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Lula e a horizontalização da cultura brasileira


Nunca antes na história deste país um presidente da república assumiu uma postura de relevância estratégica para a cultura brasileira, como esta anunciada por Carlos Gustavo Yoda em seu artigo, “Mais Cultura será apresentado a prefeitos eleitos em fevereiro”.

Devemos reconhecer os desdobramentos que um ato deste representa para a cultura brasileira, quando o chefe de Estado assume a bandeira política para fazer funcionar um projeto que ele crê, mais que isso, que o mesmo se junte ao corpo de ações que deu a mais Lula 80% de aprovação da sociedade em seis anos de governo.

Lula tem, em sua prática política, a marca da objetividade, foge do cerimonial para fazer valer os impactos das ações propostas pelo corpo técnico que elabora os projetos de seu governo. Quando isso toma ares políticos, Lula trabalha com a opinião pública pressionando prefeitos para que os mesmos assumam de fato a responsabilidade política diante da questão cultural do Brasil.

O que há neste ato em termos de praticidade é, em primeiro lugar, a realidade dos cargos dos secretários municipais de cultura que, na maioria dos casos, não passam de quadros decorativos.

Normalmente o secretário de cultura ocupa uma pasta de barganha política ligada diretamente ao prefeito como um homem de campanha ou, na equação que divide cargos em troca de apoios de outros partidos.

Por isso Lula, objetivamente vai direto ao ponto, ao prefeito, por entender que a pasta da cultura dos municípios depende tão somente da vontade política deste que, normalmente, usa grandes verbas da pasta da cultura para se promover em palcos de artistas famosos, e que terá agora que cumprir um mínimo de agenda política que Lula põe  no centro das questões estratégicas do seu governo.

Lula, com este ato, parece cobrar do MinC fogueteiro a fatura da mudança de paradigmas tão festejada antes do acontecimento durante esses seis anos. Ao mesmo tempo, reconhece o esforço dos técnicos do MinC e apóia publicamente a pasta do Ministro Juca Ferreira.

Sem dúvida a pasta sai prestigiada, até porque Lula, com certeza, exigirá resultados concretos, pois sabe que estará na berlinda, como principal cabo eleitoral de seu sucessor, e não empunhará publicamente uma bandeira que traga resultados pífios, senão negativos. Ele, com certeza, já fez os cálculos dos riscos que naturalmente este ato terá.

É provável que Lula tenha percebido que o projeto de horizontalização da cultura perdeu campo, pior, que a preguiça técnica do pensamento contínuo insiste na verticalização das ações públicas de cultura, com o mesmo foco cumulativo, com a mesma abismal prática de se pensar política pública de cultura no Brasil, onde, pateticamente, numa clara dimensão provinciana e sem qualquer preparo técnico, alguns “gestores” ainda insistem na idéia de que o homem urbano é mais criativo do que o homem rural.

Essa idéia bocó típica de quem anda em shopping center a se esbaldar em insuportáveis cavalos mecânicos de rodeio, tão apreciados pela idéia rural que as elites brasileiras têm do próprio país.

Na verdade, as elites, rural e urbana, são frutos de um mesmo pensamento de “Miami Beach Cowboy” e buscam um foco bem mais que caricato, oco, assim como quem anda conversando excessivamente com as estrelas sem observar o chão que pisa.

É de fato uma busca por algo concreto. O Brasil carece ainda de libertar o seu povo para as suas manifestações que, por incrível que pareça, como uma folia de reis que veremos se expressando aos milhares Brasil afora, logo após as 24 horas do dia de natal, estas precisam estar munidas de uma carteirinha que lhes permite a circulação, carteirinhas iguais às que éramos obrigados a apresentar no período da ditadura militar, ou seja, para grande parte da sociedade brasileira, entra e sai ditadura e seus direitos individuais fica onde sempre esteve, na marginalidade cidadã.

O que precisamos reconhecer neste pais é que, antes de tourearmos, com esse bom mocismo civilizatório, o primitivismo alheio, deveríamos quebrar um pouco essa cristalizada e enrijecida visão do próprio país e vermos que esse tipo de ato é de ineficácia secular, digo, essa coisa tão abominável de levar cultura ao povo que, além de arrogante, é limitada como a própria arrogância.

Essa visão tem que cair por terra em um ato cívico em praça pública e com salvas de canhão, para que os nossos conselheiros de caserna não consigam mais tomar para si os ares da população. E que os mesmos peguem seus embrulhinhos com lacinhos culturais e vão para a casa da vovó, tocar com seu irmãozinho o piano à quatro mãos, assim como a boa mocinha prendada, uma espécie de sinhá urbana e seu irmãozinho nerde preparado para ser um príncipe.

O Brasil tem que se livrar desse principado urbano e botar seu bloco na rua, livre, pra se expressar como quiser. A sociedade deve ter a voz institucional neste país. É neste terreirão aberto que a cobra sempre fumou, é ali, no tête-à-tête, nas relações negociadas que a nossa cultura caminhou e mantém um marco absolutamente inédito de chegarmos, em pleno 2008, com uma formidável manutenção das nossas bases culturais fortemente representativas e termos um pensamento científico, principalmente na área da música, nos mais altos padrões universais. Isso é um ativo econômico para o país que nenhum outro tem.

