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Cultura e a Sociedade do Bem Estar

As sociedades capitalistas, principalmente as européias, elaboraram e colocaram em prática o conceito da “Sociedade do Bem Estar”, em cuja base está um Estado assistencial e compensador, que corrige os desequilíbrios sociais, redistribuindo a riqueza por meio de uma política fiscal agressiva, bem como de outros instrumentos de intervenção e controle.  No Estado de bem-estar social, todo o indivíduo tem direito a um conjunto de bens e serviços que devem ter seu fornecimento garantido, seja diretamente através do Estado ou, indiretamente, mediante o poder de regulamentação do Estado sobre a sociedade civil.

Esses direitos incluem a educação em todos os níveis, a assistência médica gratuita, o auxílio ao desempregado, a garantia de uma renda mínima, recursos adicionais para a criação dos filhos etc. De acordo com a o artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) a cultura está  inscrita entre esses direitos básicos e, portanto, cabe ao Estado cuidar de seu fornecimento de uma forma universal – procurando a igualdade impossível de ser alcançada através do mercado.

Boa parte do debate sobre as às políticas culturais adotadas pelo Governo Federal nas últimas gestões tem sido informado por essa concepção social e redistributiva . Um  exemplo é a discussão sobre as leis de incentivos, em especial a Lei Rouanet cuja principal crítica  é de que  abriga uma distorção desse princípio porque “transfere para as empresas privadas a decisão sobre o que deve ser apoiado”, jogando novamente para o mercado a seleção do que irá constituir a oferta em termos culturais no país.

No campo das idéias, o conceito de política cultural atrelado ao  do Estado de bem estar social sofre críticas, tanto por parte  dos marxistas tradicionais, para os quais esta é uma mera variante da visão liberal do Estado, mascarando a questão da divisão da sociedade em classes porque aponta o Estado  como o promotor dos interesses comuns a todos os membros da sociedade. Neste sentido, a crítica à atuação do governo enquanto promotor e redistribuidor de “produtos prontos” – seja da cultura de elite – como os concertos, óperas e balés importados – seja da cultura de massas – como por exemplo os shows de sertanejos ou de cantores de axé – vai na direção de que este tipo de atuação serve apenas para “apaziguar” as classes populares, uma forma de concessão às suas aspirações, sem realmente propor um trabalho e uma ação transformadora, capazes de apoiar as comunidades de produtores locais em sua luta pela emancipação social.

Há também aqueles que não concordam com a idéia de que a redistribuição na esfera da cultura possa representar qualquer mudança na situação política ou social do país, mostrando, como no caso da França, através de dados, que a chamada “democratização cultural” quando analisada à luz de trinta anos de atividade do Ministério da Cultura francês, revela-se hoje, mais uma construção intelectual, um projeto ideológico voluntarista e messiânico, do que um plano de ação com impacto mensurável.

Há além disso,  a crítica à atuação do Estado no âmbito da cultura pelo outro lado, aquele que pensa que a cultura proporcionada pelo Estado é uma cultura “chapa-branca”, uma versão pasteurizada da cultura consagrada, mais próxima dos “serviços públicos” com tudo de ruim que costuma ser atribuido a esses serviços.

A essas críticas, somam-se aqueles autores que vêm nas ações dos órgãos do Estado em prol das artes tradicionais, da literatura e da ópera, ou seja, naquilo que o Iluminismo chamava de “cultura universal”,  uma ação de manutenção e reforço de um conceito de cultura herdado do período colonial,  e que para esses críticos, seria apenas um nome de caráter ideológico para a  cultura predominante nas matrizes coloniais européias, originária de uma tradição burguesa e que de universal nada tem.
Para esta linha de pensamento, o fortalecimento das comunidades passa pelo aprimoramento de suas capacidades produtoras e, junto com essas, no desenvolvimento de um senso crítico e um amadurecimento do nível de exigência no consumo, tanto no que diz respeito à forma quanto ao conteúdo,  pondo em xeque as tentativas de manipulação das grandes produtoras da indústria cultural e da mídia. Um exemplo muito usado para corroborar essa argumentação é a de que a multiplicidade de canais de divulgação de produtos locais, seja pela Internet, seja pela venda direta de CDs independentes, vem destruindo  todo o esquema das grandes gravadoras que compram os espaços das rádios comerciais para “empurrar” os seus “hits” ou usam o “jabá” para criar uma forma falsa de consagração popular, estabelecendo uma uniformidade na programação das emissoras, supostamente baseada na lista de sucessos ou “mais vendidos”. Assim, mesmo ao nível da cultura de massa, que para muitos teóricos e críticos não é “cultura”, teríamos a criação de novos padrões de qualidade, desvinculados da lista das gravadoras “majors”.

Por outro lado, é bom lembrar que, como o faz Marinilzes Moradillo Mello, em seu artigo  Políticas Sociais e Políticas do Bem-estar: Algumas Considerações,  a tendência dos estudiosos de políticas publicas é mostrar que mesmo dentro de uma concepção de Bem –Estar Social, por conta da chamada “Lei de Wagner”, o Estado não pode anular ou substituir o mercado, já que a formação de excedente econômico é o que torna possível destinar recursos financeiros para as atividades de cunho “previdenciário”. Por isso, se quisermos preservar a política cultural como política social, é preciso preservar a atuação das empresas,  também no campo da cultura. Portanto, complementar à ação redistributiva, está a ação de fortalecimento dos produtores culturais, principalmente das empresas que atuam no setor. A Lei Rouanet também pretende ter este papel. Sua finalidade principal é “captar e canalizar recursos para o setor cultural” (artigo 1º), bem como (alíneas VIII e IX): “ estimular a produção e a difusão de bens culturais de valor universal formadores e informadores de conhecimento, cultura e memória; priorizar o produto cultural originário do país”.
Assim, esta série artigos objetiva discutir o papel da lei Rouanet, dentro do quadro das políticas culturais dos últimos anos. O entendimento é o de que essa lei ora é interpretada como instrumento de apoio às atividades produtivas e empresariais na área da cultura, já que é praticamente o único instrumento governamental de financiamento das empresas da área, ora é vista como instrumento de regulação do mercado e de favorecimento da equidade, na tradição do Estado de bem estar. Neste último caso, insere-se a intervenção do Minc em tentar induzir uma redistribuição das atividades culturais pelo território nacional, tentando favorecer as regiões desprivilegiados em detrimento da concentração no eixo Rio-São Paulo. Conclui-se que , sendo obrigada  a servir a dois patrões, a Lei Rouanet não serve bem nem a um nem a outro objetivo.

Maria Alice Gouveia

Maria Alice Gouveia é mestre em Artes Plásticas pela UNESP, pesquisadora convidada do GV-Pesquisa e uma das fundadoras da Conteudo Cultural. Foi professora da USP, da Faculdade Santa Marcelina, do CEAG –FGV, instrutora do SEBRAE.

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  • Deixo a sugestão de que Maria Alice escreva um novo artigo aprofundando a questão do impacto do plano de "democratização cultural" empreendido na França, que ela menciona neste texto. É comum ouvirmos largos elogios à atuação do MinC francês, mas raro ouvir alguém analisar a questão por este outro viés. Seria interessante ler a visão da autora a respeito.

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