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Multiprotagonismo

Há alguns anos, vivíamos a crença de que as novas tecnologias de informação e comunicação provocariam uma grande modificação nos modos de produção cultural, abrindo espaços e oportunidades para o protagonismo de novos agentes e camadas da população acostumadas apenas a consumir cultura, mas esta realidade ainda está longe de se concretizar.

Os fenômenos mais populares relacionados ao multiprotagonismo audiovisual são, por um lado, a reprodução de padrões e conteúdos massificados, seja por meio de fan-fictions, paródias ou versões caseiras de franquias da indústria cultural. Por outro, a simulação de situações e experiências livres, autônomas e espontâneas, mas realizadas no seio dos grandes conglomerados de mídia, ou por produtores a eles ligados.

Cada vez mais a grande indústria controla as novas plataformas de vídeo online, por meio de uma  vigília eficiente e (sumária) retirada do ar de vídeos (supostamente) não regulamentados em relação à propriedade intelectual. Com isso, implementa paulatinamente sua cartada estratégica,  com vistas a monetizar as novas janelas de exibição por meio do chamado vídeo on demand. O YouTube, que é o grande ícone do broadcast yourself, acaba de lançar um serviço desse tipo.

A participação do público, aos olhos dos grandes conglomerados de audiovisual e mídia, deve se resumir à propagação de seus conteúdos de forma favorável e controlada. Os espaços de livre expressão estariam, assim, resumidos e prejudicados pela onipresença do cartel midiático.

A história se repete. A televisão e o vídeo cassete já ameaçaram um dia a indústria cinematográfica dominante e já foram promessas de autonomia e liberdade. O que se observa, com o tempo, é a acomodação das novas janelas em conglomerados cada vez mais poderosos e concentrados. A cada novo meio criado, uma nova dimensão do mesmo negócio, a exploração do campo imaginário.

O multiprotagonismo, nessa perspectiva, não significa necessariamente promoção da diversidade cultural.

Não quero minimizar o grande potencial revolucionário da cultura digital. Os efeitos positivos no repertório cinematográfico mundial são perceptíveis. Invadem e contaminam, em termos de linguagem e modos de produção (essas duas dimensões sempre andam juntas), a indústria audiovisual global em toda a sua cadeia produtiva.

Como não se sustentam numa lógica econômica de escala, mas sim de rede e colaboração, esses novos modelos acabam funcionando como meros laboratórios das majors, numa indústria que reproduz e desgasta cada novo elemento de linguagem (clichê), apropriando-se da linguagem e eliminando sua lógica econômica de compartilhamento, substituindo-a pelo star system e pelas franquias multiplataforma.

A presença na web passa a funcionar como uma janela a mais a ser explorada, assim como a sala de cinema, o 3D, o home vídeo, as TVs aberta e por assinatura, o video on demand.

Ainda há muito espaço para se conquistar nas redes e processos colaborativos relacionados ao audiovisual, mas as brechas estão cada vez mais fechadas e os obstáculos difíceis de transpor.

Leonardo Brant

Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

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  • Bom, Leonardo, se olharmos sem maniqueísmo para o fenômeno político em que Lula se transformou logo no começo do século XXI contra todo um trabalho conjunto da grande mídia, durante oito anos, para abafar essa concentração e, não conseguindo, começamos a entender que os antigos proprietários do comportamento gerenciado já não tem mais aquela força dos seus ancestrais. Há uma geração, e não é promessa de descontinuidade, alguma coisa que regularize o território brasileiro.

    A questão é que não conhecemos todos os processos, mas que há um poder místico representando uma outra árvore, isso há. As referências não mais dependem dos textos extraídos dos "formadores de opinião". Não podemos dizer que a sociedade tenha titularização dessa terra e nem que as comunidades virtuais desapropriaram a grande mídia, mas há uma triangulação causadora de outra formatação, algumas oficinas que estão no intermúndio da internet sem a presença de liderança espiritual. Não existe uma voz única, tradicional ou moderna. A grande mídia trata isso como distúrbio, atacando inclusive a coreografia que a sociedade está criando, muitas vezes de forma metafórica.

    Acho, Leonardo, que há um misto entre os moradores da internet e o território comunitário que tem percepção da melhoria que seu dia a dia. Acho que assim nasce um sincretismo político-cultural. Não é uma manifestação condensada ou um arranjo em coro, mas alguma coisa autêntica que se manifesta com mais realidade enriquecida pela dinâmica da sociedade. Por mais que a indústria preserve alguns processos da base, o desenvolvimento comunitário vem estimulando outros diálogos capazes de traçar fios entre cidadãos que têm suas próprias vidas como referência. E talvez sejam as novas instituições de coletividade que estão estreitando os laços e criando novas ideias.

    Este é o grande desafio, a mistura dos novos elementos materiais que chegaram com as classes C e D e todo o simbolismo que isso está trazendo para a realização de outra forma de comunicação composta por uma química que valoriza o praticante desconhecido num movimento quase invisível, mas incrivelmente organizado pela própria liberdade.