Por isso, é covardia cobrar um resultado comercial nessas rasteiras institucionais onde se coloca o interesse de uma empresa acima das questões nacionais. Os centros culturais têm, por obra da estratégia, serem representantes de suas práticas democráticas, não cabe mais neste país uma idéia centralizadora de uma elefante branco institucional dos centros das grandes capitais a estimular a política de pedra sobre pedra que amplia a perspectiva negativa de que, só é possível produzir cultura via traçado artificialmente delineado por essas teorias civilistas que mais conspiram contra a sociedade do que produzem efeitos que contemplem as nossas realidades.

Está na hora de falarmos de democracia cultural a partir do nosso próprio discurso. Seria de bom tom que essas grandes instituições corporativas ou centros culturais de grandes bancos fortalecessem o processo na base, onde têm suas filiais e compreendessem que não existem caminhos possíveis de uma só via, aquela viciada que converge todas as águas que correm pelo país para o mesmo mar da civilidade metropolitana.

Lula, com este ato, jogará o pó de mico nos prefeitos. Jogará diante da opinião pública para que a fiscalização dos resultados que ele anunciará com tais benefícios, sejam efetivamente cobrados para que todos os brasileiros, dos Zés, dos Tonhos, dos Bastiões, inaugurem o sabor de liberdade, para que todos os que têm um nome mais próximo de grife se beneficiem também de um espaço comum verdadeiramente saudável numa civilização onde a máxima seja o respeito por todos os brasileiros. 

Espero, sinceramente, que a cultura brasileira entrando na agenda do presidente da república, as cobranças se estendam, não só para a aplicação de uma certa democracia cultural proposta, não só pelas prefeituras, mas também pelos centros culturais deste país e que os mesmos se toquem que a cultura brasileira construída pelo próprio povo durante quinhentos anos, é muita areia para o caminhãozinho deles que se pretendem fomentadores da cultura brasileira.

Esses gestores de instituições de fachadas hollywoodianas com imponência arquitetônica têm que para se vender com tamanha importância e se apresentarem à sociedade como parceiros e não como objeto de consumo de certos artistas civilizados como o caminho dos sonhos, fazendo-nos crer dependentes de suas curtas visões de cultura de todo um país. Esses que dormem e acordam em permanentes reuniões, têm agora a necessidade de, junto com as prefeituras, esclarecerem à sociedade porque sequer podem atender a um telefonema de um cidadão comum e que segredo de Estado é esse guardado a sete chaves em mesas redondas de departamento de marketing cultural e centros culturais, eles têm para nos revelar. É bom que se cobre do MinC, mas é bom também que busquemos outros culpados por essa letargia, por essa pasmaceira que habita o ambiente institucional da cultura brasileira, um molóide, um touro sentado diante da viva e cada vez mais dinâmica sociedade

Temos ainda dois anos de governo Lula e, espero eu, que a pauta cultural, seja agora o cidadão brasileiro com as suas mais variadas formas representativas em sua cultura, e que tal ato de Lula sirva como o verdadeiro start para inverter a lógica da pirâmide para que, dentro de um campo livre e fértil por natureza, os processos de otimização sejam frutos da percepção do olhar atento da construção da própria sociedade. Que as tais instituições espalhadas pelo país sejam portos de convergência dessas escolhas, assim como as antigas paradas de tropeiros que faziam as suas canções sob os enluarados céus deste país. Assim teremos uma atitude funcional de tanto cimento, tanto tijolo, tanto papel que constroem as muralhas institucionais onerosas à sociedade sob todos os prismas, mas principalmente o social e o econômico. Que inauguremos, a partir de então, as instituições brasileiras de cultura baseadas nas nossas realidades.

Espero que Lula tire do encalhe este pensamento titânico imponente e arrogante que está com o casco furado, afundando no mar gélido de um universo excessivamente diplomado e absolutamente divorciado da sociedade.

Carlos Henrique Machado Freitas

Bandolinista, compositor e pesquisador.

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  • Bravo! Bravíssimo!

    Estou arrepiada e sem palavras. Obrigada Freitas por colocar o dedo na ferida com tanta propriedade e perspicácia. Nessa nostalgia de virada de ano, aproveito para refletir a minha atuação enquanto produtora/gestora cultural. É preciso repensar. Sempre!

    Novo ano feliz pra você e para a sua, a minha, a nossa cultura!!!

    Att,
    FERNANDA MELO
    Jornalista e Produtora/Gestora cultural - ONG Núcleo Cidade Futuro

    Governador Valadares / Minas Gerais

  • Aplausos!!

    Texto de leitura agradável e de pura reflexão. Vontade de sair correndo pelas ruas divulgando esse artigo. Muito interessante e para todos os públicos, pessoas atuantes no mercado cultural, pessoas atuantes em qualquer outra área e para todos os cidadãos. Fica fácil perceber neste texto a importância da cultura no desenvolvimento das cidades e do país. No desenvolvimento dos sistemas sociais, tornando as pessoas mais críticas e participativas. Precisamos olhar para todas as direções e buscar entender tudo que acontece ao nosso redor e aí sim, podemos dialogar e articular da forma mais correta e justa. Eu sempre acreditarei na evolução deste setor e de todos que nele atuam. Seremos os responsáveis pela grande vitória, que é colocar o nosso país e a nossa cultura em seu devido lugar. Bravo, bravíssimo sim! E que todos os municípios possam participar das estratégias impostas pelo governo. Feliz cultura para todos!!!
    Nidiane Oliveira - Gestora Cultural - Florianópolis-SC

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