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Controle ou seja controlado

O ponto de partida para a realização da pesquisa-ação intitulada Ctrl-V foi o meu envolvimento com a construção da Convenção Internacional, no âmbito da UNESCO, para promoção e proteção da diversidade cultural.

Conheci e passei a colaborar ativamente com a Internacional Network for Cultural Diversity (INCD) em 2001, numa conferência na Cidade do Cabo, na África do Sul. Dali em diante, o tema passou a direcionar todos os meus esforços de pesquisa. Participei ativamente da INCD e das discussões em torno do tema, em conferências, reuniões internacionais, articulações com governos e com organismos internacionais, como a própria UNESCO.

O Brasil teve participação destacada nesse processo, sobretudo a partir de 2003, pela presença ativa de Gilberto Gil, músico e compositor que ocupou o Ministério da Cultura neste período, com quem colaborei pelo lado da sociedade civil. Estivemos, cada qual com a sua função, em diversas dessas conferências, como na Croácia, Senegal, China e, por fim, no Brasil, em 2006, quando o ministro organizou a conferência pelo lado dos governos e eu pelo lado da sociedade civil. Na época eu ocupava a vice-presidência da RIDC.

A Convenção da UNESCO tinha sido aprovada no ano anterior, com uma votação inédita e avassaladora. Estados Unidos e Israel foram os únicos países a votar contra o documento, contra 148 países-membro a favor. Durante todo o processo de negociação, o país presidido por George W. Bush pressionou fortemente todas as delegações, tentando dissuadir os Estados-membros aliados a deliberarem a favor da convenção. Mesmo a presença ameaçadora de Condoleezza Rice durante a votação não foi suficiente para abafar a derrota avassaladora dos EUA.

Esse processo todo revela a importância estratégica do mercado internacional de audiovisual para a consolidação dos EUA como potência mundial, mas já se mostrava anacrônica e ineficaz. Quando o resto do mundo resolveu atentar para a articulação entre poderio econômico e simbólico-cultural, a indústria audiovisual dominante já apresentava sinais de mudança em sua lógica de sustentação de poder, transformando-se no principal instrumento de difusão do que chamamos de globalização econômica, que também é cultural. A função estratégica antes atribuída ao poder imperialista norte-americano agora se configura cada vez mais como mecanismo de difusão das grandes corporações multinacionais.

Ainda assim, valia a pena investigar a correlação de poder da indústria cultural com o Estado norte-americano, as indústrias bélica e financeira, e a sociedade de consumo como paradigma cultural do processo de globalização, engendrado como um projeto imperialista. Uma cultura única, com valores, sentidos e visões de mundo mais ou menos homogêneas se alastrava pelo mundo a partir do domínio absoluto do mercado da imagem. Um mergulho sobre os processos históricos que possibilitaram a criação do oligopólio global das chamadas majors norte-americanas e suas relações diretas com as políticas internacionais e o grande capital fazia-se necessário.

A leitura crítica da Convenção é imprescindível para compreender as motivações de Ctrl-V. O relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) de 2004, intitulado Liberdade Cultural num mundo diversificado, revela as bases políticas que justificam uma intervenção dos organismos internacionais no campo do audiovisual.

Os caminhos teóricos deixados pela Escola de Frankfurt a respeito dos riscos e implicações de uma nova indústria cultural, em plena ascensão naquela época, e a profunda alteração nos sentidos e significados da arte, foram excelentes pontos de partida para a nossa investigação teórico-prática.

A influência de Marshall McLuhan, ainda na universidade, foi preponderante para a compreensão da complexidade e da onipresença dos processos midiático em nosso cotidiano. Reli e ressignifiquei Undestanding Media, ainda uma espécie de livro de cabeceira durante todo o período de leituras relacionadas ao Ctrl-VA Sociedade do Espetáculo denunciada por Guy Debord é outra dessas publicações, que nos deram o norte necessário em direção àquilo que procurávamos. Fui igualmente influenciado por diversos autores dedicados ao tema da pós-(híper-líquida)modernidade, como Zygmunt Balman, Stuart Hall e Gilles Lipovetsky, este último presente no documentário.

Durante todo o processo de busca em relação à diversidade cultural, resolvi empreender uma organização cultural no Brasil, para desenvolver esta importante agenda política, nas mais diversas esferas da sociedade. O Divercult cumpriu seu papel internamente, até que, em 2007, com a publicação da Convenção, estava pronto para novos desafios.

Foi aí que entrou Fernanda Martins, com uma bagagem de pesquisas e inquietações a respeito do tema. E ideias sobre cooperação internacional para a diversidade. Resolvemos levar o Divercult para a Espanha, uma excelente porta de entrada para a Europa, que começava a implementar iniciativas voltadas para o assunto, ainda num momento anterior à crise econômica que assola todo o continente.

Além de conferências, debates e pesquisas sobre diversidade cultural, o Divercult encampou, em parceria com o Instituto Pensarte, a publicação de uma coleção de livros que constitui o pontapé inicial para a pesquisa do Ctrl-V. A série Democracia Cultural traz o primeiro livro brasileiro sobre Diversidade Cultural, organizado por mim, com textos de ativistas e pensadores de todos os continentes. Consolidamos, logo em seguida, uma pesquisa sobre Democracia Audiovisual, assinada por André Martinez. E por último, a tradução para o português do livro Artes Sob Pressão, de Joost Smiers, amigo de jornadas pela diversidade cultural.

