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Cultura que se come

No último domingo (18/1), centenas de pessoas passaram pela rua da galeria Choque Cultural, na Vila Madalena, em São Paulo (SP), para o evento “Gastronomia é Cultura que se Come”. Iniciativa do Instituto ATÁ, em parceria com a feira gastronômica O Mercado e a Choque, o evento reuniu chefs de cozinha reconhecidos em prol da campanha Eu Como Cultura. O objetivo era angariar assinaturas para o manifesto que deve ser enviado ao Congresso Nacional.

Atala lançou a campanha em dezembro, um ano após criar o Instituto ATÁ, que tem como bandeira o incentivo ao uso de ingredientes naturais pouco conhecidos para uma culinária mais saudável – para quem faz, para quem come e para quem produz os alimentos. Proprietário do D.O.M., eleito o terceiro melhor restaurante da América Latina, ele explica que a proposta é que a gastronomia brasileira seja reconhecida como cultura.

“Queremos que produtores, comunidades e todos os atores da cadeia do alimento possam sobreviver do que produzem. Os ingredientes brasileiros precisam estar acessíveis em todos os mercados, não apenas em empórios sofisticados ou em mercados regionais. Assim, tanto os produtos quanto o nosso saber culinário serão reconhecidos como parte de nossa cultura.”, afirma.

Para ter um ponto de partida de fácil entendimento sobre a iniciativa para toda a população, Atala decidiu focar a campanha no apoio ao Projeto de Lei 6562/13, de autoria do deputado Gabriel Guimarães (PT/MG), que desde outubro de 2013 está na Comissão de Cultura da Câmara. A proposta é incluir a gastronomia brasileira como segmento beneficiário da Lei Rouanet, permitindo o financiamento a eventos, pesquisas, publicações, criação e manutenção de acervos.

“A gastronomia brasileira evoluiu muito nos últimos anos e este foi um processo que envolveu a maior profissionalização do setor, a criação de escolas especializadas e a ampliação do acesso da população aos mais variados sabores do nosso país”, afirma o deputado. Por isso, ele acredita que hoje a sociedade passou a valorizar a “degustação da culinária” como forma de manifestação sociocultural. “Nos reunimos socialmente para buscar novas experiências gastronômicas.”

Para Guimarães, com a gastronomia na Lei Rouanet, haverá garantia de direitos e criação de novos estímulos ao desenvolvimento e expansão das manifestações do setor, assim como acontece com os demais segmentos culturais. “É, de fato, mais uma opção para aqueles contribuintes colaborativos que querem valorizar a cultura”, defende o deputado.

Mas nem tudo é tão simples. Para o especialista em economia criativa André Martinez, deve-se manter um olhar muito crítico em relação à efetividade da Lei Rouanet como instrumento de incentivo. “A gastronomia remete a hábitos e tradições culturais alimentares, cadeias produtivas, interfaces com o meio ambiente, saúde, bem estar, educação, inclusão social, geração de renda, além das perspectivas estéticas que podem ser exploradas, descobertas”, lembra.

Segundo ele, como todas expressões culturais, assim como uma obra audiovisual ou literária, por exemplo, a gastronomia pode ser mais ou menos sujeita a interesses econômicos e padrões industriais de consumo, mais ou menos comercial, orgânica, diversa ou representativa em relação às memórias e identidades. “Vislumbro iniciativas marqueteiras e oportunistas, viabilizadas pela Lei Rouanet, nos moldes do velho marketing cultural. Mas também posso imaginar projetos incríveis de gastronomia transformando realidades locais com o incentivo de empresas comprometidas com sustentabilidade.”

Na prática – A Portaria 116/2011 regulamenta os segmentos culturais previstos na Lei Rouanet. É ela que define os projetos que podem ser apresentados ao Ministério da Cultura para a obtenção do incentivo fiscal. A principal mudança dessa portaria foi a inclusão das atividades de design e moda. “Na época, me lembro de terem discutido a questão da gastronomia, mas não entrou, e hoje não há previsão expressa de tal aceitação”, conta a advogada Flávia Ferraciolli Manso, do escritório Cesnik, Quintino e Salinas, especializado em questões relacionadas à área cultural.

