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Cultura da carne

Não pertenço a nenhuma tribo ou religião. Comecei a eliminar a carne do meu cardápio por questões de bem-estar pessoal. Simplesmente me sentia melhor sem carne. Mais leve, com maior vitalidade, sem o peso da digestão. Isso não faz de mim um ativista, mas não me impede de refletir sobre os efeitos pessoais e sociais de uma vida sem (ou com menos) carne.

Apesar de ter passado um período mais radical, vivendo sem álcool, café, glúten e lácteos, a dieta mais adequada para mim é a do equilíbrio e do bom senso. Quando exagero, faço jejum, volto a essa dieta higienista e retomo o bom funcionamento do organismo.

Assim como a cultura do automóvel, a cultura da carne é algo central em nosso sistema socioeconômico, símbolo de um processo civilizatório baseado na propriedade e na crença da superioridade humana sobre todas as outras formas de vida. E da nossa supremacia cultural sobre nós mesmos, justificando guerras, violências, descasos, abandonos.

Isso faz com a população de gado no Brasil, por exemplo, seja maior que a de humanos, e sirva única e exclusivamente para provê-lo de couro, derivados de leite, carne, além de outros alimentos e produtos, das vísceras ao mocotó. O mesmo se aplica aos frangos, patos, porcos, carneiros e ovelhas, que devem sua existência tão somente como fonte de alimento ao ser humano.

Cada vez mais o processamento da carne se dá modo industrializado, o que resulta em desequilíbrio ecológico, a ponto de se configurar como uma das principais causas do buraco na camada de ozônio e do aquecimento global. Mais água, mais pasto, mais produção de ração, mais desmatamento, mais gases metano.

Assim como a indústria do automóvel, a da carne tem uma relação de causa e efeito com o invetitável abismo entre pobres e ricos no mundo: se todos comerem carne e utilizarem automóvel diariamente, o planeta explode.

Recentemente o Brasil se tornou o maior produtor mundial de carne. Isso diz muito sobre o modelo de desenvolvimento que estamos construindo. E a nossa atitude diante disso diz mais ainda sobre o lugar que ocupamos no planeta.

Sustentabilidade não é algo para delegarmos às empresas e cobrarmos dos governos. É, antes de qualquer coisa, uma questão de cultura e cidadania. Como consumir, como votar e participar da construção das políticas públicas é a questão vital para a vida em sociedade e para a construção da democracia.

Leonardo Brant

Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

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  • Penso que a cultura da carne, do automóvel etc são sintomas ou reflexos de uma cultura maior, baseada no nosso sistema produção. Nessa cultura o conceito de sustentabilidade se esvaziou antes mesmo de nascer e o desequilibrio com o meio, com os outros e com nós mesmos assume as mais diversas formas.

    Se fossemos apenas seres que transferem subjetividade a objetos comercializaveis ou se sentem superiores a outras especies, estaria ótimo (menos pior). Há pouco tempo atrás era perfeitamente legal e normal escravizar outros seres humanos, da mesma espécie. Há quem diga que os sistemas de escravidão ainda imperam camuflados, estão apenas mais sofisticados e que esse sistema de produção vigente não tem capacidade de sobreviver sem algum tipo de escravidão.

    Acho também que essas culturas só se tornam visiveis quando surge um contra-cultura correspondente. Ou ainda, uma escolha só se torna uma escolha quando conseguimos visualizar uma outra opção. Antes disso é apenas sobrevivência. Sobrevivência não é uma escolha. E sustentabilidade não deveria ser uma escolha pois ela nunca esteve separada da sobrevivência.

    O problema da cultura da carne não seria o mesmo problema do sistema de produção que a origina? A desconexão entre o que eu como e a sustentabilidade do planeta ou da minha saúde não é a mesma que existe entre tudo o que eu produzo e consumo? Ou este seria sim um problema moral, religioso ou estético?

    Se parar de comer carne e andar de carro ajuda a restabelcer algumas conexões, porque não discutimos o sistema que gera estas e todas as outras desconexões? Ou assim como a sobrevivência, o capitalismo não é uma escolha?

  • será que a cultura do automóvel e a cultura da carne não são na realidade partes da cultura do consumismo desenfreado, que gera a necessidade da industrialização de seres vivos?

    após ler "Eating Animals", que é a melhor defesa ao "vegetarianismo" que já vi, afinal aqueles péssimos documentários como "A Carne é Fraca" e "Terráquios" são recheados de falácias e fatos distorcidos. reparei que mesmo um escritor bom costuma colocar o consumo de carne como causa da indústria da carne. A produção de carne é muito maior que o consumo, a industria da carne não alimenta as pessoas, alimenta a necessidade consumista de termos trinta tipos de carne em uma praça de alimentação.

    o capitalismo gera a cultura do exesso, o consumo de carne não causa problemas para o planeta, mas a cultura do exesso causa em diversos aspectos, sendo um dos piores no factory farming.

    do ponto de vista da saúde são outros quinhentos... afinal morfologicamente fomos feitos para comer carne, mas em contrapartida também somos morfologicamente caçadores.

  • Muito bem colocada a posição do leitor Badah. Eu teria muito pouco a acrescentar nela e, mesmo assim, não iria alterar a essência dela.
    Parabéns, Badah !

