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Cultura não é setor

A primeira carta de compromissos de Lula para a cultura, “A imaginação a serviço do Brasil”, dava conta da amplitude e da complexidade da cultura e sua importância estratégica para o país. O material do segundo mandato fazia uma abordagem setorial, corporificada tanto pela metodologia da II Conferência Nacional de Cultura, organizada em pré-conferencias setoriais, quanto pela própria constituição de fundos do Procultura, PL que revoga a Lei Rouanet.

O tratamento da política cultural como um apanhado de soluções para demandas de setores econômicos organizados é um retrocesso político. Primeiro porque contradiz o princípio de que política cultural é para o povo e não para as classes organizadas em torno dos fazeres culturais. A criação, pelo PL do Procultura, de um setor da diversidade cultural, por exemplo, que até fundo setorial especifico pretende-se criar, constitui-se numa aberração conceitual.

A configuração pretendida par a nova CNIC, também no PL do Procultura, além do próprio Conselho Nacional de Políticas Culturais, segue a lógica da setorialização da cultura, o que representa uma certa predominância do olhar econômico sobre os processos políticos. E de um tratamento por nichos de demandas. E o Estado como monopolizador dos sistemas de irrigação desses setores, não apenas como regulador ou mediador.

Concordo com a valorização da cultura por sua dimensão econômica. Capaz de gerar postos de trabalho, renda, economia solidária, o setor cultural é uma realidade que poderia ser reforçada com ações positivas do Estado, cedendo crédito, impulsionando a empregabilidade e a formalização do setor, além do investimento no empreendedorismo. Mas numa abordagem tática, não estratégica. Corremos o risco de reduzir cultura a um emaranhado cada vez mais complexo de sindicatos organizados em torno de suas demandas específicas.

Do ponto de vista político essa abordagem pode ser facilitada pela representação de seus membros e pela interlocução mediada por instâncias democráticas. O Estado forte que pretende-se forjar a partir dessa sistematização funcionaria como um balcão de atendimento a essas forças organizadas e representadas. Tudo isso pode parecer positivo para o fortalecimento desses setores, mas não é.

Eles somente serão impulsionados quanto toda a sociedade participar do processo de construção de políticas culturais. Quando cidadania cultural deixar de ser um espasmo ideológico e tornar-se processo contínuo, afetando de  maneira profunda os modos de vida do brasileiro. Jamais teremos uma política cultural estruturante, abrangente e que faça diferença na vida das pessoas, no processo de formação, auxiliando-nos no desafio do desenvolvimento sustentável, sem esse pleno exercício.

Por isso, cultura precisa deixar de ser campo de batalha corporativista, para ser um campo de conquista e consolidação da cidadania.

Leonardo Brant

Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

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  • Eu não consigo mais ouvir setorial, congresso e o blá-blá-blá que marca os discursos do MINC, todos sem compromisso com a arte. Apurados os projetos, as políticas, os produtos dos últimos 7 anos, os resultados aparecem claros nos musicais estadunidenses que invadiram o teatro paulista.carioca, na lista dos livros mais vendidos no País, de auto-ajuda estadunidense, no cinema... Quais são as conquistas reais da arte e da indústria cultural brasileira, afinal de contas?

  • Leonardo:
    Concordo inteiramente com a sua formulação. E diria mais, Cultura é setor, pelo viés do entretenimento, do showbizz, do negócio. Por isso já estive focado na economia da cultura: ledo engano ! Cultura como processo re-criativo, de transmissão do conhecimento acumulado pelo seres humanos, geração a geração, desde as suas mais longínquas origens, transcende as categorias econômicas, ou mesmo o universo econômico. Passa inclusive, pela discussão de direitos autorais: quem são os grandes titulares de desses direitos, de música, literatura ou ciência de ponta, produto do desenvolvimento mais recente e mais importante da humanidade ? Alguns poucos monopólios econômicos globalizados - imagine, até a cadeia do genoma humano ! Para ser tratado como uma categoria econômica, teríamos que utilizar um conceito amplo de desenvolvimento sustentado: esse conhecimento acumulado com um ativo da contabilidade social, juntamente com a dimensão ambiental e outras ligadas diretamente, à consciência e a existência do conjunto dos seres humanos - independentemente do regime econômico vigente. Porém, ainda estamos muito distantes dessa percepção. Com a agravante, de que setor econômico, mesmo dentro da teoria econômica, vamos dizer assim ‘clássica’, tem seus limites metodológicos: trata-se de um conceito ‘funcionalista’, já meio fora de moda. Abstração de velhos modelos de análise, de pelo menos 50-60 anos atrás.

  • Nossa política cultural já existe, é feita fora do Brasil e é projetada para reproduzir a memória estrangeira. Vivemos sob a hegemonia cultural americana, ato consumado como disse nossa amiga ali num comentário. Portanto só há um caminho para se pensar em política cultural no Brasil, só um, como vamos nos relacionar com isso. O que queremos diante disso. Se vamos incentivar ainda mais isso ou não. Já dizia o "babaca" Oswald de Andrade ( foi o adjetivo de Lêdo Ivo para o modernista), nossa questão é a antropofagia. Vamos nos locupletar então com isso? Se queremos projetar alguma coisa nacionalmente temos antes de mais nada que nos referir a essa condição...é acachapante nossa situação.
    A outra vertente, a única outra vertente é a adoção da Nova Cultura. De que maneira vamos apressar nossa inserção nos novos meios de produção e difusão de cultura de modo a impedir o aprofundamento das condições atuais absolutamente desfavoráveis para nós, sobretudo com relação a Música Brasileira que foi destruída interna e externamente na sua capacidade de produzir riquezas.
    Contestar a hegemonia e apressar a adoção da Nova Cultura. Sem isso, estamos perdendo tempo.

