Categories: PONTOS DE VISTA

Cultura, comunicação e cidadania

Nos últimos 25 a 30 anos, tanto o Estado quanto empresas viram seus papéis se transformarem drasticamente. Seja pelas limitações do Estado, seja pela necessidade das empresas de se adaptarem às novas exigências do mercado e dos cidadãos, o que se observa é uma reconfiguração radical na distribuição dos papéis sociais entre os setores público e privado.

Se ficarmos apenas no campo da economia, veremos que entre os cem maiores agentes econômicos globais, 40 são empresas. Em um ranking que considera o PIB dos países e as vendas líquidas das empresas, o Grupo Walmart ocupa a 28ª posição, entre a Argentina (27ª) e a Áustria (29ª). As companhias de petróleo Royal Dutch Shell (31ª), ExxonMobil (33ª) e BP (38ª) aparecem à frente de países como Finlândia (42ª), Chile (44ª) e Irlanda, na 53ª posição. A receita líquida da CPFL Energia, maior grupo privado brasileiro do setor de energia, é comparável ao PIB de países como Armênia, Zimbabwe, Mongólia e Haiti[1].

Mas as empresas contemporâneas não se tornaram relevantes apenas pela sua capacidade de gerar valor econômico. Nos anos recentes, desenvolveram estilos próprios, vozes próprias, modos inconfundíveis de ser o que são. Para ser compatível com as demandas do século XXI, as empresas devem estar integradas às comunidades onde operam seus negócios, sendo parte componente da cultura dos lugares nos quais atuam, recebendo influências dos meios que as circundam e contribuindo para aprimorar os contextos nos quais suas presenças econômicas fazem-se notar.

As noções de valor imaterial, de valor intangível, antes identificadas ao campo das representações e do simbólico, ou seja, da cultura, ganharam todas as frentes, mudaram todas as paisagens, inclusive no mundo das grandes corporações. Ou ainda podemos dizer que a Apple é uma empresa de informática? Ou que a Nike é só um fabricante de calçados esportivos? Que o Red Bull é um energético? Que a Natura é uma empresa de cosméticos de venda porta a porta? Ou que a CPFL Energia é apenas uma companhia do setor de infraestrutura? O valor de todas essas organizações bem-sucedidas se manifesta em um plano superior àquele das coisas corpóreas ou dos serviços palpáveis. Todas passaram a desenvolver ações no campo dos valores simbólicos, ou seja, passaram a “criar cultura” elas mesmas, sem o que não teriam como encontrar nexos vivos e estimulantes com seus públicos.

Em outras palavras, empresas vitoriosas são aquelas que sabem produzir cultura a partir de seu negócio central e mobilizar a cultura como um todo para trazer ainda mais valor para o seu negócio principal. Entretanto, mesmo organizações que não puderam, ou não quiseram integrar a cultura em seu negócio principal, passaram a investir no setor, ampliando significativamente o volume total de recursos destinados à arte e à cultura na economia e concorrendo com os recursos governamentais, dominantes até a década de 1980.

Nos últimos 30 anos, grandes organizações transformaram-se em players centrais da cultura e da arte no Brasil, investindo valores significativos e de forma consistente, algumas antes da criação das leis de incentivo baseadas em renúncia fiscal. No setor financeiro, destacam-se o Banco do Brasil, o Itaú Unibanco, o Santander — os três com centros ou institutos culturais próprios e investimentos diversificados em cinema, teatro, música e artes visuais em projetos de terceiros. Na área de infraestrutura, Votorantim, Camargo Correa, Vale e CPFL Energia mantêm institutos próprios com programação regular e definida a partir de critérios claros e sólidos. Claro, Vivo e outras empresas de telefonia criaram fundações e institutos para centralizar seus projetos em cultura e educação. A Fiat patrocina grandes exposições internacionais de artes visuais diretamente, ou através de sua Casa Fiat de Cultura, e cria parcerias com grandes museus como o Masp, em São Paulo. A Globo, seja pelo jornal O Globo ou pelo Canal Futura e Fundação Roberto Marinho, atua em arte, educação e cultura.

Esses são alguns exemplos de sucesso que, infelizmente, não são suficientes para que possamos reconhecer uma sólida tradição da participação das empresas brasileiras no campo cultural. Se quisermos definir um marco referencial para a criação de mecanismos de financiamento ao setor privado, devemos voltar ao ano de 1986, quando o então presidente José Sarney promulgou a Lei nº 7.505 de incentivo à cultura. Antes dessa data, praticamente todas as tentativas de criar políticas públicas para a cultura foram formuladas pelo Estado e colocavam as instituições públicas como suas operadoras centrais, reservando pouco ou nenhum espaço para iniciativas privadas.

A Lei Sarney funcionava pelo mecanismo da renúncia fiscal e vigorou até abril de 1990, quando foi extinta no conjunto de mudanças radicais na estrutura estatal da cultura, promovida pelo governo do então presidente Collor.

Em 1991, ainda durante o governo Collor, foi criado um novo instrumento jurídico de incentivo, a Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura – Pronac, e ficou conhecida como a Lei Rouanet. A partir da criação dessa lei, e das alterações promovidas ao longo dos últimos anos, surgiu um grande número de diplomas legais no âmbito dos estados e municípios, transferindo para o setor privado parte da responsabilidade pelo desenvolvimento e apoio a projetos no campo da cultura, por meio principalmente do mecanismo da renúncia fiscal.