  • Os argumentos de Badah são precisos e o diogo granato também completa corretamente, o pior são os excessos produzidos pela economia de mercado, visando exclusivamente o lucro, a mais-valia, do que as necessidades humanas, da vida e do planeta.
    Ainda vivemos sob o signo da barbárie, muitíssimo pior do que aquela dos antepassados, mas, continuamos na fase pré-histórica, como bem frisou Karl Marx. Quanto entrarmos na era da verdadeira civilização, se a humanidade sobreviver ao capitalismo/depredação de tudo, quem sabe a inteligência e o bom senso encontrarão o equilíbrio necessário e, assim não precisaremos mais sacrificar tantos seres e, menos ainda, milhões de seres humanos pela sua condenação para servir a uma minoria de privilegiados!

  • Com certeza. A questão é mais profunda, mais antiga e mais difícil de resolver. Mas estamos aqui diariamente falando de cultura, mercado cultural, políticas culturais e não nos damos conta do quanto contribuímos para o reforço de uma cultura homogênea, baseada no controle, na concentração, no consumo e no desequilíbrio ambiental. Por isso vim falar da práxis, ou seja, de como traduzir isso tudo para a nossa vida prática e cotidiana. Ou então de nada servirá a consciência, se não provocar mudanças efetivas de atitude. Tanto o artigo do automóvel quanto este tentam trazer a discussão para o campo da práxis.

  • Parabéns Leo!

    Faço das tuas palavras aa minhas e de muitos amigos. Já é postura de uma pequena parcela crescente da classe média paulistana que adere paulatinamente tal meio de vida por não concordar com tamanha alienação desse sistemas que nos engole!

    Fazemos já parte de uma cadeia que se coloca contra a forma de produção nas atitudes sim, modificando hábitos cotidianos princialmente. Ainda que pequeno o número pessoas que pensam assim: cortar a carne bovina, suína e de frango é um boicote poderoso. Há pelo menos 3 ou 4 anos adotei essa mesma postura, pelos mesmos motivos, e penso (pq não conseguiria contabilizar) quantos animais foram poupados, o quanto de pasto a menos foi criado e quanto menos lixo foi produzido, o quanto menos de Amazônia foi devastada, o quanto menos de monóxido de carbono foi produzido, quantos litros de água não foram poluídos… o quanto apenas uma pessoa pôde provocar de modificação e transtornar um statment de sistema de produção. E se multiplicarmos por 10, 100 ou 1000… é diferença sim!!!!

    Não adianta criticar somente o sistema, precisamos tomar consciência o quanto cabe da responsabilidade individual nessa cadeia maior. É possível modificar parte de um sistema de produção maior quando nos questionamos sobre tudo aquilo de material que pensamos ser necessário para o nosso conforto; ao reduzir consumo de cada coisa em nossas vidas; diminuir 5 minutos de banho diário; ao fechar a torneira quando lavamos a louça ou escovamos os dentes; ao reutilizar matéria prima; ao carregar canecas em nossas bolsas para evitar os copos plásticos descartáveis; ao negar excessos de embalagens; ao promover trocas daquilo que já não usamos entre amigos;ao optar pelo transporte público, ao votar, etcetcetc.

    Agora, vale lembrar que sua reflexão vai de encontro ao novo código Florestal que permite maior desmatamento. Sabemos muito bem que é em detrimento do agrobusiness, da pecuária extensiva da soja e tantas coisas implicadas nisso tudo que resultam num modus operandisde produção que tende a colapsar o meio ambiente, a saúde pública, a democracia e a justiça social, como a preservação de culturas tradicionais!

    obrigada por acreditar que cada um pode fazer a diferença!

    abraço grande!

  • Posso considerar a práxis como "prática consciente", um passo além de simplesmente fazer cotidianamente? A prática do consumo nos remete às questões de renda, da mídia, do consumo dirigido por ela, modismos...que nos leva ao desequilíbrio ambiental, por provocar mais produção insustentável de tudo que se consome, do leite aos carros.
    A práxis nos levaria a repensar o consumo pessoal - torná-lo responsável -, ao manejo doméstico do nosso lixo, ao uso preferencial do transporte coletivo, ao fazer cultural também sustentável, e por aí vai, onde for nossa consciência.
    E está aqui a grande questão: onde estará ela? Que tipo de consciência tem a maioria de nós? Que tipo de consciência a educação e as práticas culturais estão produzindo? Penso nas desconexões às quais se refere o Badah e pergunto: esse capitalismo que nos leva a agir do jeito que agimos, é uma escolha à qual fomos levados por causa da sobrevivência? Quisera ter uma resposta simples, porém, que não seja simplista...

  • Concordo plenamete com você... eu não como carne já há mais de vinte anos; e não faz falta...é uma das minhas contribuições(pequena) pelo planeta!

  • Sr, Leonardo,

    com tanta coisa a falar sobre os Direitos Autorais que estão distribuindo por assistencialismo através da nova lei dos Direitos Autorais o senhor escreve sobre a cultura da carne?

    O senhor deve viver de brisa ou de padrinhos, por que todo artista consciente ou que pense. geste, de fato a cultura está embuído dessa discussão e não de discutir a carne que o senhor deixou de comer.

    Santa Paciência, Batman!

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