  • Concordo com o Carlos, se prestarmos atenção nos movimentos que ocorrem "as margens" da industria e da suposta "casta de formadores de opinião", "o desenvolvimento comunitário vem estimulando outros diálogos capazes de traçar fios entre cidadãos que têm suas próprias vidas como referência". Talvez estas redes, fios e diálogos não cheguem a "multiprotagonizar" junto ao conglomerado do domínio de uma comunicação que interessa a poucos... Mas, cada vez mais me pergunto se não está exatamente ai a pequena, e verdadeira, revolução cultural.

  • Hummm, Interessante a abordagem e, mais ainda, a terminologia referida para um espaço realmente novo. Ou talvez nem tanto. O que se percebe é que a proliferação de protagonistas na cultura sempre houve, de certo que as mídias nem sempre propalaram os esforços daqueles que insistem ainda em construir espaços de ação e construção.
    Não recuso, ao contrário, reputo o papel importante da internet como meio e, ao mesmo tempo, como elemento de comunicação e intermediação de outros meios. Tenho observado esforços interessantes de vazão a anseios protagônicos (???) que se articulam via net e outros recursos convergenciais (salve o sms) mas que se expressam por outras vias e se rearticulam fazendo frente às já conhecidas barreiras ao exercício da cultura.
    Penso que movimentos como o dos coletivos, são a mais pura expressão dos multiprotagonismos latentes (agora nem tanto) que temos em nosso meio e cabe a nós incentivar e, até mesmo, aprender, quem sabe então institucionalizar meios, vias, acessos, que não as mídias digitais. Sem recusá-las, ao contrário, incluindo, sem descartar entretanto outras possibilidades latentes que há...

  • Pode ser que estejamos ofuscados pela sensação de liberdade, enquanto somos meros peões num jogo de xadrez...Houve uma vez a abolição da escravidão. Minha pergunta: os descendentes desses escravos já se integraram com a sociedade?

  • O advento da Nova Cultura no mundo se impõe e carece ainda da sua monetização que complementará o processo e iniciará a fase de crescimento e riqueza. Para nós interessa. Nossa questão será em que momento vamos mudar a agenda e passar a almejar participar do processo ao invés de anacronicamente criticá-lo. A recuperação da capacidade de produção de riqueza na música brasileira é o melhor motivo. E mais que isso, a garantia da propriedade do artista em circulação. A crise é sobretudo a ante-sala do novo momento, que está aí. As leis que regulam tudo isso passam sistematicamente nas assembléias dos países dominantes, daí sua implementação e depois disso, a periferia que já estará totalmente entregue, com fome e sede. Poderíamos avançar o processo e participar desde já dessa estruturação global...mas seria pedir demais?

  • Querido Gil.

    Ainda estamos perplexos com a revolução que as novas ferramentas da tecnologia nos trouxe. O primeiro ponto de toda essa história é entender que a desconcentração é uma viagem sem volta. À primeira vista, enxergamos as questões da música sem efetivamente considerar o processo que se encaminha. Não podemos ficar nesta peregrinação de entender as questões pelas formações compactas, aos moldes dos ventos que tocavam os moinhos da grande indústria fonográfica. Isso nos causa estranhamento, mas a virada do século trouxe uma imensa onde de integração, e é nela que devemos batizar a nova música. É aí que temos que irrigar a nossa economia. Estamos agora no entreposto a espera da abertura de novos negócios, aguardando com um enorme estoque, outras lojas, já que as antigas, as tradicionais estão se esgotando, fechando, pois não há como segurar com as mãos esse vento, não dá para passar um sabão na história que estamos vivendo, cuja construção de um n ovo entendimento só aceitará uma sucessão fora das correntes sectárias.

    Portanto, mãos a obra! Em busca da comunidade. Primeiro, passando logicamente pela sociedade brasileira, caminhando em todo o território nacional, sobretudo com uma agenda oficial que incorpore váios segmentos como sindicatos, UNE e outros espaços públicos que garantam a frequência, que incorporem outra compreensão. Foi-se o tempo da palavra única, da evelação divina. Milhões de blogs são criados por dia e precisamos entender isso, pois aquele clássico e consagrado universo das multinacionais não tem hoje mais a força de coordenação de uma grande lógística de distribuição.

    O quero dizer, Gil, é que não há força no mundo capaz de determinar ou proferir uma única meta. Todos estão no myspace, no youtube, no facebook, ninguém mais segue a batina de uma única igreja. As relações hoje dentro da cultura terão, como num ato institucional, que buscar alianças para a divulgação e reivindicação de seus trabalhos. A profissionalização da música hoje depende dessa elasticidade.

  • Carlão querido, já deu pra ver que os iutubes da vida, faicesbuques e que tais não levam a lado algum, é cantoria no banheiro digitalizada, na verdade é exercício para a Nova Cultura. Temos que sentar com os conglomerados, com as grandes corporações e negociar a entrada do nosso conteúdo, sem isso é ferro na boneca. O gigante tem um mercado enorme e um contingente imenso de gente que precisa de renda e riqueza. Enquanto ficamos matutando como legitimar o que é de graça nossos bolsos esvaziam e a carência aumenta. A vocação desenvolvimentista do gigante impõe o futuro, vamos a ele, sem medo de ser feliz.

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