Três anos bem vividos em Brasília me fizeram perder alguns espetáculos significativos em Vitória do Espírito Santo. Um deles foi “Os cegos ou o sábio de Flandres” com texto e direção de Margareth Galvão.

A fonte de inspiração da autora foi a obra de Pieter Bruegel, um pintor flamengo do século XVI e muito influenciado por Bosch, que além de visionário ao retratar os destinos e contradições humanas de maneira irônica e grotesca, antecipou movimentos artísticos que só foram ocorrer no início do século XX. Dentre os seus inúmeros quadros, que impressionam e até mesmo surpreendem o observador contemporâneo – A Torre de Babel, O Triunfo da Morte, Paisagem com a Queda de Ícaro, A Queda dos Anjos Rebeldes e o instigante Terra de Cocaigne (um mito medieval referente a uma terra de abundância, onde predomina a felicidade, a liberdade sexual e a comida farta) -, a autora escolheu “A Parábola dos Cegos”, de 1568, baseado em um conhecido dito bíblico: “Quando um cego guia outro cego, ambos caem no abismo”.

Em um famoso soneto, Baudelaire assim evocou o quadro de Bruegel:

Contempla-os, ó minha alma; eles são pavorosos!
Iguais aos manequins, grotescos, singulares,
Sonâmbulos, talvez, terríveis se os olhares,
Lançando não sei de onde os globos tenebrosos.

Atriz de renome no teatro e no cinema e formada em artes visuais pela UFES, a autora dá vida a esses seres crédulos e tolos, arrogantes o suficiente para acreditarem que sozinhos chegarão a algum lugar. O lugar que almejam a princípio é o paraíso terrestre de Cocaigne, a fim de realizar os seus desejos e vícios. Guiados por Lamprido, uma espécie de alter-ego do pintor e rei de um olho só, os três cegos ignoram as conseqüências nefastas de suas atitudes mesquinhas e egoístas.

Ostentando a presunção típica de quem só enxerga a si mesmo resolvem então ir a Roma pedir perdão ao Papa, e esperam dele um milagre: a visão. O guia ri dos três e oferece-lhe alguns florins para retratá-los deixando-os registrados para toda a eternidade, quase como uma caricatura do des(a)tino humano, todos em fila caminhando altivos e orgulhosos para a catástrofe e o fundo do poço.

Inevitável lembrar-se do “Ensaio sobre a Cegueira” de Saramago, no qual a aparente segurança reinante vai sendo gradativamente destruída pela indiferença e incapacidade de se solidarizar e se identificar com o outro, atingindo proporções apocalípticas.

O texto de Margareth Galvão fala da ignorância das trevas, da ambição e da presunção desmedidas, mas aponta para o seu contrário: a sabedoria e o bom senso. Ao final, o trio de aleijões caminha direto para a lama fétida desaparecendo na areia movediça e o pintor/guia anuncia que rezará pela felicidade deles. A cegueira espiritual, que beira a insanidade, leva a um desfecho patético, quase risível. Depois disso, impossível não refletirmos sobre a nossa própria conduta e a de nossos contemporâneos.

Uma obra de evidente qualidade dramatúrgica, inteligente e sarcástica, algo que o público brasileiro merece.  Pena que não vi a encenação.

Erlon José Paschoal

Gestor Cultural, diretor de teatro, dramaturgo e tradutor. Foi gerente na Secretaria de Políticas Culturais do MinC e é sub-secretário da cultura do Espírito Santo.

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