“Hoje, para um projeto de gastronomia ser aprovado ele precisa, necessariamente, estar ligado a outras atividades ou temas culturais. Um livro, por exemplo, precisa agregar parte histórica/cultural, além da gastronomia. Um evento gastronômico precisa de atividades musicais, por exemplo. E assim vai”, explica Flávia. Assim, os proponentes acabam usando subterfúgios para conseguir entrar na lei, que hoje não aceita a gastronomia de forma isolada como um segmento cultural passível de incentivo.

Atala conta que não está em contato com nenhum representante do poder público. “Nos pautamos de acordo com nossos objetivos e temos auxílio de parceiros, como o Instituto Socioambiental (ISA), universidades, chefs e dezenas de entidades”, diz. A ideia é provocar a reflexão e o engajamento da população, a fim de causar uma pressão espontânea.

Segundo ele, não existe estudo sobre o impacto econômico da aprovação do projeto de lei. “Mas sabemos que é muito árdua a vida de quem vive da gastronomia sustentável, de uma pequena produção orgânica, de quem produz mel de abelhas nativas, pimenta jiquitaia em uma comunidade indígena na Amazônia brasileira, das doceiras que fazem doce de abóbora com uma técnica (nixtamalização) que é proibida no país, mas um saber centenário.”

Em seu parecer, o relator da matéria na Comissão de Cultura, deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ),  disse que o projeto não deve incluir as cadeias de fast-food entre os beneficiários, e também não se destina a promover a cozinha dos chefs renomados. Para Guimarães, da maneira como o texto original foi concebido, a gastronomia deve ser incluída na lei na sua forma mais ampla. “Desde que o projeto apresentado demonstre bem como estará servindo ao setor gastronômico como forma de manifestação, estímulo e desenvolvimento da nossa cultura”, completa.

Atala diz que ainda não está discutindo os meandros da regulamentação, mas que tanto na campanha quanto no trabalho do Instituto ATÁ, já estão claros os seus objetivos e quem querem que seja apoiado: as pequenas comunidades rurais, comunidades indígenas, comunidades ribeirinhas, pequenos produtores familiares, comunidades caiçaras, comunidades quilombolas.

“Que reconhecimento essas pessoas têm? Que apoio têm para sobreviver? Precisamos entender também que reconhecer a gastronomia como cultura é também uma forma de preservar a nossa biodiversidade. E que a gastronomia pode ser a nossa marca-país. Nossa gastronomia é tão rica. Pode se tornar fonte importante de divisas para o país, como acontece no Peru, no México e até na Coreia do Sul, que reconheceu a importância histórica e cultural de sua gastronomia recentemente.”

Além do incentivo – André Martinez lembra que existem projetos, em outras áreas, muito efetivos e legítimos que utilizam o incentivo, mas que priorizam o interesse público ao do patrocinador. Projetos que zelam pela diversidade, pelo resgate e preservação de tradições, ou que propiciam acesso efetivo e estimulam o protagonismo.

“Então, eu perguntaria, por que não incluir a gastronomia como beneficiária da Lei Rouanet? O seu reconhecimento como área cultural pela política de incentivo em vigor é a afirmação, tardia na minha opinião, de uma consciência a respeito da gastronomia como expressão cultural e sociocriativa, o que inclusive contribui para um discussão pública acerca do papel social da Lei Rouanet, exigindo maior complexidade no que entendemos por incentivo e mesmo por cultura.”

Nesse sentido, de revisão e rediscussão, Martinez acredita que sempre vale a inclusão de novas áreas. Mas a Lei Rouanet pode ser tão importante quanto irrelevante para a gastronomia, assim como pode ser para o circo, os museus, a dança. A questão, explica o especialista, não está nas áreas que a lei deve cobrir ou não, mas nas formas como ela é regida pelo poder público e pela sociedade e como é apropriada pelos produtores culturais e investidores.

“A lei já se mostrou notoriamente insuficiente como política pública ao permitir priorizar os interesses promocionais de patrocinadores em relação à prioridades públicas, mas também é fato que ela viabiliza empreendimentos maravilhosos e atualmente tem um papel contundente na atividade econômica da cultura no Brasil. É preciso bem mais que incentivo, é preciso diversidade de financiamento e inteligência sistêmica”, conclui.

Mônica Herculano

Jornalista, foi diretora de conteúdo e editora do Cultura e Mercado de 2011 a 2016.

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