Cultura e educação


Um dos assuntos mais controversos (e menos discutidos) das políticas culturais é a relação intrínseca da cultura com a educação. Vivemos uma espécie de trauma pós-separatório, influenciado por um tratamento periférico nos tempos que o MEC (Ministério da Edução e Cultura) ainda incluía seu irmão mais pobre. Está na hora de superá-lo e avançar na discussão sobre a educação, propondo soluções para o grande problema estrutural do Brasil: formar a maioria jovem e prepará-la o novo país que desejamos construir.

Não há nada mais gritante do que o abismo e a falência do sistema educacional brasileiro. Embora consuma grande parte do orçamento, o arcaismo bancário que tomou conta da educação impede os avanços necessários para alçarmos um novo patamar, que inclui ampla garantia dos direitos culturais, da livre informação e expressão.

Em todos os grandes modelos e metodologias educacionais, o exercício das expressões artísticas e culturais têm se de revelado como um denominador comum. Nada mais lúdico, criativo e inspirador do que a cultura da convivência, inerente às atividades artísticas e culturais, seja ela uma visita ao museu, o aprendizado do teatro ou a análise crítica da mídia. Não podemos mais admitir que o nosso futuro seja dominado por uma educação burocrática, baseada numa estrutura funcional da ditadura militar, preparando sub-cidadãos, acomodados com o Estado-pai, incapazes de agir e participar da vida cultural e política.

Paulo Freire é o grande mestre inspirador de escolas e sistemas educacionais em todo o mundo. Sua pedagogia crítica, no entanto, não foi incorporada, além da apropriação indébita do discurso comum às nossas estruturas políticas, em nossa educação. Sua inspiração, no entanto, foi bem absorvida em escolas particulares que servem a elite. Meu filho estudo em uma dessas escolas e observo os avanços em relação à educação pública que eu tive, e que só piorou da ditadura pra cá.

Um novo projeto educacional precisa ser desenvolvido urgentemente no país. As políticas culturais não podem se abster a esse processo. As interações entre MinC e MEC foram insuficientes e fracassadas. Partiam do princípio da contribuição da cultura à educação. Avanços como a inserção de elementos e referências africanas e indígenas no processo de formação são interessantes, mas insuficientes para o tipo de desafio que temos pela frente.

A Internet, as redes culturais, a cultura colaborativa e a possibilidade de acesso ao conhecimento e exercício da expressão são elementos que não podem faltar ao cardápio educacional do país. As escolas precisam abrir suas portas para comunidades, deixando de ser prisões para transformar-se em equipamentos culturais, com projeções de filmes independentes, que abordem a complexidade humana, além dos mitos fabricados em Hollywood, peças de teatro e exposições, com programação das próprias comunidades e de outras, a partir de um sistema artesanal, simples e desburocratizado (quase tribal) de trocas e circulação de cultura. Enfim, precisa deixar de ser escola para se tornar ponto de cultura.

Grades curriculares deveriam ser queimadas em praça pública. O conhecimento precisa ser construído a partir do indivíduo e da comunidade para o mundo e não de Brasília para os quatro cantos do país. Isso sim é um dirigismo cultural que precisa ser superado por todos nós. Precisamos celebrar a capacidade de cada bairro, distrito, município, de cuidar da formação de suas crianças. A sociedade precisa se envolver com o processo de formação de seus indivíduos. Estado nenhum dará conta disso. O ditador já não dava, quanto mais este neoliberal em que nos atolamos.

A educação precisa ser uma responsabilidade de todos nós. E só será a partir do reconhecimento de sua dimensão cultural.

Leonardo Brant

Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

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  • Leonardo, bastante oportuno o artigo e a discussão proposta nele. O que me causou preocupação, apenas, foi a invocação feita para se queimar as grades curriculares em praça pública. Concordo plenamente que as propostas educacionais devem estar contextualizadas com as comunidades, as cidades, enfim, que tenham identidade com o cidadão/educando. Porém, é preciso haver um norte condutor, que oriente, que estabeleça caminhos e que dê um perfil de atuação. Assim, é possível combinar: estabelecer um metas e caminhos, e sensibilizar-se para as questões locais das comunidades.

  • Você tem razão Acacio, precisamos superar as grades como elas são hoje. Mas é preciso dialogar e trocar experiências para alcançar esses parâmetros. Mas não podemos mais admitir que venha de cima pra baixo.

  • Precisamos voltar aos pensadores da educação, todos vencidos pela burocracia e pela política coronelística que ainda conduz o País, e seguir suas orientações. Voltar a Educação não é privilégio de Anísio Teixeira, a Darcy Ribeiro, a Paulo Freire... Eles pensaram e escreveram sobre todas as necessidades da educação brasileira.

  • Parabéns Leonardo!!!!

    Ainda vivemos tempos em que o acesso à informação e à cultura ainda é vista com reservas por aqueles que têm o "poder" para uma mudança imediata!
    Em contrapartida, como sociedade podemos em nosso dia-a-dia, e luta cotidiana, ir fazendo aquela mudança, que se não é imediata, pelo menos é profunda e permanente!!! A mudança realizada nos bairros, nas associações, nos projetos socio-culturais que se multiplicam pelo Brasil, assumindo esta tarefa negligenciada!

