas. Um exemplo é a participação da região Nordeste no orçamento executado da pasta, que subiu de 9,11% para 18,8%, enquanto os montantes destinados à região Sudeste caíram de 57,8% para 53,9%. Em termos absolutos, levando-se em consideração o crescimento do orçamento da pasta no mesmo período de R$ 271,6 milhões para R$ 398,7 milhões, os projetos do Nordeste receberam cerca de R$ 43,47 milhões ano passado frente a R$ 17,3 milhões em 2000. Já as iniciativas da região Norte mais que dobraram seu montante de recursos no mesmo período, saindo de R$ 6,1 para R$ 14,67 milhões.

Além dos investimentos diretos de recursos do ministério, o processo de descentralização foi operado também no processo de seleção das estatais. De acordo com Sá Leitão, integrantes da pasta em parceria com a extinta Secretaria de Comunicação do Governo (Secom) estabeleceram diálogo a partir de 2004 com a Petrobras e o BNDES no intuito de imprimir essa nova lógica aos recursos destinados a produções cinematográficas. A razão da investida tem motivos fortes: as duas estatais são as que mais investem em cinema no país.

Ainda segundo dados do MinC, além do montante de R$ 17 milhões do BNDES, a Petrobrás deve investir mais R$ 30 milhões em 2006. O aporte das duas estatais soma quase o dobro do orçamento do ministério para o setor neste ano (R$ 25 milhões) e cerca de 33% da soma total da verba que o MinC deve ser destinada ao setor neste ano (cerca de R$ 140 milhões) – incluídas verbas da pasta, das estatais e captação junto a incentivos. O zelo dispensado pelo MinC e pela Secom ao processo de distribuição destas verbas rendeu parceria que determinou a inclusão de uma cadeira de cada um dos órgãos no Conselho Consultivo do Programa Petrobrás Cultural (PPC), e um novo processo de seleção no BNDES, que estipulou critérios mais rígidos e democráticos.

Sá Leitão argumenta que a reclamação dos chamados ‘consagrados’ não tem fundamento. Ao contrário, o ministério teria finalmente atuado para construir regras que possibilitarão o funcionamento de um mercado regular em detrimento da lógica da concentração de verbas em poucos e grandes produtores, o que impedia o aparecimento de novos atores. “Antes não havia edital, comissão e nem regras públicas e claras. Quem tinha ‘entrada’ com diretores e altos funcionários acessava os recursos. Agora estipulamos regras e procedimentos para que estes recursos atendam à complexidade do cinema nacional, que precisa de filmes de experimentação, de projetos que expressem a diversidade cultural do país mas também de obras que disputem o mercado”.

Essa não é a primeira vez que este grupo ataca o ministério. O embate já vem acontecendo desde 2004 e contou, além da gritaria contra as alterações dos procedimentos de seleção das estatais, com o episódio da proposta de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav). O teor da proposta, com forte caráter regulador e recolhimento de taxas na bilheteria e na veiculação de produção em TV aberta, foi duramente criticado pela mídia. A ofensiva foi resultado de uma campanha comandada pelos grandes grupos de televisão e de distribuição e exibição do setor cinematográfico, que não admitiam qualquer tipo de taxação sobre seus lucros mesmo que com finalidade de fomento e incentivo à produção para pequenos realizadores.

Em entrevista à Folha de São Paulo, Luiz Carlos Barreto atacou o ministério e tentou configurar um quadro de ‘perseguição’ aos ‘consagrados’. “De uns tempos para cá, a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura passou a ter como objetivo que filmes feitos em co-produção com as majors [grandes distribuidoras de matriz norte-americana] e em associação com a Globo Filmes não recebam mais incentivos”. Sá Leitão rebate citando como exemplo o próprio edital da Petrobras, que possui três tipos e valores de incentivo de acordo com o currículo do realizador. “Isso é sinal claro de que já reconhecimento de obra prévia. Não é verdade que haja preconceito contra cinema ‘popular’. Pelo contrário, é diretriz nos editais que se considere o potencial de bilheteria”, diz.

Problema de fundo – Em meio ao fogo cruzado entre ‘consagrados’ e MinC, há uma discussão mais profunda que passa desapercebida e vai muito além da distribuição das verbas orçamentárias, de estatais e provenientes de incentivos: a revisão do atual modelo do audiovisual do país. Na opinião de Paulo Boccato, presidente do Congresso Brasileiro de Cinema (CBC – fórum que reúne 55 entidades representativas da área de cinema), o embate entre ‘consagrados’ e MinC se conforma como uma falsa polêmica. “Precisamos pensar em novas formas de financiamento do setor para além dos patrocínios, isenções e editais. Iniciativas como fundos de investimento e apoio direto de longo prazo e com juros baixos, linhas de crédito para empresários do setor de forma a garantir verbas para as produtoras e não somente para os projetos”.

Na opinião de Boccato, a política de descentralização do governo vem dando resultados, mas é preciso ir mais além e diminuir a dependências dos produtores do Estado. “É fundamental possibilitar a entrada de novos atores, mas também é preciso garantir que estes e os que já estão em atividade sobrevivam no mercado”, diz. Uma medida, na sua opinião, seria diminuir os incentivos a fundo perdido, que tem aportado recursos para produtores que nem sempre conseguem boas bilheterias.

Para a deputada Jandira Feghali (PC do B-RJ), é fundamental que o debate sobre a constituição de um mercado audiovisual de forma descentralizada vá para além do cinema e discuta também a veiculação desta produção na televisão aberta. Um exemplo é o PL de autoria da parlamentar que estipula regras que obrigam veiculação de produção regional nas emissoras de TV. “A TV aberta precisa incorporar produção independente e regionalizada. Isso afirma identidade, escoa a produção e gera trabalho”, diz Jandira. Em tramitação há mais de dez anos no Congresso, a proposta dela ganhou novo fôlego após ter sido apontada como prioridade número um pela Conferência Nacional de Cultura, realizada há um mês em Brasília. Depois de um difícil acordo na Câmara, a proposta está agora na Comissão de Constituição e Justiça do Senado esperando pelo parecer do relator César Borges (PFL-BA).

Fonte: Agência Carta Maior

Jonas Valente


editor

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