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Direito autoral: Entendendo o conflito (parte 2)

Na primeira parte deste artigo sobre o debate em torno da lei do direito autoral, enfocamos o campo de força que se opõe à sua reforma, nos termos da proposta publicada pelo MinC. Agora vamos considerar a posição daqueles que não apenas defendem as mudanças, mas até as consideram tímidas.

Se os adversários da reforma amparam-se nos artigos da Constituição (“Aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar.” Art. 5, XXVII) e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (“Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.” XXVII, 2), seus defensores bebem nas mesmas fontes “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional” (CF, Art. 215); “Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.” (DUDH, Art. XXVII, 1).

Trata-se aqui de um grupo heterogêneo, que faz opção pelos usuários, maioria nesse grupo, que também abriga acadêmicos e artistas. O segmento acadêmico tem produzido pesquisas inovadoras, entre as quais por falta de espaço citarei apenas uma, que constatou que o longo e custoso processo de formação de um típico professor de universidade pública brasileira, majoritariamente bancado pelo contribuinte, via de regra termina com a privatização de sua produção, publicada por empresas que recebem subsídios públicos destinados a promover o acesso aos livros, não obstante caros (s://www.gpopai.usp.br/relatoriolivros.pdf).

Entre os artistas, encontram-se principalmente os jovens, que disponibilizam gratuitamente sua produção, seja por opção, seja por não lhes restar outra alternativa como porta de entrada nesse competitivo mercado. Por óbvio, não dependem do DA para sobreviverem, o que pressupõe outra fonte de renda. Alguns tentam sobreviver de shows, o que não é viável para quem é apenas autor ou compositor. Outros encontram no próprio movimento uma estratégia a mais para divulgação de seu trabalho, o que não deixa de ser um diferencial, e eventualmente rende convites para palestras.

As críticas desse partido dirigem-se ora aos governos, quando ensaiam combater a pirataria ou a troca de arquivos pela internet; ora aos autores que discordam dessas práticas, sentindo-se lesados; mas principalmente à indústria. Esta e seu ultrapassado “modelo de negócios” aparecem como culpados pela “exclusão cultural” de amplas parcelas da população, ao impor uma “escassez artificial” dos bens culturais.

O curioso é que esse valioso acervo de bens culturais, produzido ao longo do século XX, é produto do mesmo modelo falido, que encheu o mundo de fonógrafos, rádios, TVs, discos, computadores, satélites, que nos permitem – por causa deles e das transformações que provocaram – perceber que sim, é possível democratizar o acesso ao patrimônio cultural comum da humanidade. Nessa contradição debate-se tal movimento, e o mal-estar que ela provoca não se resolve só com o uso de software livre. Exigiria antes, por coerência, renunciar ao conforto proporcionado pelos produtos da indústria e, no campo artístico, retroceder ao acústico, ao artesanal, ao século XIX em suma.

Ademais, a ênfase na produção mais recente em detrimento do que já está em domínio público – incluindo aí inúmeros clássicos da literatura e da música ocidentais que nem por isso se tornaram tão amplamente consumidos – concorda com a lógica da própria indústria, para quem o novo é sempre melhor.

Ao contrário do partido do ECAD (e do Presidente Obama, que citei na primeira parte deste artigo), esta corrente de pensamento silencia a respeito do interesse nacional no fortalecimento do DA. Países do chamado primeiro mundo tem se preocupado em estudar a economia da cultura e implantado medidas para fortalecer as chamadas “indústrias culturais” (ou “criativas”). Sabe-se hoje que este setor responde por parcela significativa da riqueza e emprego, crescendo em geral a taxas maiores do que a economia como um todo. Sobre este pano de fundo, vê-se a diversidade cultural brasileira como um enorme potencial econômico inexplorado. Espera-se do Estado, em consequência, medidas estratégicas que assegurem que esta diversidade venha a gerar divisas no futuro, entre elas a defesa do DA – sem o qual não existe economia da cultura – no país e no exterior.

Neste contexto, é legítimo suspeitar, como faz o ECAD, que este “partido do acesso” abrigue, ao lado de idealistas que lutam por um povo mais culto, “consumidores” que nessa cadeia produtiva estão longe de ser os elos mais fracos, como as corporações de mídia (muitas delas inadimplentes com o ECAD). Empresas que em tese poderiam oferecer “conteúdos livres”, alegando “finalidades meramente culturais”, e mesmo assim faturando com publicidade ou simplesmente com a exposição da marca. De outro modo, como explicar que uma empresa de telefonia, um banco e até uma estatal do petróleo já tem suas próprias rádios?

A tese radical de que os produtos culturais, por serem “patrimônio da humanidade”, passariam a ser propriedade comum, não se sustenta se levada às últimas consequências. Imaginemos se todos os prédios históricos, ao serem reconhecidos como tal, fossem desapropriados. Isto só acontece em circunstâncias extremas (se o proprietário não garantir a conservação do prédio, por exemplo). Seria este “comunismo da propriedade intelectual” o último refúgio de um pensamento que vê cada vez mais remotas as chances de o país implantar o comunismo como sistema político? Que dinheiro, terras e meios de produção fiquem como estão, mas pelo menos músicas e filmes sejam de todos?

Chama a atenção, no atual cenário político, serem raros e marginais os discursos que se opõem à propriedade privada por princípio. Fica a impressão de que, se fosse tão fácil apropriar-se (ou “compartilhar”) pela internet do dinheiro dos bancos como ocorre com músicas e filmes, haveria um discurso coerente e bem-intencionado para justificar essa apropriação (o “dinheiro livre”).

