Categories: PONTOS DE VISTA

Hoje é dia de branco: a inclusão que exclui

Nesses últimos anos venho me dedicando exclusivamente a investigar os paradoxos e as mentiras construídas pela “inclusão social” via cultura. Nada neste país é mais cínico, hipócrita, e posso dizer sem susto, maquiavélico contra a sociedade. O príncipe andou a inspirar os nossos iluministas de fichário, sócios-proprietários de um vitalício conselho cultural. Nem em um governo que tem como chefe um legítimo representante das massas, essa estrutura que prioriza uma idéia branca de domínio sob a cultura mestiça, sofreu sequer um arranhão. Ao contrário, dados apresentados aqui na tribuna Cultura e Mercado mostram que o civilismo nesses últimos seis anos ganhou força no Brasil, é só observarmos quais critérios foram adotados no investimento público para a “cultura”.

 “Quando a crítica não é acompanhada pela análise ela permite a mobilização, mas não a construção. A crítica deveria suceder a análise, mas na maioria dos casos, a necessidade de ser crítico opera como se o analítico fosse dispensável. Isto é um fator de atraso, inclusive nos partidos de esquerda no Brasil.” (Milton Santos).

Ficamos entre a expansão civilizatória ocidental e a liberdade vigiada pela burocracia no Estado nas manifestações espontâneas do povo.

Ora, vivemos essa história no nosso cotidiano, como somos achacados por essa malandragem de criar dificuldade para vender facilidade. Primeiro segregamos oficialmente o povo, depois prometemos a salvação, isso se ele estiver disposto a ser obediente e se enquadrar num formato de domínio.

Se por um lado me alegro com a expansão da classe média pela inclusão aos bens e serviços de uma parcela maior da sociedade brasileira, por outro lado me assusto, pois é nessa parcela média que temos o principal fruto da deformidade sócio-cultural.

“No Brasil e no terceiro mundo não se criou um cidadão, enquanto o primeiro mundo o preparou desde o iluminismo, o cidadão é a mistura do homem público e do homem privado; nós não temos nenhum dos dois. A classe média foi, na Europa, o sustentáculo da democracia. No Brasil, ela não quer direitos, quer privilégios.” (Milton Santos).

Mário de Andrade bem que tentou, com a enciclopédia brasileira, produzir uma síntese da nossa sociedade autônoma, independente, mas o Estado Novo de Getúlio não permitia a idéia de um cidadão como o Macunaíma que tinha como tópico e cristalizado em seu sentido natural a negação de uma disciplina de servidão a um ideário branco que mesmo o Estado Novo, ufanista e nacionalista, mantinha. Isso chocava com o que era naturalmente nacional. “A civilização européia de certo esculhamba a inteireza do nosso caráter”.

Em síntese, o que produzimos em termos de modelo oficial de cultura é a expansão da antiga expressão “hoje é dia de branco!”, que se refere aos dias de trabalho obediente e disciplinado, uma reprodução, um reflexo colonizador branco, não necessariamente o português, mas acima de tudo uma idéia patronal.

A colonização brasileira está aí refletida nos nossos dias, onde Igreja e Estado se fundem na construção de uma implacável perseguição às manifestações culturais do povo, que estruturaram tanto o poder do Estado quanto da Igreja. A segregação no Brasil é filha de um conceito permissivo desses dois pilares. O não cidadão negro descendente de escravos, de índios e de brancos pobres é filho de um castigo ainda pagão do ponto de vista religioso e, consequentemente cultural.

O que temos de concreto, meus amigos, é a negação do Estado para qualquer forma de sincretismo, pois esse eclode naturalmente na independência, na elevação da auto-estima, na busca por direitos, é o conceito pleno de cidadania. Então, é melhor para o Estado e sua estrutura de privilégios manterem o conceito pré e pós-colonial seguido de uma república branca construída por inúmeros golpes para sustentar essa hegemonia. Ora, é flagrante a tentativa de denegrir o povo brasileiro através da imagem do próprio presidente da república. Estamos diante de uma explícita negação do estado de direito democrático. Lula, que em sua trajetória como homem reflete esse mestiço brasileiro, sofreu os mais bárbaros ataques dessa elite representada pelo tragicômico “Cansei”. A tentativa de derrubar a imagem, a legitimidade e o poder de um presidente saído do povo, durante todos esses anos foi uma estratégia abonada por este arquitetado preconceito que construiu barreiras aparentemente intransponíveis para ascensão das idéias de alguém saído das classes economicamente desfavorecidas.