  • Vivemos a educação sem cultura e a cultura sem educação.
    Um permamente erro de gestão pública no Brasil é a identificação da necessidade de uma nova estrutura (decisão técnica de estado), a sua criação (decisão política de governo) e o seu abandono (decisão de asnos). Depois, quando se detecta o caos, é preciso correr para recuperar o prejuízo que é social e incalculável. Quanto ao "tribal" cito frase de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, livre docente da USP - "eu não acredito em patrimônio cultural da humanidade que antes não seja patrimônio cultural do local. Como pode uma coisa ser importante para o mundo inteiro se ela não for reconhecida e valorizada por aqueles que vivem no local? Aliás, para mim, importante é o patrimônio cultural municipal." Acrescento: corpos sadios se criam de dentro para fora, o contrário é o contrário.

  • Há uma experiência em Portugal muito interessante: o Magalhães. Um computador de mão básico desenvolvido inteiramente em Portugal e distribuído gratuitamente nas escolas para professores e alunos. Muitas críticas sobre eventuais empresas beneficiadas na sua construção e distribuição caminham lado a lado com a experiência. Mas quando eu vi um menino de 7 anos numa pequena cidade do norte do país, em sua modesta me receber com o Magalhães na mão e com muita destreza no trato com a máquina eu vi a grandeza do projeto. Aquela geração de meninos que teve acesso ao Magalhães vai pensar diferente, fazer diferente, viver diferente. Sonhei com o Magalhães no Brasil, barato e disponibilizado grátis para todas as escolas, milhões de Magalhães luso brasileiros...isso sim.
    sss://www.iniciativa-magalhaes.com/

  • Achei mais do que oportuno o texto; estamos nesse momemento discutindo grade curricular na universidade onde trabalho e nos deparamos exatemente com essa imposição de cima pra baixo, do que já está posto. PClaro que mudanças são difíceis, mas o debate deve mesmo ser fomentado, ampliado. A própria palavra "grade" curricular, já diz muito sobre o projeto implícito. Como já muito bem dito, "nome é destino".
    Adorei as questões levantadas Leonardo.

  • Texto da filósofa Olgária Matos na Carta Maior: "A ideologia dominante na sociedade contemporânea é a dos novos ricos. O novo rico é aquele que conhece o preço de todas as coisas mas desconhece seu valor. Sob seus auspícios, a educação produz uma cultura embotadora da sensibilidade e do pensamento".

    sss://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4548&boletim_id=648&componente_id=10836

  • Leonardo:
    Novamente, você toca num tema fundamental para discussão. Como servidor público estadual, transitei pela área de Educação (4 anos) e pela Cultura (12), dentre outras. Na Cultura há o que eu chamaria de 'síndrome de exclusão'. O temor permanente, da extinção da organização, sua re-incorporação à Educação, Esporte, Turismo, Lazer etc. Voltar às origens, para os dirigentes de plantão, é o que causa maior temor. Agravado por outras circunstâncias políticas. No caso do meu Estado, a agravante circunstancial, do Titular da Educação ser irmão do Chefe do Executivo. Entre a ilusão institucional (de que é fundamental haver 'Secretaria') e a compartimentação de atuação (dentro da própria área da Cultura e dela, em relação às demais), somam-se dois aspectos perversos, a muitos outros - inclusive a falta de clareza, sobre o que sejam políticas públicas de cultura. Coisa sobre a qual praticamente, não existe bibliografia especializada em português - nem em Portugal. A segmentação do processo pedagógico (e de visão da realidade) se reflete num processo fragmentário de análise permanente, que nunca chega à síntese. É o círculo vicioso do fracasso educativo permanente, notadamente, para as classes menos favorecidas, consumidoras de um substrato do conhecimento humano, de 3a. classe. Qualquer inovação enfrenta o corporativismo reativo dos professores. Certa feita, em reuniões de pais, em escola particular de ensino médio que meu filho frequentava, apresentei sugestões para para melhorar-lhes o interesse e apetrechá-los para um futuro diferente, os alunos no contra-turno, tivessem acesso sucessivo, às técnicas de produção multimídia: (1) textos (jornal, jornal mural), (2) áudio ('rádio-pirata', noticioso, música, rádio-teatro - para o horário do recreio, ou distribuição em mídia própria), (3) vídeo (na mesma diversidade do rádio) (4) multimídia para a Internet (conhecimento dos softwares básicos (Adobe, Corel, HTML, Flash etc.) Tudo isso, com três objetivos: domínio pelo jovens desse conjunto de técnicas, que se direciona naturalmente, para a síntese (como por exemplo, num vídeo-clip); formação de massa crítica relacionada com o 'público-alvo' - seus próprios colegas; e a aceitação pelos mestres, desses produtos, com tarefas escolares. Houve uma completa indiferença, por parte da Direção da escola (embora eu tenha conversado com os dirigentes, várias vezes). E a reação corporativista dos mestres, contra o aumento do volume e e a complexidade do seu trabalho. Isso numa escola, tida como das melhores da Cidade.

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