Um teórico movimento defende que a cópia não autorizada de um arquivo digital não poderia ser ilegal: “Onde estaria o roubo, se o original não foi violado, destruído ou afetado?”. Seguindo com a analogia bancária, pensemos que num assalto a banco também não são afetados os originais das cédulas, a salvo na Casa da Moeda. Denunciar a indústria cultural por promover uma “escassez artificial” dos conteúdos faria sentido se a multiplicação destes fosse, ao contrário, “natural”. Mas como, os conteúdos não são multiplicados por máquinas? O mesmo autor pretender ainda fazer crer que a lei brasileira e as convenções internacionais de que o Brasil é signatário são apenas “ideias disseminadas pelas associações das empresas fonográficas e cinematográficas.”

Outro chega a afirmar simplesmente que “o direito autoral é um monopólio”, confundindo o direito individual com o sistema de arrecadação baseado na gestão coletiva deste direito. Ao argumentar que a inexistência do direito autoral “até 300 anos atrás não impediu a humanidade de receber obras mestras”, esquece o quão jovens são tantas outras conquistas cuja universalização ainda custará um longo caminho à humanidade. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, não tem mais de 60 anos e é apenas desde então que se difundiu mundialmente a noção da cultura como um direito.

É evidente que esse discurso encontra cada dia mais adeptos entre os que baixam música e filmes de graça da internet para consumo próprio, sem jamais terem se dado conta de que agiam assim em prol da democracia. Mais preocupante que isso, porém, é ele encontrar eco em setores (digamos “populistas”) do atual governo, ao oferecer uma solução fácil para certos limites às ações do MinC. Num exemplo concreto: distribuímos computadores por milhares de pontos de cultura, mas não temos (ou não previmos?) recursos para comprar (ou produzir!) conteúdos que atendam a demanda que nós mesmos geramos. E agora?

Cabe aqui a crítica da UBC contra “uma retórica em prol do acesso à cultura em detrimento do direito do autor, eximindo o Estado de sua função de prover educação e cultura e transferindo tal obrigação para o autor”. Ou, voltando às palavras de Marlos Nobre, citado na primeira parte deste artigo: “Se o MinC quiser distribuir gratuitamente as obras, que o faça da maneira mais apropriada e recomendável: pague aos autores os direitos necessários e as distribua de graça onde desejar. Mas que o artista receba pelo seu trabalho.” (Reproduzido em s://www.ubc.org.br/) Ou teria ocorrido ao MinC pedir computadores de graça às indústrias, “para fins exclusivamente didáticos ou culturais”?

O assunto é complexo e já me estendi mais do que pretendia, mesmo dividindo o artigo em duas partes. O anteprojeto do MinC finalmente está aí para ser lido e criticado, principalmente pelos autores – que tem razões em ver no processo uma ameaça a seu sustento – com serenidade e firmeza, mas sem pré-julgamentos. Retomando o que escrevi no início da primeira parte, a moldura de “bem x mal” não favorece a compreensão do quadro, e é falsa a oposição entre direito de acesso e direito de autor. A Constituição obriga o Estado a garantir ambos, sem aviltar nenhum.

Álvaro Santi

Poeta e músico, coordena o Observatório da Cultura da Prefeitura de Porto Alegre (RS)

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  • ....a enorme interferência do Estado instalada pós LuLa, é desanimadora e parece que vai ser pior com D Dilma ..que tem os parafusos soltos....é de se desanimar....a ordem que as coisas estão indo no Brasil, sob uma máscara de desenvolvimento. A verdade é bem outra e creio que vamos ter uma bolha que vai estourar mais para frente....nesse caso tomara que a Dilma ganhe sera o estouro da bolha no pé dela que ajudou a criar essa insurgencia brasileira..... ;

  • O criador está sendo oprimido pelo novo modelo de cultura na sociedade digital. A criação é a célula mater de todo o processo cultural, não pode ser bombardeada pelas novas tecnologias sob pena de fernecer na solidão da ganância empresarial. O mercado publicitário ganhando milhões com seus anuncios etc, e o criador sendo usado pelos empresários do entretenimento sob alegação do saber comum.

    As novas modalidades de tecnologia existem para difusão e não extinção do criador,cabendo as empresas se adequarem para tudo fluir em harmonia com o criador e coexistirem em qualquer suporte.

    sonia ferraz advogada rio de janeiro

    soniamgferraz@hotmail.com

  • Todo o sistema de gestão coletiva do DA brasileiro é esquizofrênico, a iniciar pela obrigatoriedade de associação para garantia de recebimento de direitos autorais.

    A nova lei é muito bem vinda e supre parte destas anacronias.

    A direito do autor deve ser preservado e possuir função social, remunerar o autor e garantir o acesso a arte por todos.

    Parabéns Álvaro pelo sábio artigo!

  • O Creative Commons não oferece conteúdo que não seja liberado pelo autor. Portanto, não lesa autor nenhum. A UBC sorrateiramente esquece este detalhe.
    E se uma indústria resolve doar computadores para fins exclusivamente didáticos e culturais, as concorrentes têm o direito de chorar a perda da teta das verbas estatais? A questão do site do MinC seria melhor discutida a partir destes pressupostos.
    No mais, creio que o direito do autor é sagrado. Seja para cobrar, seja para doar. A UBC evita falar disso. Quando o assunto é o Creative Commons, não estamos falando sobre descumprimento do direito de autor. Estamos falando sobre reserva de mercado.

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