As diversas leis de incentivo à cultura hoje em vigor têm características muito distintas, contemplando áreas de expressão determinadas ou regiões geográficas específicas. No entanto, praticamente todas se baseiam no mecanismo da renúncia do Estado em arrecadar parte dos impostos devidos pelas empresas, o que permitiu que inúmeras organizações voltassem seus interesses para o campo cultural. O próprio Estado passou a se valer das leis de incentivo para financiar muitas de suas atividades no campo da cultura e das artes, por meio da renúncia fiscal das empresas estatais.

Procurando simplificar um quadro complexo, podemos dizer que as empresas definiram sua forma de atuação em duas grandes vertentes. A primeira, por meio do apoio a projetos e iniciativas que pudessem gerar um retorno imediato em termos de imagem institucional. Dessa forma, a decisão sobre qual projeto apoiar é informada pelas necessidades de posicionamento mercadológico ou institucional. As iniciativas selecionadas devem se somar aos esforços de comunicação das instituições, colaborando para a construção de sua imagem pública, ou mesmo no esforço de vendas de produtos e serviços. As empresas que optam por esse tipo de atuação normalmente são aquelas responsáveis pelo patrocínio dos grandes shows de música popular, pelos eventos multimídia exibidos em todo o mundo, pelo apoio pontual a peças de teatro e filmes, pelas megaexposições de artes visuais, entre muitos outros eventos que em parte seriam suportados pelo mercado. Muitas vezes o financiamento se reduz ao apoio à produção dos eventos, sem a preocupação com a ampliação das condições de acesso do público, como redução do preço dos ingressos, fomento à produção artística brasileira e local ou distribuição de cotas de ingressos gratuitos.

A segunda vertente de utilização das leis de incentivo, evidentemente, não ignora os eventuais benefícios para a imagem da instituição e de suas marcas, mas prefere investir em soluções de mais longa maturação e com efeitos estruturantes. Opta por projetos que não precisam responder necessariamente às necessidades mercadológicas imediatas da instituição. Acaba por definir linhas de atuação permanentes, que ajudam inclusive a estruturar os setores culturais em que atuam. Empresas que optam por essa vertente são as que criam institutos e centros culturais e, normalmente, se tornam agentes privilegiados no campo da cultura. Patrocinam programas de acesso à cultura e de formação de públicos para linguagens artísticas com mais dificuldade de se posicionar no mercado de bens e serviços culturais. Outras ainda, apesar de não criarem espaços culturais, direcionam seus recursos por meio do lançamento de editais públicos.
Vale lembrar ainda que muitas organizações continuam a investir direta ou indiretamente na cultura e nas artes, sem o recurso da renúncia fiscal. As leis de incentivo ajudaram a mudar o perfil dos investimentos das empresas, mas não se tornaram de maneira alguma a única forma pela qual são desenvolvidos os projetos culturais ou sociais privados.

O modelo das leis de incentivo provou ser um instrumento poderoso de canalização de recursos para o setor cultural, que se sofisticou imensamente nos últimos anos. O mesmo mecanismo de renúncia fiscal orientou a criação do Procultura, documento legal ainda em discussão no Congresso, que deverá substituir a chamada Lei Rouanet e implantar uma nova lógica nas relações entre organizações privadas e setor público. Em que pesem ainda muitas dúvidas sobre a redação final do novo diploma legal e de sua efetiva entrada em vigor, podemos afirmar que os instrumentos de financiamento hoje conhecidos serão profundamente transformados. E que serão bem-sucedidas aquelas empresas que compreendem o poder da arte e da cultura como fatores de integração e de encantamento de seus mais diferenciados públicos.

Obs.: Para muitas das ideias deste artigo sou devedor de material de discussão elaborado pelo professor Eugênio Bucci, da Escola de Comunicações e Artes da USP, a quem sinceramente agradeço e desde já me desculpo pelos eventuais erros em minhas interpretações.

[1] Dados de 2011. Cotação de dólar utilizada: R$ 1,8758. Fonte: Relatório interno CPFL Energia/Diretoria de Comunicação Empresarial, com dados da revista Fortune 500, 2012.

Mário Mazzilli

Sociólogo e jornalista, foi consultor do Itaú Cultural, primeiro editor da Revista do Observatório Itaú Cultural e, desde 2008, dirige o Instituto CPFL, plataforma de investimento social da CPFL Energia.

Recent Posts

JLeiva lança pesquisa Cultura nas Capitais

A JLeiva Cultura & Esporte lança nesse mês a pesquisa inédita Cultura nas Capitais. O…

2 horas ago

MinC alcançou 100% de transparência ativa em avaliação da CGU

Fonte: Ministério da Cultura* O Ministério da Cultura atingiu 100% de transparência ativa de acordo…

21 horas ago

Ordem do Mérito Cultural recebe indicações até 10 de fevereiro

Até o dia 10 de fevereiro,  a sociedade terá a oportunidade de participar da escolha…

21 horas ago

Salic receberá novas propostas a partir de 06 de fevereiro

O Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic) estará aberto a partir…

1 dia ago

Edital do Sicoob UniCentro Br recebe inscrições até 14 de março

O Instituto Cultural Sicoob UniCentro Br está com inscrições abertas em seu edital de seleção…

5 dias ago

Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura (SC) recebe inscrições até 04 de fevereiro

Estão abertas, até 04 de fevereiro, as inscrições para o Edital Elisabete Anderle de Estímulo…

7 dias ago