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Matadouro de Casablanca – o que antes nutria o corpo, agora alimenta a alma


Confesso, não como carne desde os dez anos. Mas o entusiasmo do título reflete a aura que contagiou a cidade marroquina, no último dia 12. Na ocasião, uma rede de peritos de vários países dissecou experiências que pudessem orientar a estratégia de reutilização do antigo matadouro municipal de Casablanca. Esse espaço monumental, de belas linhas e com uma luz filtrada de rara suavidade, receberá a primavera, em 21 de março, transformado em um local cujas marcas serão certamente longevas.

O projeto, capitaneado pelas prefeituras de Casablanca e Amsterdã, pode ser lido sob duas formas. A primeira, mais evidente, visa a dar novo uso a uma peça do patrimônio industrial urbano, ante o risco soturno e corriqueiro de terminar seus dias nas mãos da especulação imobiliária. Com isso, preserva-se uma parte da história intrínseca à alma da cidade, ao mesmo tempo em que se oferece um novo local de encontros de diversidades culturais. Uma história comum ao belíssimo projeto do Matadero de Madrid, complexo de 138 mil m2, construído no início do século e que há cerca de um ano transformou-se em referência de produção e expressão da cultura contemporânea.

Proposta que dialoga também com o Santralistanbul, antiga planta elétrica de Istanbul, de dimensões e período semelhantes aos do Matadero, que graças a um projeto encampado pela Universidade Bilgi foi convertido em espaço multiuso e multifunção, abrangendo residência, recreação e cultura. Nele, a energia foi associada a criatividade e esta motivou o reconhecimento de que os talentos da cidade são seu maior ativo – cultural, social e econômico. 

E eu, o que iria compartilhar, com tantos exemplos interessantes de reutilização do patrimônio industrial brasileiro, que vão da Usina das Artes (antiga usina de beneficiamento de castanhas, em Rio Branco) ao SESC Pompéia? Era inevitável lançar um olhar sobre a Cinemateca Brasileira, antigo matadouro municipal de São Paulo (o que teria sido bem menos moroso, se as duas semanas de tentativas de obter qualquer informação junto à diretoria e à assessoria de imprensa da instituição tivessem dado frutos – afinal, trata-se de patrimônio público…). Mas, orgulhosa de nossos feitos, levei também um projeto singular, pela inovação da proposta, pelo êxito que se revelou ser e pelo interessante modelo de organização social: o Museu da Língua Portuguesa.

Já uma leitura mais sutil desse conjunto de iniciativas revela quão enredadas são as questões culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas, para me ater a algumas. O Marrocos em especial – e Casablanca em particular – tem uma situação ímpar. Ex-protetorado francês, que ainda hoje traz na fala e na arqutetura francesas um espelho de influências, vislumbra a Espanha em dias claros e goza de estatuto especial dentro da Comunidade Européia. Não é para menos. O Marrocos representa, hoje mais do que nunca, um canal de comunicação entre a Europa e o mundo árabe, tão mais precioso quão mais intolerantes se tornam blocos das sociedades, em ambos os lados. É um país-mosaico, onde a diversidade floresce, a tolerância se funde com o respeito à cultura alheia e os gregos e troianos dos tempos atuais se sentem concomitantemente à vontade. Traz porém em seu tecido socioeconômico algumas fissuras latentes de efeito explosivo, que clamam por ser desmontadas antes do final da contagem regressiva.
Cidade de mais de 5 milhões de habitantes, onde cerca de 60% da população tem menos de 30 anos, Casablanca é pólo de atração de migrantes de todas as partes do país, e trava uma luta diária para gerar empregos e infra-estrutura que acomodem esse microcosmos, cuja vulnerabilidade detonaria o pavio da intolerância e da violência (conhecemos essa história). Mais do que isso, o centro comercial e financeiro do Marrocos ressente-se de uma carência atroz de espaços públicos para a criação e, especialmente, a expressão cultural.

Diante disso, os Abattoirs de Casablanca são rapidamente alçados da categoria de projeto de reutilização patrimonial para a de elemento crucial no processo de transformação socioeconômica de toda a região. Foi essa, aliás, a visão compartilhada não só pelas dezenas de artistas referenciais que compareceram ao encontro, mas também pelo próprio Prefeito da cidade. No bojo dessa busca de conexão entre o físico e o simbólico, entre uma proposta contemporânea e a história que o próprio edifício conta, está a necessidade imperiosa de oferecer novas vivências de experiências e expressões, para transformar a experiência de viver no que mais expressivo há neste mundo.

Ana Carla Fonseca Reis

Economista, mestre em administração e doutora em urbanismo, autora dos primeiros livros brasileiros em economia da cultura, economia criativa e cidades criativas. É consultora e conferencista em 29 países e sócia-diretora da Garimpo de Soluções.

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