Observação: Este texto é uma reescrita, pequenos acréscimos e organização de três textos que publiquei em março de 2025.
Sobre a “era dos editais”
Estamos agora acompanhando e vivenciando o processo de implantação da PNAB em todo o Brasil. Na maioria das cidades e estados, o que vemos é um cenário de desespero e correria. O momento está confuso, desgastante e profundamente frustrante.
Creio que é exatamente por isso que precisamos iniciar uma reflexão mais ampla e profunda sobre o que estamos vivendo no fomento à cultura e às artes.
O problema não está apenas neste processo específico, mas na estrutura que nos rege há anos. A fórmula dos editais como principal (ou muitas vezes única) ferramenta de financiamento à cultura chegou ao seu limite.
Neste momento, não desejo – e nem tenho condições – de apresentar soluções. Seria prematuro. Acredito que antes de qualquer proposta, é preciso que o setor cultural reconheça com coragem que este modelo faliu. E que só a partir do reconhecimento dessa falência poderemos iniciar um debate consequente sobre outras possibilidades. Sobre o mundo fora do edital.
Deixo explícito que não sou contra os editais enquanto instrumentos de fomento. O verdadeiro problema não são os editais em si, mas o fato de terem se tornado praticamente a única forma disponível de apoio financeiro à cultura e às artes, deixando de ser uma ferramenta estratégica para se transformar em objetivo final. Os editais foram transformados em meta, e não em meio.
Estamos presos em um sistema imprevisível, sem planejamento de médio ou longo prazo, burocrático e injusto, que transforma os agentes culturais em concorrentes diretos, forçando-os a disputar uns contra os outros, recursos insuficientes para a real demanda do setor. Para quem não tem as benesses dos poderosos, essa é a única alternativa disponível – e, ainda assim, nos empurra para uma lógica de escassez, onde a cada contemplado há centenas de excluídos.
Em diversas cidades e estados, vivenciamos um caos que começa já na formulação dos editais, feita de forma amadora e sem planejamento, até a distribuição dos valores dos fomentos, passando por critérios de cotas mal refletidos (em parte derivados de diretrizes do MinC, mas sem o devido aprofundamento). Tudo isso reflete o desrespeito com os trabalhadores e trabalhadoras da cultura e das artes.
O modelo excludente dos editais
Os editais nos colocam em uma disputa insustentável. Um produtor, um artista ou coletivo que apenas deseja o financiamento justo de seu projeto precisa disputar com centenas de outros, sabendo que menos de 4% das propostas serão contempladas (projeção baseada nos dados da PNAB de Minas Gerais). Isso não pode ser visto como um sistema saudável ou minimamente estruturante.
Além disso, em muitos editais, os valores destinados a cada categoria são ridículos. Como pode um festival artístico – que exige meses de planejamento, equipe qualificada, logística, produção, curadoria e divulgação – receber R$ 60 mil? Como viabilizar uma circulação de espetáculos de artes da cena com um valor que mal cobre os custos básicos? Como montar uma nova obra com orçamentos que mal permitem o pagamento digno de uma equipe? (Estes exemplos referem-se aos valores apresentados pela PNAB de Minas Gerais.)
Isso não é fomento, é esmola.
Essa lógica inviabiliza a profissionalização do setor, empurra os fazedores de cultura e das artes para a precarização, confunde trabalho artístico com trabalho social e obriga os agentes culturais e artísticos a atuarem como voluntários de um sistema que não os reconhece como trabalhadores.
Os limites da avaliação por pareceristas
Gostaria agora de aprofundar a análise sobre um dos aspectos críticos desse modelo: o sistema de avaliação por pareceristas.
Não é minha intenção, de forma alguma, desmerecer esse trabalho, que, quando bem-feito, é fundamental e pode, sim, contribuir significativamente para o processo de avaliação dos editais. Falo a partir de uma experiência concreta: ao longo de 45 anos de atuação na cultura, transitei por diversas funções – artista, gestor público, coordenador de programas culturais, proponente e, nos últimos anos, parecerista. Pretendo continuar atuando profissionalmente como parecerista e conheço de perto a complexidade dessa função.
Reconheço a importância do trabalho dos pareceristas, muitas vezes realizado sob grande pressão, com prazos exíguos e remuneração insuficiente. Sei também dos desafios, especialmente no que diz respeito à assistência, capacitação e orientações oferecidas por parte dos contratantes. Já vivenciei experiências muito bem conduzidas em avaliações das quais participei, mas também testemunhei falhas significativas em outras.
A forma como os pareceristas vêm sendo utilizados nos editais da PNAB, e em outros processos, expõe uma fragilidade estrutural que compromete a transparência e a justiça na distribuição dos recursos.
Uma das principais fragilidades é a falta de clareza e transparência sobre o recrutamento, a capacitação e a metodologia de trabalho dos pareceristas. Esses profissionais são selecionados por processos muitas vezes questionáveis, com critérios pouco transparentes e sem uniformidade entre os credenciamentos. Não há garantias de que suas análises seguirão um padrão técnico minimamente coerente. Esse grau de incerteza gera desconfiança e abre brechas para avaliações arbitrárias e incoerentes.
