Categories: PONTOS DE VISTA

O agente duplo

A sustentabilidade dos artistas no mundo atual é a preocupação central deste blog. Buscamos estabelecer relação direta deste cada vez mais complexo e difícil desafio frente às políticas públicas de cultura e as dinâmicas de mercado. O canto da sereia, muitas vezes o caminho da sobrevivência, outros da corrupção de valores e sentidos. Mas pode se tornar o motor potente, em busca de autonomia para navegar nas incertezas e na volatilidade das políticas públicas, orientadas cada qual à visão de mundo e de cultura dos detentores do poder.

Fui à II Reunião Pública Mundial de Cultura, promovido pela prefeitura de São Leopoldo (RS) como parte do Fórum Social Mundial, para lançar o webdocumentário Ctrl-V. Antes da exibição do webdoc, assisti a conferência de David Harvey, que discorreu sobre a necessidade de o artista trabalhar como uma espécie de agente duplo, dentro dos sistemas político e, sobretudo, do mercado.

Em busca de autonomia, ele pode e deve, segundo Harvey, ocupar espaços deixados no mercado para a criatividade. O autor acusa o capitalismo de ser o menos imaginativo dos sistemas. Sua existência depende de um certo grau de mecanicismo, que condiciona pessoas dentro de comportamentos e formas de atuação mais ou menos homogênea.

O geógrafo e professor da City University of New York (CUNY) enxerga neste terreno árido e difícil que é o mercado um mar de oportunidades para as atividades criativas e para o desenvolvimento e ocupação de espaços disfuncionais e subversivos. E deposita no artista a esperança e a responsabilidade de encontrar as brechas necessárias para implodir o sistema, ressignificá-lo ou reinventá-lo, com base em princípios humanos e éticos.

Harvey admite o risco de o artista “vender-se” ao capitalismo, mas diz que esse risco é um desafio saudável, pois estimula a tensão entre o artista, sua obra e sua função pública.

Perguntei ao pensador britânico, o que ele pensa sobre a formação e consolidação de indústrias culturais propriamente brasileiras, depois de apresentar-lhe como premissa o projeto desenvolvimentista do país, que acende uma vela para o capitalismo, baseando sua política econômica no mercado financeiro, e outra para o socialismo, ampliando a presença do Estado em ações sociais de cunho assistencialista, deixando o processo cultural numa área cinzenta, frente às contradições dessa política.

Harvey mostrou-se cético em relação ao desenvolvimento de uma indústria nacional. Considera os espaços ocupados por redes colaborativas mais adequado para o florescimento da criatividade. Mas não apontou como se daria o financiamento dessas atividades, provavelmente pelo Estado.

Mas se o Estado não é mercado, ele corre o risco de confundir-se com um produtor cultural, moldando aquilo que devemos ou não devemos ver, ouvir e consumir como arte e cultura. Diante desse risco eminente, vivido no Brasil em tempos de Procultura, Harvey defende quase que uma conspiração de artistas, em defesa da sobrevivência e em defesa da democracia.

Uma reflexão importante para o ano que se inicia, em que definiremos o novo modelo de política cultural para o Brasil, exercendo e negociando o poder de voto e de construção de uma agenda democrática, baseada na garantia dos direitos culturais e no pleno exercício da liberdade de expressão.

Leonardo Brant

Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

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  • Teixeira Coelho tem uma argumentação contudente sobre a questão da sustentabilidade em seu livro A Cultura e seu contrário. Ali, ele advoga que a cultura tem sido evocada erroneamente para a tarefa de manter o tecido social, diante da debilidade em que se encontram os elementos mantenedores anteriores - a política, a religião e a economia, elementos que agrupam e, ao mesmo tempo, afastam, separam.
    Quem de nós já não ouviu falar em inclusão ou contrapartida social quando se trata de projetos culturais?
    Daí, surge essa panacéia de que a cultura tudo pode e, em nome da sustentabilidade e de uma positividade de tudo na cultura é bom e justo, promover-se o que Teixeira Coelho chama de domesticação da cultura. O pior dessa perspectiva é que a única oposição se daria entre cultura e mercado, e nessa brecha se colocam os arautos da tradição, como se toda cultura fosse um passado transmitido continuamente, para defender uma tese de supremacia da chamada cultura tradicional popular sobre outras formas culturais.
    Acho luminoso quando Leo traz a tese de Harvey que o artista deve aproveitar o melhor dos dois mundos - estado e mercado - para realizar seu fazer artístico e de algum modo interferir para ressignifica as lógicas perversas que estão postas. Como utópico que sou, quero acreditar que nas fendas e nos vazios podemos ocupar a produção de cultura com outros e novos valores, para disseminar modos de ser, pensar, viver que não sejam apenas os que estão aí.