  • Léo, gostei muito deste seu texto. É comum vermos entre produtores culturais, manifestações legítimas, porém circunscritas à condição de participantes do meio, que acabam se alternando entre a obtusidade e o corporativismo. Para poder criticar política cultural de estado, temos que manter a visão ampla e fortemente plantada na finalidade primeira de uma política pública: o público. E você tem isso. Abraços.

  • Poxa, eu queria ver as manifestações dos produtores culturais. Talvez em São Paulo...ou em Nova York eles estejam pelas esquinas conjuminando corporativismos ou alternando obtusidades...mas onde estão eles querendo falar em política cultural? Logo isso que, é do público. Política cultural de estado por aqui é mistificação e ação entre amigos, todo mundo sabe de onde vem a política cultural daqui, vem de lá. De demagogia e conversa fiada somos pós graduados, ou doutores. O buraco é mais embaixo e fica combinado que todo mundo admira o Léo ( isso daria um bom comercial, compre no Léo, vantagens especiais...eheheh...tô de onda Leonardo...), mas que a contestar a hegemonia é tão raro quanto encontrar "produtores culturais" se manifestando. Já é hora.

  • E pra registrar, é verdade, a última vez que vi produtores culturais se manifestando eles estavam na Folha de São Paulo respondendo a provocação do assessor do presidente que comparou a invasão cultural com o estabelecimento da quarta frota. Não sei se eram obtusos ou corporativos, isso é com cada um, tratei de reproduzir as idéias e opiniões, estão aí no Reboliço. Quando se referiu ao público, um deles disse: vê quem quer...tem gente que acha mesmo que se tudo que passa é visto, então é porque o pessoal está gostando e é por aí...o pessoal do crack também parece que está gostando, então...libera? Manda mais pra eles? Esse negócio de pensar pelo público é muito complicado...depende.

  • E pra registrar, é verdade, a última vez que vi produtores culturais se manifestando eles estavam na Folha de São Paulo respondendo a provocação do assessor do presidente que comparou a invasão cultural com o estabelecimento da quarta frota.

  • Leonardo, os textos neste “culturaemercado” corajosamente, promovem reflexões sobre valores e práticas culturais. Agradecemos sua vasta contribuição.

    As reflexões provocadas por este texto “Cultura não é setor” devem ir além destes setores hoje organizados, reivindicadores, que se fazem representar e agem de forma corporativa.
    Sugiro uma analise crítica das políticas e práticas culturais observando-as como escalas-de-ação: Escala do Indivíduo, Escala dos Grupos e Escalas das Massas.
    As manifestações Culturais na Escala das Massas seriam: indústria cultural, Cinema, TV, gravadoras, Internet. Possuem alta representatividade e poder econômico.
    Na Escala dos Grupos: Companhias de teatro, dança, corais, orquestras, vídeo clubes e similares; Estes se representam por meio de Sindicatos e Associações.
    Na Escala do Indivíduo estão: Literatos, poetas, artistas plásticos, compositores e similares. Pessoas solitárias, não se fazem representar e sem poder de reivindicação. Portanto, estes grandes autores da humanidade, necessitam da atenção e proteção do Estado. Não me refiro ao incentivo a um indivíduo ou pessoa privilegiada. Refiro-me ao incentivo que favoreça a todas as pessoas serem autoras, e não passivas consumidoras. Incentivo que favoreça o acesso do grande público às “Manifestações Culturais da Escala do Indivíduo”.

    Outro aspecto, é a necessidade de praticarmos um Direito Cultural amplo e democrático; capaz de incluir setores sócio-culturais que praticamente não se beneficiam dos incentivos culturais. Refiro-me à expressão cultural dos povos rurais, detentores de um rico patrimônio imaterial. Refiro-me também à expressão artística na infância e juventude, hoje sufocada e excluída pelo poder e cultura dos adultos. Ir além do urbano e aquem do adulto.

  • O problema da Política Cultural no Brasil é antes, falta de comprometimento e cumplicidade com cidadania e brasilidade. Por ex. quando alguém do meio cultural assume, a pasta é utilizada em benefício de projetos pessoais e amigos (numa espécie de nepotismo colateral).
    Se o político de carreira assume, a pasta é utilizada em benefício setorial e portanto comercial (mercantilismo). Portanto, talvez e só talvez, a saída seja a regionalização das políticas culturais, com o fortalecimento e implementação de Secretarias de Cultura em todos os Municípios do país. Evidentemente mediados por conselhos Municipais de Cultura com representações: Sociedade Civil, artistas, produtores culturais e membros da esfera pública, ou seja, democrático e participativo.
    Enfim, mas o q se esperar, se até o Rio de Janeiro, dizem que tem, mas se tem é de existencia difusa, não possui de fato seu Conselho Municipal de Cultura...

  • Reenviando
    O problema da Política Cultural no Brasil é antes, falta de comprometimento e cumplicidade com cidadania e brasilidade. Por ex. quando alguém do meio cultural assume, em geral a pasta é utilizada em benefício de projetos pessoais e amigos (numa espécie de nepotismo colateral).
    Se o político de carreira assume, em geral a pasta é utilizada em benefício setorial e portanto comercial (mercantilismo). Portanto, talvez e só talvez, a saída seja a regionalização das políticas culturais, com o fortalecimento e implementação de Secretarias de Cultura em todos os Municípios do país. Evidentemente mediados por conselhos Municipais de Cultura com representações: Sociedade Civil, artistas, produtores culturais e membros da esfera pública, ou seja, democrático e participativo.
    Enfim, mas o q se esperar, se até o Rio de Janeiro, dizem que tem, mas se tem é de existência difusa, não possui de fato seu Conselho Municipal de Cultura...

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