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… é da lama que florescem os lírios?

Como diz Brecht, vivemos momentos sombrios. Não foi por acaso (aliás, para mim nada é por acaso), que em janeiro elegemos como foco de nossos estudos o brasileiro Mario de Andrade. Será que, intuitivamente, não estamos vendo protagonizar nosso grande personagem “Macunaíma”, um anti-herói sem caráter?

Como diz Brecht, vivemos momentos sombrios. Não foi por acaso (aliás, para mim nada é por acaso), que em janeiro elegemos como foco de nossos estudos o brasileiro Mário de Andrade. Será que, intuitivamente, não estamos vendo protagonizar nosso grande personagem “Macunaíma”, um anti-herói sem caráter? Será que perdemos definitivamente o caráter ou estamos com preguiça? Ou será que “a cultura do MS realmente se transformou numa grande unidade autárquica”, como disse o articulista Dante Filho em seu artigo contundente e instigante, no jornal Correio do Estado, em MS, do dia 29/08, ‘Migalhas do poder e jabás culturais’? Começo a acreditar que ele tem razão.

Não é de hoje que o corporativismo cultural e os “jabás culturais” vêm perdurando por governos e se alastrando pelo país todo. Concordo com ele, mas não é só em MS. O Brasil inteiro sofre dessa epidemia crônica. Será que não precisamos parar para refletir a crise da cultura contemporânea que estamos vivenciando? Por exemplo: hoje, para você fazer teatro, não precisa mais estudar, ler, ter talento. Basta ser “amigo do rei” ou entender de marketing e captação. Então, inspirada em Dante Filho, me pergunto: a cultura do Brasil realmente se transformou numa grande unidade autárquica ou num grande marketing cultural? Que tipo de cultura vem sendo aplicada e que tipo de cultura nós precisamos e queremos? Será que as palavras, a forma, os gestos, a tradição, a qualidade, a competência e as ações perderam seus significados ou seus valores, nesse mundo fragmentado, sendo quase tudo mercantilizado e massificado? Qual é significado de cultura hoje? Será que estamos destruindo a cultura para só produzir entretenimento de caráter efêmero e substituível?

Cultura não é um produto, não é um mercado, não é entretenimento. Cultura no seu significado mais simples é cultivar, cultuar, tomar conta, criar, preservar. Ela não é efêmera, assim como o teatro também não o é. Fazer cultura é criar história. Cultura é vida, construção, ação, qualidade, é conhecimento, que perpetua de geração para geração. ”Cultura é possibilidade de lidar com o ser humano brasileiro em todas as suas dimensões, mergulhado num meio ambiente Brasil que é sempre já, natureza e cultura.

Como artista e cidadã do mundo, vejo na cultura o espaço para o encontro de países, credos, etnias, sexualidades e valores, na cacofonia de suas diferenças, no antagonismo de suas incompatibilidades, nas generosidades de um lugar comum, algo que nunca existiu, mas sempre foi sonhado por aqueles que deixam seu olhar perder-se no horizonte” (Gilberto Gil, Diversidade cultural, 2005).

Será que esse significado tão lindo nunca existiu ou se perdeu no horizonte? Será que cultura não existe mais, como as canções infantis de rodas que caíram em esquecimento? Ou será então que o artista não se interessa mais pela cultura? O que precisa ser modificado? Como? Quem? Será que a palavra “cidadania” caiu em desuso? O que é ser cidadão hoje? Quando vamos modificar as ações das políticas culturais como todas a outras políticas públicas e privadas nesses país? Se a cultura fosse realmente respeitada e aplicada, não precisaríamos mais de leis de incentivo à cultura, como acontece em países desenvolvidos.

Precisamos mudar para diminuir a corrupção, a violência, a ignorância, a fome, o medo e as ações paternalistas, lobistas e corporativistas. Diminuir o sentimento único de que tudo se transforme imediatamente em dinheiro e lucro. Onde está nossa arte? Onde está nossa democracia? A democracia não se estabelece quando se realiza na pluralidade dos espaços públicos? Em se tratando aqui de arte e cultura, não seria bom que o artista também respeitasse artista, ou seja, aquele que  vem sobrevivendo do conhecimento de sua própria arte e que faz cultura nesse país? Na generosidade do lugar comum? O artista no Brasil, com raríssimas exceções, para sobreviver de sua arte, quando não faz “de graça” com a desculpa hedionda daquele que o contrata ”estou divulgando sua arte”, aceita cachês ínfimos e vergonhosos para não morrer de fome ou de ostracismo. Artista vive de sua arte, precisa produzir trabalhar, fazer. Precisa de paz e respeito para criar.

Até quando vamos ser vítimas do silêncio? Até quando a classe artística vai continuar desunida, invejosa, fazendo juízo de valores, criticando injustamente aquele que faz cultura nesse país? Até quando os artistas vão se manter afastados dos bancos das academias ou as academias vão manter os artistas afastados? Até quando vamos aceitar as ações culturais serem homogeneizadas e definidas somente pelo governo e não ouvidas e definidas por nós artistas? Quantos artistas conseguem sobreviver de sua arte sem ajuda do governo ou da televisão? Quantos artistas hoje conseguem viver de suas produções individuais?  Porque o governo não ajuda quem efetivamente faz arte e cultura nesse país? Porque precisamos de leis culturais? Porque para sobreviver precisamos de marketing cultural ou ser amigos do rei? Por que viver essa sensação de claustrofobia de ações permanente? Porque os grupos teatrais estão morrendo? Onde está o coletivo? Por que hoje só se faz teatro nos finais de semana? Viver de teatro hoje no Brasil é um ato de heroísmo ou de “macunaísmo”?

Vivo indignada com a política, corrupção, roubos, inverdades, preconceitos, jabás e as injustiças que vem nos cobrindo de lama. Estamos todos desconfiando de todos e tudo, ninguém acredita em mais nada, nem na pizza. A cada momento uma nova acusação, uma nova má notícia. Até quando? Cadê nosso Brasil, de tantas coisas belas, de tanta gente honesta, de tantos grandes pensadores e de tantos grandes artistas? O que está acontecendo com o ser brasileiro? Não está na hora de se fazer acontecer? Até quando nós artistas vamos ficar calados ou com inveja de quem consegue fazer? Até quando nós artistas vamos permitir que sejamos cortados em todas as ações governamentais, em pacotes econômicos? Quando seremos compromissados com a liberdade e não mais com a tirania, autarquia? Até quando nós artistas vamos permanecer no “império da covardia”, calados, como nos foi dito? Quando vamos apresentar um novo discurso que fuja da competitividade, do consumismo e que proponha resistências? Em que direção devemos caminhar? Até quando vamos continuar com medo e acreditarmos que o perigo reside em colocarmos nossas diferenças como barreiras para o diálogo? Não é na diversidade que encontramos novas idéias, novo conceito, novos valores? E agora José, e você?

Ando tentando fazer, a duras penas, a minha parte, ainda sem patrocínio para o nosso próximo espetáculo, mas sigo fazendo utopias e na esperança de poder  ver mudar um dia essa política cultural e também quem sabe, ver nossos impostos serem aplicados com legitimidade na cultura, na educação, na saúde. Na esperança de fazer e quem sabe um dia poder ver nascer lírios, nesse nosso mar de lama que envolve  artista, cidadão comum, nós brasileiros.

Lais Doria

Redação

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