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Depois do do-in antropológico

O impacto simbólico de Lula na presidência da República é algo tão grande e significativo para a nação brasileira, que foi preciso repensar a política de cultura. Foi dado ao músico e compositor Gilberto Gil o cargo de Ministro da Cultura. O artista-ministro já trazia uma carga simbólica em si, não somente por ser negro, artista e baiano, mas também pela relevância de sua obra e seu envolvimento histórico com movimentos políticos e sociais.

O impacto de seu discurso inicial foi enorme. O ministro pregava uma visão mais ampla de cultura em sua função política. Deixaria de ser mero commodity nas mãos de grandes corporações para se transformar em elemento fundador da construção das identidades e ativador da rica diversidade cultural no Brasil.

Gil definiu três dimensões para a ação do ministério: “cultura como usina de símbolos, cultura como direito e cidadania, cultura como economia”. Surge o do-in antropológico. A ideia era reposicionar o Estado, que assumiria sua responsabilidade cultural em todas as instâncias da sociedade, seja na diversidade de costumes, das crenças, educação, ciências ou comunicação, além de alavancar uma dimensão cultural do desenvolvimento.

A tentativa de fortalecer o Ministério da Cultura foi em parte bem-sucedida, com a instauração de um novo discurso,
mais potente, e que reserva ao Estado sua competência e responsabilidade. Mas, na prática, o que ocorreu foi um aumento gradual da utilização das Leis de Incentivo, saindo da casa dos R$ 300 milhões para os atuais R$ 1,2 bilhão por ano, em 2007, sem aumento dos investimentos públicos na mesma proporção.

Como a Lei de Incentivo tornou-se soberana e onipresente, justamente pela falta de outros mecanismos que auxiliem na difícil missão de financiar a vasta e rica produção de um país como o Brasil, ela acaba levando a fama pelo que não consegue abarcar. Hoje em dia, há quem atribua todos os problemas do teatro, das artes visuais e da indústria fonográfica à Lei Rouanet. Será que ela detém realmente esse poder?

O próprio MinC achava que não, mas fez vista grossa para o problema. O fortalecimento de outras musculaturas atrofiadas faria surgir o equilíbrio de forças. Mas o tempo da coisa pública é diferente da vontade dos governantes e o ambiente contaminado do financiamento à cultura tornou a solução impraticável.

Alguns projetos levados a cabo pelo MinC, como a criação da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual), que visava regular o cinema e a produção audiovisual no país, e o Sistema Nacional de Cultura, que criaria um pacto federativo em torno da gestão pública de cultura, foram abandonados ou diluídos (e retomado recentemente, com outra cara). O mesmo ocorreu com as câmaras setoriais de cultura, que buscavam organizar os setores em torno do desenvolvimento de suas cadeias produtivas.

O Ministério da Cultura abriu diálogos com a sociedade por meio de uma série de seminários, conferências e
workshops em todos os estados brasileiros. Essa ação contribuiu para ampliar a percepção pública do papel do Estado
diante da cultura. O Plano Nacional de Cultura, por exemplo, vem pautando questões importantes para o futuro das políticas culturais, como a legislação de direitos autorais e o financiamento público às artes. O mesmo se aplica ao programa Cultura e Pensamento, que busca a reflexão sobre as questões que afetam a cultura e a sociedade.

Alguns programas, como Cultura Viva, além dos editais de seleção pública e valorização da cultura popular, inspirados
claramente na política populista de Vargas, merecem destaque. Eles trazem agora um novo referencial, o do-in antropológico, que oferece uma visão mais atenta para o estímulo da diversidade cultural, a partir do desenvolvimento local. Se por um lado, são reflexos da contribuição e da inovação desse novo modelo de gestão cultural proposto por Gil, sofrem, por outro, da precariedade administrativa e falta de investimentos públicos que o qualifiquem como uma ação de alcance nacional.

A institucionalização desses programas dentro de uma visão contemporânea e republicana é fundamental para a consolidação do importante legado em âmbito nacional das propostas de Marilena Chauí e Gilberto Gil para as
políticas culturais.

* texto extraído do livro O Poder da Cultura.

Leonardo Brant

Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

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  • Entao. Qtos "artistas" foram realmente "contemplados" por essas leis? E o qto isto representou para o "crescimento cultural" do país? As vezes a idéia original é boa, mas vai se perdendo no meio do caminho. Acho q deveríamos fazer um levantamento de tudo o q foi feito. Para onde foi cada centavo do dinheiro do bolso do povo para a cultura. O q queremos? Queremos sustentar nossos "artistas"? Sustentar nossos "amigos"? Lavar nossas mãos e dizer q estamos dando dinheiro para a cultura? de uma maneira "imparcial"? Qtos cds, peças de teatro, filmes, livros e exposições foram feitas até agora? Existe alguma direção? Caminho? Meta? Ou foi apenas mais um dinheiro jogado fora? Nossa cultura cresceu, diminuiu? O povo está mais feliz? O artista está mais feliz? Ou é apenas uma grande confusão e salve-se quem puder? Quem tem amigos la dentro ou quem não tem?