Outro ponto crítico é o isolamento do parecerista no processo de avaliação. Modelos mais robustos, baseados em comissões julgadoras com representação da sociedade civil e do poder público, permitem que as propostas sejam debatidas coletivamente, garantindo múltiplas perspectivas e maior equilíbrio na tomada de decisões. O desafio do volume de propostas é real – no caso de Minas Gerais, foram mais de dezoito mil inscrições –, mas isso não pode justificar uma avaliação em massa, quase industrial, que impede uma análise criteriosa e aprofundada.
No modelo atual, um ou dois pareceristas atribuem notas sem possibilidade de diálogo ou revisão coletiva. Isso reduz drasticamente as chances de uma avaliação justa e plural, submetendo os projetos à visão unilateral de um avaliador, que pode não compreender o contexto específico de cada proposta.
Outro agravante é que, em alguns casos, há uma completa ausência do Estado no processo avaliativo, delegando integralmente aos pareceristas a responsabilidade pela seleção, sem qualquer mecanismo de acompanhamento, mediação ou controle de qualidade.
A falta de transparência se acentua ainda mais na etapa dos recursos. Há pouca clareza sobre quem revisa os pedidos (se são os mesmos pareceristas da primeira avaliação ou novos avaliadores) e sobre qual a metodologia é aplicada nessa reanálise. Essa imprecisão fragiliza o sistema e o torna suscetível a injustiças. Normalmente, é na análise dos recursos que se explicitam as falhas: reclamações volumosas de pontuações incoerentes, avaliações contraditórias e insegurança generalizada entre os proponentes.
Esse tipo de erro mina a credibilidade dos editais e aprofunda a precarização do setor, transformando o fomento em um jogo de sorte, em vez de um instrumento de fortalecimento das artes e da cultura.
O que está em jogo aqui não é apenas a necessidade de ajustes pontuais, mas a urgência de repensar todo o modelo de fomento à cultura e às artes no Brasil. Os editais, da forma como existem hoje, não dão conta da complexidade e diversidade do setor. Precisamos avançar para políticas de financiamento estruturantes, contínuas e democráticas, que garantam não apenas a sobrevivência dos artistas e produtores culturais, mas também a sustentabilidade e o crescimento da cultura brasileira.
Se não encararmos essa discussão de frente, seguiremos reféns de um sistema caótico e bagunçado.
A gincana como política cultural
A Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), celebrada, com razão, por ter devolvido musculatura ao fomento à cultura e às artes no Brasil, infelizmente reforçou ainda mais a centralidade dos editais.
Em Minas Gerais, mais de 18 mil projetos foram inscritos, e apenas uma parcela ínfima será contemplada. Basta citar um dos poucos editais com resultado publicado – o de circulação de espetáculos de teatro –, que recebeu mais de 400 inscrições e selecionou apenas 26 propostas. Qual política pública pode se satisfazer com esse tipo de relação entre demanda e resposta?
Esse desequilíbrio não estrutura o setor. Pelo contrário, ele o precariza, estimula a frustração, a exaustão e a desorganização.
O que vivemos hoje é a gincana da sobrevivência: o poder público se dedica a lançar, avaliar e pagar editais – como se isso fosse suficiente. À sociedade civil resta correr atrás, inscrever-se no maior número possível de chamadas públicas, na esperança de ser contemplada em alguma.
Isso nos condena à lógica do imediatismo, esvaziando qualquer capacidade de planejamento – seja de curto, médio ou longo prazo. Como pensar o futuro de uma política cultural se sequer sabemos como será a próxima rodada de editais da PNAB?
Mais grave ainda é a sobreposição descoordenada de editais entre estados e municípios, frequentemente com o mesmo objeto e foco. Não há articulação, não há coerência. Isso exige uma reflexão urgente sobre a responsabilidade do Ministério da Cultura na coordenação nacional desses instrumentos, para garantir que os editais estaduais, municipais e federais se complementem – e não se canibalizem.
Um dos aspectos mais frágeis – e perigosamente esquecidos – é a ausência de avaliação. Os editais se sucedem sem que saibamos, de fato, seus impactos reais. Não se analisa o que foi transformado, o que se estruturou, o que ficou pelo caminho.
Essa ausência de avaliação sempre existiu, mas foi acentuada pela avalanche de editais originados da LAB, LPG e PNAB. Criamos um ciclo sem memória, sem crítica, sem acúmulo – e, portanto, sem avanço.
Por fim,
outro aspecto que precisamos aprofundar é a relação entre a Cultura e a Arte no contexto do fomento no Brasil. Ao tratar genericamente do “fomento à cultura”, muitas vezes apagamos as especificidades das artes, que têm tempos, práticas e necessidades próprias. A arte exige políticas que respeitem sua vocação para o risco, a criação e a liberdade estética. Construir um novo modelo de fomento implica reconhecer que as artes não são um apêndice da cultura, mas uma, repito, uma das suas expressões mais profundas e vitais. Enfim, merece um outro artigo.
Enquanto a política cultural brasileira continuar se resumindo a uma sequência frenética de editais, viveremos presos à lógica da aleatoriedade. Precisamos parar. Precisamos olhar. Precisamos escutar. Precisamos pensar. Outro modelo é possível — mas ele exigirá coragem, escuta e reinvenção. A arte e a cultura brasileiras merecem mais do que uma gincana. Merece um projeto de futuro.
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