  • sou musico. acho q o papel do artista é ser marginal. como um religioso. nao devia nem casar. é nao ser mediocre. não ser político. é criticar mesmo. lobao, john lennon, etc. o papel dele é mudar a consciencia da sociedade. mostrar a sociedade como ela é. agora grana. tem o cara q toca tom jobim, q tem q se organizar pra ter aposentadoria, fgts, ferias e tal. e tem o compositor. o artista. q tem q vender seu peixe. nao o peixe dos outros. nada contra o cover. mas o compositor é q gera a mudança. o estado vem c essas leis q pegam dinheiro do proprio povo, atraves de um patrocinador, q decide se vai pagar imposto ou nao e q decide se apoia o projeto ou nao. e pouquissimos projetos sao aprovados e uma galera embolsa uma grana. filmes milionarios. campanhas politicas. ate ivete sangalo usa esse dinheiro. acho q o estado deve ajudar o "artista" mais basicamente. arte é para todos. teatro para todos. estudio para todos. equipamento de som para todos. pincel para todos. tela para todos. porque é melhor pra sociedade. a arte nos liga c o infinito. c o incomensuravel. c nossas almas. paz e amor.

  • Leonardo, meus parabéns!! Acredito que este foi um de seus melhores artigos publicados no site Cultura e Mercado até hoje, é uma abordagem bastante atual e centrada no nosso árduo trabalho, que não é nada fácil.

  • Se o Governo participa do mercado patrocinando, anunciando, promovendo, qual a novidade?Onde isso não ocorre? Para enfrentar a guerra cultural que se estabelece hoje no mundo, como não contar com o Estado? Como se os americanos, por exemplo, abrissem mão dos esforços da Nasa, ou das descobertas desenvolvidas nas universidades e nos complexos militares. Mas aqui a gente quer o Estado longe da cultura? Pois é aí onde mais precisamos dele. Nosso voto é muito importante.

  • Você mesmo disse:
    Quem seriam os financiadores?
    As grandes corporações que derrubam e colocam representes e lobby no poder ou o estado que pode censurar?
    O que sugere?
    No fundo o artista que firmar parcerias é um corrompido ou um corruptor.
    Ou apenas mendigos carentes num país onde mal se tem condições de se alimentar dignamente...de comida mesmo...o que dirá de idéias.
    E mais uma ez vc censurará meu comentário não é?

  • acusar o capitalismo de falta de imaginação, poderíamos compará-lo a que outro sistema? Ao mesmo tempo, a capacidade de adaptação capitalista tem sido a sua marca desde a revolução industrial. Mas há os querem implodir o sistema, para colocar o que no lugar? Temos antes que saber. E convenhamos, "artista vendido ao capitalismo" é muito, muito antigo...é um patrulhamento completamente por fora, é jargão dos anos..60? 70?...não há mais excedentes pra sustentar hippies, isso é coisa do outro tempo, até o muro já veio abaixo ( em que pese alguns que continuam vendo o Muro...).

  • Se tirarmos o Estado das bases de financiamento da cultura no Brasil a maioria dos projetos culturais (bons ou questionáveis)pararão. Qualquer processo de divulgação de nossas criações artísticas tem que ter dinheiro para pagar veículos de comunicação e/ou assessoria de imprensa. O artista tem que arrumar dinheiro para comprar tintas e telas, os compositores tem que arrumar quem grave suas músicas para ganharem dinheiro com os direitos autorais de suas obras e para isso tem que pagar estúdio de gravação para fazer um "demo" profissional e ter alguma chance de ser ouvidos, os atores tem que arrumar dinheiro para pagar direitos, montar cenários, espaços para ensaios, figurinos etc., os poetas e escritores tem que arrumar editoras ou alguém que pague suas publicações, os museus e bibliotecas tem que ter verba permanente para manutenção e ampliação de seus ou nossos patrimônios etc. etc. etc. etc. É muito simplista dizer aos criadores de matéria prima cultural: "se virem, baguncem e mudem o mercado". Nós não temos poder para tirar o "Big Brother" do ar e colocar coisa melhor no lugar, até porque tem patrocinador que está faturando ao ligar sua marca a este produto da mídia televisiva. As emissoras, embora tenham uma concessão temporária, tratam-na como se fossem permanentes, e de fato se tornaram permanentes pelo poder político que algumas dessas emissoras adquiriram, algumas a partir do regime militar. Antes de tudo penso que tudo começou a piorar com o sucateamento de várias atividades que tinham o estado como o principal gestor, e a principal delas é a educação. A falta de "educação cultural" foi uma maldade criada no período de perseguição ao livre pensar recentemente acontecido no Brasil. As sequelas e manutenção desse estado de coisas continua com a ditadura da mídia televisada e radiofônica, sem que tenhamos poder para alterar o estado das coisas. É claro que não interessa aos donos de escolas e universidades particulares, termos ensino de excelência nas redes públicas! Todos precisamos de dinheiro e quem o tem negocia a seu interesse que pode ter viés político. Poucos de nós tem condições de conseguir financiamento para nossos produtos culturais. Dependemos de bom trânsito nos meios políticos e empresariais para termos alguma chance de financiamento. Penso que existe a tentativa de democratização dos recursos públicos para a cultura. Porém os mecanismos vigentes ainda deixam no isolamento a maioria realmente necessitada.

  • No capitalismo também existe o Estado, que aliás é sua gênese. onde está essa premissa socialista no projeto de desenvolvimento brasileiro? disse que maior presença estatal é sinônimo de socialismo? Ah...a ultra-direita americana, que insiste em tentar colar socialismo a Obama. Tem que ter o coração duro demais para criticar as tais "políticas assistencialistas" diante da pobreza que ainda nos envolve. Implicá-las com o processo cultural? Em que sentido?

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