  • perguntas que merecem resposta... principalmente do Minc... respostas claras, objetivas, mapas esclarecedores, como se o Minc fizesse parte do povo e não propriedade ora de um lado, ora de outro. sem a clamorosa discussão: ou está comigo ou contra. ou mereces meu carinho ou merecerás meu ódio. sem o desejo inconfessável de agarrar-se ao poder e às estruturas do poder. sem o desejo de provar a qualquer custo que o que eu digo é o correto (as vezes é, às vezes não é). sem discussões alteradas e provocativas. sem palavras ameaçadoras, disfarçadas de "temos que cuidar de vocês". sem apagar o passado, de qualquer tempo. sem o bateu/levou.quem sabe com um orçamento descente, quem sabe com reconhecimeno que estamos todos no barco da evolução humana. que o carinho no tratamento não signifique recuos, perda de controle, perda de poder (porque não recuar e aprender com a história?). arte, cultura,entretenimento faces da cultura de um povo.veremos a partir de hoje o que nos espera.

  • Penso que ainda é sim um 'salve-se quem puder', mas quem usa a internet como ferramenta de trabalho e detém a informação válida, pode fazer por si e pela sociedade independente da política. No que diz respeito a cultura, acho que o lema é: 'que vença o melhor'. Acredito nessa possibilidade. É importante que a política do país se organize e agregue princípios e valores para se ter no país uma melhor formação de opinião pública. Ah! A panela existirá por um bom tempo, infelizmente os interesses ainda são segregados, ainda existe a tal direita x esquerda. E o momento não mais precisa disso e sim de idéias mais sustentáveis para um bem comum. Só desse pensamento está na moda, já é meio caminho andado.

  • Vc tem a arte, o artista, o "consumidor", o mercado, o governo... Fazer arte é uma coisa. Vc pega um violão e sai fazendo música. Pega um papel e um lápis e sai desenhando. Autodidatas ou não. O governo poderia, deveria promover cursos, aulas, história da arte, da pintura, da música, da arquitetura... Exposições e shows de graça para o povo, já q o povo não tem grana p pagar pela "arte". Fazer arte. Produzir. Criar. Acho q é a parte mais fácil. E viver da arte? Eu vou lá pinto um quadro e tento vender pros amigos, familiares, talvez até na rua. Quem sabe uma comunidade de pintores possa promover o interesse no "costume" de comprar pinturas. As pessoas saem de casa e tiram dinheiro do bolso p ver um jogo de futebol, um filme, até uma peça de teatro. Então talvez a união seja uma resposta para como "sobreviver" da arte. E o governo? Cobrar mais? Entrar no governo? Através destas "comunidades"? Um dos problemas destas comunidades são as panelas. Não somos perfeitos. Tem a lei do mais forte. A xuxa é mais forte q a Céu. O BBB é mais forte q a tv cultura. Mas o lance é não repetir as falhas do passado e continuar andando. Pra frente.

  • Concordo com a Daniela, quando diz:" quem usa a internet como ferramenta de trabalho e detém a informação válida, pode fazer por si e pela sociedade, independente da política." Quando procuro conhecimento uso diversas ferramentas entre elas a internet. O ser humano quando busca sua autonomia "voa sem retorno". Sendo capaz de dissernir a qualidade cultural em que está inserido. O importante é que o indivíduo se aproprie das suas possibilidades e de ideias sustentáveis.Como? Por onde? Qual é o caminho? Será que temos a receita pronta? Talvez, as redes sociais ou em outras possibilidades criativas que somos capazes de desenvolver.

  • Caro Leonardo. Bom momento esse para retomar o debate em torno do programa do MinC. Há muitas questões que ficaram sem respostas: a relação do MinC com a classe artística, que está combalida; a relação com a intelectualidade e com as academias (e não apenas com a USP); a questão do orçamento - do tão falado 1% - que precisa de uma resposta mais realista no próximo mandato, tema aliás de ultrapassa o MinC e vai cair lá na gestão macroeconômica do país; os projetos trancados nas incertezas do Congresso Nacional; a necessidade de qualificarmos a gestão do Ministério (menos promessas e mais concretude). Enfim, o destino é generoso e tem nos oferecido sempre novas chances para os recomeços. Bom não perder a oportunidade, nem o senso crítico.

  • Cidade das Artes... Imagine uma cidade das artes. Como Hollywood, Las Vegas. Ou Brasília. Pegamos a grana do povo brasileiro. Escolhemos um deserto. Pagamos os artistas coisa de 20 mil reais por mes. Fora mordomias, moradia e passagens aéreas. Ternos italianos, champagnes francesas e cafézinho. Muito cafézinho. Qto custa Brasília? Temos retorno? De repente uma cidade das artes poderia além de sustentar nossos artistas, gerar empregos e quem sabe até exportação. A própria Globo vive da "arte". Das novelas, músicas, seriados, filmes. Propaganda. Leis de Incentivo. A idéia era boa. Mas de repente meu projeto depende do patrocinador. Que já iria dar seu rico dinheirinho para o Leão. Ele decide q projeto "cultural" vai p o mundo. Muito tudo surreal... Meu amigo tem um restaurante. Paga imposto, paga salário, paga propaganda. Não tem ajuda alguma do governo. Muito pelo contrário. O artista precisa de ajuda? O cliente sai de casa e tira dinheiro do bolso p comer a comida no meu amigo. Porque ele não sai de casa p ver uma exposição ou uma peça de teatro? Boa sorte p todos os artistas brasileiros. Não desistam???

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