A classe média no Brasil foi vampirizada pela idéia civilista, ou seja, o cidadão para se tornar mediano, não terá mais direito de expor, de construir expressões a partir dos seus instintos e sentimentos. A inclusão passa necessariamente pela exclusão, pelo filtro que é a prova de negação de baixos instintos, segundo a cartilha civilista o conceito chulo que constrói personagens como Macunaíma, Jeca Tatu, Chicó, anti-heróis de um país que quer manter obediente, através da construção de ícones, o conceito de “ordem pública”. Incluir socialmente pela cultura no Brasil, é trocar a nossa construção e escolha pela obediência técnica franqueada por uma idéia manufaturada de cultura ocidental.

O que precisamos, agora e com urgência é, em primeiro plano, desmistificar esse bicho-papão, essa cultura anti-nacional construída durante cinco séculos da nossa história. Não há nessa proposta a visão pequena de um nacionalismo irracional e ufanista, ao contrário, grito pela liberdade de todas as expressões, grito com todas as minhas forças contra  todas as frases no campo da cultura de inclusão, onde a compra indiscriminada de um pensamento pronto tenta, de todas as formas, substituir as escolhas individuais ou coletivas do povo brasileiro. Não precisamos que a sociedade tenha acesso a nada, ela por si só é a cultura com todas as suas virtudes e contradições. As políticas públicas de cultura têm que obedecer exclusivamente a esse comando que é naturalmente democrático, diferente disso, falaremos sempre em dois Brasis, o dos renegados por suas escolhas e a dos incluídos que se acomodam com a imposição de conceitos, técnicas e estéticas num estado preguiçoso de cultura pela certeza de que o Estado lhes garantirá privilégios. Só teremos uma economia virtuosa na cultura quando quebrarmos a santíssima trindade.

Se a sociedade avançar no sentido da racionalidade, os oráculos naturalmente vão cair. A hierarquia aqui imposta terá sentido inverso. A arte, o artista, o acadêmico serão consequências e não formas e, portanto, isso tiraria o pão privilegiado da boca de muita gente. Essa gente toda quer a sustentação de mitos, quer continuar inventando o pecado cultural e logicamente vai sempre se vender como os únicos e possíveis salvadores de pobres pagãos para garantir o melhor dos vinhos para as suas mesas.

Portanto, não acreditemos na falácia de uma política displicente que naturalmente provoca esse quadro de segregação, pois a cultura oficializada no Brasil foi e ainda é o principal instrumento abonador das mitificações que mantêm as dicotomias do dominador e do dominado, do bem e do mal, do certo e do errado, como forma eficaz que mantém nas mãos de poucos os louros da riqueza produzida no país. O governo federal precisa se quiser de fato mudar essa realidade, de uma política cultural bem mais agressiva onde terá que implodir o Estado e os pilares que desenharam essa estrutura desigual e opressora.

Carlos Henrique Machado Freitas

Bandolinista, compositor e pesquisador.

View Comments

  • Caro colega,

    As mestiça esposa de Lula conseguiu a cidadania italiana, declarando que 'deseja um futuro melhor a seus filhos'. Meus pêsames.

Recent Posts

Consulta pública sobre o PAAR de São Paulo está aberta até 23 de maio

A Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo abriu uma…

6 dias ago

Site do Iphan orienta sobre uso da PNAB para o Patrimônio Cultural

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) lançou a página Aldir Blanc Patrimônio,…

1 semana ago

Seleção TV Brasil receberá inscrições até 5 de maio

Estão abertas, até 5 de maio, as inscrições para a Seleção TV Brasil. A iniciativa…

1 semana ago

Edital Transformando Energia em Cultura recebe inscrições até 30 de abril

Estão abertas, até 30 de abril, as inscrições para o edital edital Transformando Energia em Cultura,…

2 semanas ago

Congresso corta 85% dos recursos da PNAB na LDO 2025. MinC garante que recursos serão repassados integralmente.

Na noite de ontem (20), em votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) no Congresso…

2 semanas ago

Funarte Brasil Conexões Internacionais 2025 recebe inscrições

A Fundação Nacional de Artes - Funarte está com inscrições abertas para duas chamadas do…

3 semanas ago