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Cultura para todos é um bom negócio

A questão não é simplesmente acabar com a Lei Rouanet, mas aperfeiçoá-la

A idéia tem lógica, mas sempre pecou por sua exploração ideológica. A lógica está em utilizar nossa extraordinária diversidade cultural para criar uma forte indústria de entretenimento, capaz de atender ao mercado interno e projetar-se para o exterior.

Bem, antes de continuarmos, é interessante dimensionar esses mercados. Segundo dados do Banco Mundial (Bird), a indústria cultural é responsável por 7% do PIB do planeta, enquanto no Brasil, conforme a 1 Sistematização dos Dados da Economia da Cultura, levantamento realizado pelo IBGE com informações de 2003, o PIB da Cultura foi de R$ 1,055 bilhão e representou 5,7% dos gastos das famílias. Isso o coloca em quarto lugar das despesas dos brasileiros, logo depois de alimentação, habitação e transporte. É disso que estamos falando, em cifrões.

Foi com base nessa lógica que, em setembro de 1969, a Junta Militar que assumiu o poder com a doença do marechal Costa e Silva criou a Embrafilme, empresa estatal com a atribuição pública de fomentar a indústria cinematográfica nacional e apresentar aos próprios brasileiros e ao mundo o seu projeto de Brasil Grande – a quem todos eram constrangidos a amar, ou deixar.

A Embrafilme foi uma das primeiras estatais a ser extinta pelo Programa Nacional de Desestatização (PND) do governo do presidente Fernando Collor de Mello, em março de 1990. Com a gritaria dos produtores cinemato-gráficos, o grupo mais organizado e com poder de lobby da área de entretenimento, retomou-se a idéia de construir uma potente indústria do cinema.

Mas, na maré montante do neoliberalismo do início dos anos 90, a idéia acabou contaminada pelo decálogo do chamado Consenso de Washington, que hoje agoniza nas muitas crises ao redor do mundo. Vocês se lembram, afinal não faz tanto tempo assim: disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, privatização, desregulamentação das relações de trabalho.

Assim, o dogma ideológico do neoliberalismo de deixar tudo a cargo da mão invisível do mercado, interpretado pelos pastores do capitalismo esperto da República das Alagoas resultou, por um lado, na privatização de dinheiro público, por meio da Lei Rouanet, e; por outro, na desregulamentação do trabalho do artista, pela leniência do Ministério Público do Trabalho com as chamadas cooperativas — que o próprio Ministério Público do Trabalho considera, em outras categorias, como fraude à legislação, pelos prejuízos que causa ao trabalhador.

Está totalmente correto o presidente da Funarte, o ator Paulo Frateschi, ao propor a rediscussão da renúncia fiscal para incentivo à cultura, até porque não joga a criança fora com a água do banho. Ou seja, não propõe o fim pura e simplesmente do mecanismo, mas seu aperfeiçoamento.

Afinal, trata-se de dinheiro público: o meu, o seu, o nosso rico dinheirinho. Aquele mesmo que muitos empresários – alguns até beneficiários da Lei Rouanet – reclamam quando vai para programas como o Bolsa Família.

Dinheiro que poderia ir para a saúde, a segurança ou para a infra-estrutura, mas que pode muito bem ficar com a cultura desde que o investimento baseado na renúncia fiscal beneficie igualmente todas as camadas da população. Porque, como diz a música dos Titãs, “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. E a melhor prova disso é que, segundo o levantamento do IBGE, as famílias brasileiras gastam mais com cultura que com saúde ou vestuário.

Mas quantas famílias, já não falo nas das classes E, D, e C, mas da classe média, com renda de até cinco ou seis salários mínimos, podem pagar de R$ 130 a R$ 400 por dois ingressos para assistir a uma ópera financiada com dinheiro que, de outra forma, deveria ser empregado em melhorar sua qualidade de vida?

O que dizer quando os herdeiros de um banco tornam-se cineastas de sucesso, financiando suas obras com base na apropriação do dinheiro que deveriam pagar de impostos, enquanto um diretor teatral premiado não consegue patrocínio dez a vinte vezes menor para uma peça a ser exibida a preços populares?

Quando bancos e outras grandes empresas só patrocinam, com dinheiro público, projetos culturais desenvolvidos por seus próprios centros ou institutos culturais, alguma coisa está muito errada: nós, artistas e público, estamos sendo lesados. É preciso estar atento e forte, portanto, pois mãos invisíveis muitas vezes servem para bater carteiras.

Ligia de Paula Souza é presidenta do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado de São Paulo (Sated-SP).
Texto originalmente publicado no jornal Gazeta Mercantil, em 19/05/2008 e cedido pela autora.

Redação

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  • Quando se fala em reforma da Lei Rouanet recorrentemente usam-se fatos desqualificatórios de maneira equivocada. Isso mais uma vez foi feito no artigo acima. Não é a Lei Rouanet que é responsável pelo fato de algum banco poder patrocinar espetáculos com preços entre R$ 130 à R$ 400. Quem é responsável por tal aberração é a CNIC (Comissão Nacional de Incentivo à Leitura) que aprovou o projeto dessa maneira. A CNIC tem todas as condições de solicitar ao proponente que faça alterações no projeto. Ou cobrando menos, ou oferecendo uma cota de ingressos gratuitos. ENTÃO VAMOS PARAR DE UMA VEZ POR TODAS DE USAR O ARGUMENTO ERRADO CONTRA A LEI. ISSO NÃO É UM PROBLEMA DA LEI, MAS DE ADMINISTRAÇÃO DO MINC. Outra coisa importante a observar é o fato de se criticarem os centros culturais. Se esses oferecem uma programação cutural gratuita e de qualidade qual é o problema ? Devemos julgar o que se produz ao invés de cobrir com preconceitos quem patrocina. Para o artista que está tendo a sua arte financiada por um centro cultural esse discurso não faz sentido algum, pois o efeito para ele e seu público pode ser o mesmo e até contar com uma estrutura organizada trabalhando pela arte. Também não faz sentido esse tipo de argumento para o cidadão que está ganhando acesso gratuito à uma programação de qualidade. Só faz sentido para alguém que ainda tenta fazer alguma conexão entre o consenso de Washington e o problema pé no chão que é de todos nós brasileiros - cuidar da nossa estratégia de financiamento da cultura com criatividade e com os recursos que temos sem culpar alienígenas por qualquer coisa. Vamos aguardar o que o governo está preparando para ver se será algo realmente que tenha proveito. Por enquanto a marca desse governo está sendo péssima na gestão da cultura. É o governo do caos administrativo no ministério da cultura.

