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O Auto do Nascimento do Que já Existia

Em tempos de anúncio pelo governo de propostas de reformas na lei com o objetivo de atender a produção cultural naquilo em que o Mecenato se mostrou ineficiente, corre-se o risco de comemorar o falso nascimento do que já existia.

Foi publicado aqui no Cultura e Mercado um excelente artigo do Paulo Pélico intitulado Lei Rouanet: reconstituindo os fatos, sobre os mecanismos de financiamento à cultura previstos na Lei Rouanet.

No texto, Pélico explica muito didaticamente que além do Mecenato (patrocínio incentivado com renúncia fiscal), a lei Rouanet tem ainda dois instrumentos que foram pouco desenvolvidos, os FICART e o FNC, Fundo Nacional da Cultura.

O FNC e a execução orçamentária do Minc são os fundos 100% geridos pelo governo federal e que, se usados com mestria, devem atender ao setor cultural naquilo que não é alcançado pelo Mecenato.

Após 17 anos da publicação da Lei Rouanet, em lugar de apresentar-se articulado e unido em busca de mais recursos para a cultura, batalhando por mais verbas e melhor aplicação do orçamento do MinC e do FNC, o meio artístico encena um melancólico drama.

Em uma imensa torre de Babel, querem fazer contrapor-se o mercado e a arte, empresas e artistas, produtores grandes e pequenos. O meio artístico parece estar falindo completamente em trabalhar pela concórdia e espaço para todos. É com assombro que constato que o setor cultural – tomando-o como setor econômico (des)organizado – é o único que possui fileiras que espantosamente rejeitam incentivos fiscais, engalfinhando-se em disputas viscerais capazes de causar imensas perdas ao próprio meio.

É nesse cenário que o artigo de Paulo Pélico ganha relevância para explicar aos artistas engajados e aos companheiros de plantão o beabá da Lei Rouanet, mostrando que ela não é um bicho papão.

Passado tanto tempo, ainda hoje faz-se necessário evidenciar que muitos dos problemas apontados pelos críticos da Lei Rouanet têm suas possibilidades de soluções previstas no próprio bojo desta. A voz que soa mais forte, com caixa de ressonância no próprio MinC, propaga a falsa noção de que as distorções são inerentes à Lei quando na realidade a grande questão a ser analisada é a forma como a sociedade e o governo fizeram (ou não) uso dela.

Na vanguarda, encontram-se produtores, empresas e artistas que foram rápidos em desenvolver competências e se apropriar da larga janela de oportunidades que se abriu com o incentivo ao patrocínio cultural pela renúncia fiscal.

O governo por sua vez, passou a executar diversas ações, utilizando-se do Mecenato e das facilidades políticas de gerenciar grandes orçamentos de patrocínio proveniente do lucro das empresas estatais.

Assim, utiliza o mecenato largamente, contribuindo em igualdade de condições com o setor privado para gerar as concentrações regionais tão conhecidas. Ao mesmo tempo, mostra-se incapaz de desenvolver a musculatura do Fundo Nacional da Cultura e do orçamento do MinC, instrumentos capazes de contrapor esse efeito.

Em tempos de anúncio pelo governo de propostas de reformas na lei com o objetivo de atender a produção cultural naquilo em que o Mecenato se mostrou ineficiente, corre-se o risco de comemorar o falso nascimento do que já existia.

Acredito ser esta a pergunta que devemos fazer ao analisar as propostas do governo : “O anunciado e os objetivos aos quais se propõe não poderiam ter sido realizados com a utilização inteligente e efetiva dos atuais mecanismos?”

Se a resposta for sim, então teremos que reconhecer que os problemas apontados decorrem da falta de visão estratégia e de problemas de gestão da administração do MinC. Essa não se preocupou em desenvolver os instrumentos já existentes para executar uma política cultural capaz de preencher as lacunas do Mecenato.

Nesse caso, a constatação será a de que, muito mais relevante que qualquer deficiência na legislação, a atitude insistente de apontar o argueiro no olho do colega impede o MinC de enxergar a verdadeira trave que está no seu.

O fato de nesse momento crucial o Fundo Nacional da Cultura e a execução orçamentária do MinC estarem a escanteio no turbilhão dessa discussão, explica em parte a esquizofrenia do setor cultural.

Configura também indício de uma miopia política grave, geradora da situação desagregada e fraca do setor cultural, incapaz de transformar a cultura num elemento relevante na agenda do governo.

É preciso saber se as novas propostas serão realmente inovadoras. Serão elas capazes de suplantar aquilo que poderia ser feito com o aumento e a aplicação eficiente dos recursos do orçamento e do FNC, estruturas já existentes na Lei Rouanet?

Caso não sejam, devemos nos precaver para não perdermos bons legados construídos durante quase duas décadas. Nesse caso ficará evidente que estaremos inevitavelmente assistindo a apenas uma encenação da farsa “O Auto do Nascimento do Que já Existia”.

Kluk Neto

Economista, é gestor do Programa Fábricas de Cultura pela Poiesis – Organização Social de Cultura, especialista em Gestão Cultural pela Cátedra Unesco de Políticas Culturais (Universitat Di Girona/ Itaú Cultural) e professor de Marketing no curso de graduação em Produção Cultural na FAAP.

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  • O mais engraçado de tudo isso é que o pessoal não vê o que vai acontecer quando a Lei acabar. Vamos voltar exatamente ao mesmo ponto em que estávamos no governo Collor, ou seja: acaba-se o único meio de financiamento da produção cultural. Os 20 bilhões que a lei está permitindo que cheguem aos que fazem cultura hoje em dia, vão voltar para onde vieram - ou seja do Ministério da Fazenda e, desse dinheiro, se muito, 160 milhões serão destinados a um Fundo que vai financiar os projetos do próprio Minc e dos governos estaduais - ou seja - museus e teatros oficiais - (tipo Teatro Municipal da PMSO, Pinacoteca do Estado, Festival de Campos do Jordão, entre milhares de outros) que dependem hoje em dia do dinheiro do patrocinador privado para sobreviver. Nós vamos ficar olhando ...

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