Mas foi numa visita casual à Livraria da Vila, na Vila Madalena, em companhia do antropólogo Massimo Canevacci, colaborador de primeira hora de Ctrl-V, que descobri O Grande Filme, de Edward Jay Epstein. A partir dele comecei a visualizar, mais concretamente, um roteiro para a pesquisa que virou filme. E Epstein se transformou em um dos personagens centrais do filme.

Fiz conexão automática daquela publicação com Vida: o Filme, de Neal Gabler, cuja leitura no passado marcou-me profundamente. Mais tarde, depois de entrevistá-lo nos Estados Unidos, tive contato com The Empire of Their Own, sobre os primórdios de Hollywood. Esse conteúdo tomou toda a primeira parte do documentário fruto desta pesquisa.

Nessa fase já tínhamos, eu e Fernanda, uma nova aliada. Roberta Milward foi fundamental para trazer novas referências e buscar outros pesquisadores, relevantes à pesquisa. Ela mapeou, por exemplo, inúmeras organizações e projetos audiovisuais ibero-americanos, que tinham em comum a alfabetização audiovisual e o ensino da linguagem cinematográfica. Junto com alguns produtores e realizadores, essa foi a base constitutiva da RAIA (Red Audiovisual IberoAmericana), criada a partir do apoio concedido pela AECID (Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento) no começo de 2009. A liderança, as articulações e as contribuições de Ana Tomé, que ocupava a direção da organização no Brasil, foram fundamentais para a consolidação dessa pesquisa-ação.

Algumas leituras foram importantíssimas para abrirmos janelas e compreendermos o nosso trabalho como uma mera continuidade de movimentos do passado. Resolvemos, por influência de Daniel Gonzalez, um generoso colaborador de todo o processo, viajar para a Argentina em busca de novos olhares e propostas para a questão audiovisual. Octavio Getino, o mais importante pensador de políticas ibero-americanas para o audiovisual, com seu livro Cine Iberoamericano: los desafíos del nuevo siglo, é peça fundamental na composição do nosso tabuleiro de xadrez.

Estava em pleno processo de edição da primeira parte do documentário quando percebi a importância do livro Tela Global, de Gilles Lipovetsky, para definir abordagens e até mesmo a linguagem adotada no filme, com referências filmográficas e quebras de preconceitos a respeito da capacidade de autocrítica de Hollywood, além das inúmeras proposições teóricas a sobre a relação intrínseca do cidadão global com as novas redes e telas convergentes. Corremos atrás de Lipovetsky e conseguimos gravar uma entrevista em praça pública, em Madrid, na Espanha.

Não posso deixar de citar as inúmeras influências absorvidas do meu cotidiano como pesquisador de políticas culturais e sua relação com o audiovisual, a mídia e os sistemas de poder. Cidadania CulturalSimulacro e Poder, ambas de Marilena Chauí, são bons exemplos disso. Simulacro e Simulação, de Jean Baudrillard, dentre as referências, talvez seja a mais marcante. Autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Edgar Morin, Roland Barthes, entre outros, constituíram um terreno teórico fértil para essa vôo rasante rumo às novas possibilidades para a produção audiovisual na era da convergência digital.

A última parte da investigação é destinada aos fenômenos contemporâneos, aos novos comportamentos gerados a partir das redes sociais e à multiplicação de telas, em movimentos que nos assaltam, seduzem e hipnotizam diariamente. Todas as possibilidades levantadas por Cibercultura, de Pierre Lévy foram consideradas, além das novas formas de relação com a propriedade intelectual abordadas em Free Culture, por Lawrence Lessig.

Mais do que referências teóricas, esses livros nos ajudaram a moldar o processo participativo, a constituição de uma comunidade de conhecimento em torno dos desafios do audiovisual em nossa sociedade, a partir da RAIA, com diálogos, trocas de experiência e propostas concretas de cooperação, tão importantes para a constituição de Ctrl-V quanto a bagagem trazida das leituras e estudos.

A partir de um primeiro esboço, construído depois de um seminário em São Paulo, com a presença de membros-fundadores da RAIA, é que começamos a visualizar a história que iríamos contar, com formato, linguagem e léxico próprios. Depois saíram mais duas versões restritas à RAIA e o Ctrl-V 2.0, a segunda parte do documentário, que mais tarde foi totalmente modificado, a partir das minhas próprias percepções da pesquisa e sobretudo pelas valiosas contribuições e debates da rede.

A presença da rede no processo de construção dessa pesquisa não é acidental. Buscamos referências, leituras, promovemos debates em Barcelona e em São Paulo a respeito das possibilidades da rede como elemento ativador de novas possibilidades de produção audiovisual. Nesse sentido, nada mais relevante que a leitura de A Cauda Longa, de Chris Anderson e Cultura da Convergência, de Henry Jenkins. Incentivadores de uma nova maneira de enxergar a relação entre grande mídia e processos participativos do novo milênio, tornaram-se contribuições valiosíssimas.

A partir dessas leituras, começamos a visualizar as novas possibilidades de produção, baseadas numa trincheira entre os velhos modelos de negócios e as mudanças de comportamento decorrentes de uma nova Cultura da Participação, do também entrevistado Clay Shirky.

Ctrl-V é propositivo. Vislumbra a possibilidade de uma nova indústria, multiprotagonista, capaz de promover a autorrepresentação, a conquista de autonomia e independência no campo simbólico. Mas não é romântico, aponta desafios para a educação, para a regulação do mercado e convoca os realizadores audiovisuais para uma nova atitude diante das oportunidades geradas com a convergência audiovisual.

s://www.youtube.com/watch?v=vhPDGf2BVk8

Leonardo Brant

Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

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