  • Discordo da avaliação feita por Tales Ceneviva: "É o governo do caos administrativo no ministério da cultura". É o melhor ministério da cultura que o Brasil já teve. O programa mais cultura é uma proposta inovadora, revolucionou a maneira da União olhar para a diversidade cultural brasileira. Suas ações são complementares, mostrando um projeto de ação com objetivos bastante claros de democratização e descentralização da gestão cultural. Acho que deve se ter claro que um programa inovador como esse depara-se com desafios, imprevistos, novas questões que são colocadas aos gestores e que nunca foram tratadas na dimensão como estão sendo trabalhadas pelo Minc. Uma outra coisa que parece estar acontecendo é que esta democratização, esta popularização das ações do Minc geraram uma demanda muito maior de projetos à Lei Rouanet. Um crescimento que a máquina pública não pode acompanhar devido aos impedimentos de admissão de novos funcionários para avaliar esta avalanche de projetos que chegam ao Minc solicitando autorização para financiamentos. No antigo jogo de cartas marcadas, poucos outsiders se dispunham a se submeter ao crivo do Minc. O que ocorre é que os grandes projetos (de cineastas e grandes espetáculos) concorrem hoje com pequenos projetos: o trabalho aumentou e a força dos pequenos, isoladamente, é pífia; acho que a mudança sugerida e defendida reconhece este aspecto problemático da Lei. Parabéns Lígia por esclarecer o que está por trás da chiadeira das raposas. Dinheiro público tem que ser revertido para todos os cidadãos indiscriminadamente e, infelizmente, a distribuição de alguns parcos ingressos gratuítos (e dirigidos) não resolvem este problema. A ma fé se alimenta da sobrecarga de trabalho dos funcionários públicos do Minc.

  • Sigo firme na direção tanto de Lígia de Paula quanto de André Luiz. Já falei isso aqui, mas não me custa repetir, sobre uma divertida, porém lúcida, matéria de Arthur Xexeo, "MUITO CENTRO E POUCA CULTURA", onde denuncia de forma bem-humorada a ploriferação de centros culturais de mentirinha no Rio de Janeiro, mostrando inclusive a média de público que frequenta tais centros, o que é praticamente inexistente. Isso está se ploriferando pelo Brasil todo. De reprente, de uma para outra, os centros culturais viraram moda. Consciência sócio-cultural dos ilustres donos de empresas que se apropriam desses centros ou é uma granja reprodutora, em grande escala, de verbas públicas para a raposa não ter tanto trabalho para se fartar das galinhas dos ovos de ouro? Todos os centros são ruins? Não, só a maioria. Os centros culturais talvez sejam o exemplo claro dessa farsa institucional, uma espécie de praga que assola o Brasil via Lei Rouanet. A grana está lá mesmo não é? É só passar da condição de imposto para mecenato. Isso, num estalar de dedos, qualquer burocrata de primeiro cursinho, contratado por centro cultural sabe fazer, e a grana sai da cartola como naqueles velhos truques de empresários brasileiros que ficaram ricos da noite para o dia, como bem disse Lígia de Paula, na era FHC e seu estado mínimo que rifou o patrimônio nacional, sumiu com a grana e ainda quadriplicou a dívida brasileira, quebrando o Brasil três vezes em oito anos, e ainda posa de príncipe da sociologia e mon-senhor da moral em nome da família brasileira.

    O Minc no governo Lula e gestão Gil está longe de ser um santuário. Eu mesmo fiz muitas críticas a ele, justamente cobrando uma mudança nas regras da lei e também que ele apresentasse projetos como esse que me parece excelente, o Mais Cultura, como bem disse André Luiz. Assim como ele, acho que é o melhor ministério da cultura que já tivemos, o que também não é tão vantagem assim, já que nunca tivemos um. O que tínhamos era a farra do boi, uma Sodoma e Gomorra onde todos se fartavam do banquete oferecido aos grandes tubarões. Na era FHC os impérios de produções como a de Xuxa, por exemplo, se esbaldaram com recursos públicos. Acho que é simples, meus amigos, a fila tem que andar. A democracia do acesso e do fomento tem que de fato existir e não ser uma obra de ficção. Repito, o Minc tem seus pecados, mas não são esses que a grande maioria dos articulistas aqui do Cultura e Mercado, insistem em apontar como erros, pra mim, ao contrário, são tentativas francas de acerto, de mudança de lógica, de inclusão.

    Espero mesmo que a Lei Rouanet mude radicalmente, que ela venha com outras normas, com regras claras, objetivas e democráticas, e que, principalmente, saia do tapetão e passe a fazer parte da vida do artista como recurso honesto para quem, honestamente, produz arte no Brasil. Mais ainda, que ela crie um novo mecanismo que aposente a cartola, o fraque e, principalmente, a bengala, a varinha de condão que enriqueceu muitos escritórios de captação de recursos públicos via Lei Rouanet.

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