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O autor existe – Parte I

Entre os dias 3 e 10 de junho foram publicados no jornal O Globo o artigo semanal do Caetano Veloso (3/6), um editorial do próprio jornal (8/6) e uma crônica do João Ubaldo (10/6). O que há em comum entre os três? Abordam um tema muito em voga e, a julgar pelos três textos mencionados, tema que levanta animada polêmica, organiza grupos em disputa e movimenta um foro de discussão cada vez mais amplo: os Direitos Autorais.

Há muitos aspectos a serem discutidos, há muitos interesses em jogo, há naturezas diversas de questões envolvidas. A qualidade do diálogo em andamento, nem sempre é das melhores, especialmente porque não há disposição para se debater criticamente, com a firme vontade de apontar alternativas. Na verdade, a discussão, até o presente momento, parece presa ao modelo tradicional, os contra, de um lado, e os a favor, de outro. Os contra, nesse caso, são os que declaram o fim do direito autoral, como na crônica do João Ubaldo. Esses dizem-se modernos, em dia com a evolução tecnológica que parece movimentar, por si só e por vontade própria, o mundo em uma única direção. É bom que saibam que essa ideia de modernidade que caminha em uma só direção é antiga e ultrapassada, mas essa é outra história, fica para outra hora.

Nessa mesma semana, estivemos em Dublin na reunião da CISAC – Confederação Internacional de Sociedades de Autores e Compositores, organismo multilateral que congrega cerca de 230 sociedades de autores de todos os tipos de repertórios de obras artísticas, situadas em mais de 120 países. Como organismo multilateral tem seus estatutos, regras profissionais e uma série de requisitos a serem observados pelos seus membros, como condição para a participação e para que sejam acreditados pelos demais participantes. A estrutura estatutária permite a criação e desenvolvimento dinâmico de um conjunto de princípios, normas e regras, em torno dos quais os interesses convergem e com os quais os participantes espontaneamente se obrigam, procurando, dessa forma, obter, cada um, melhores resultados para si.

Na reunião do quadro diretivo da CISAC, no qual a UBC – União Brasileira de Compositores – tem uma cadeira, me pediram para apresentar um sumário da situação no Brasil relativamente ao tema discutido nos três artigos mencionados acima, aos vários Projetos de Lei em tramitação, e especialmente sobre resultado de recente investigação parlamentar a qual o Escritório Central (Ecad) foi submetido juntamente com as várias associações de autores e compositores de obras musicais que o integram. As notícias circulam instantaneamente por uma rede global de pessoas que formam cada um dos times envolvidos nessa contenda, os contra e os a favor. As redes são muito bem articuladas e produzem certo tipo de poder que não se baseia na relação direta do mais forte com o mais fraco, e nem se manifesta através da capacidade de determinar a regras do jogo.

As notícias que circularam instantaneamente, no caso da publicação no final do mês de abril passado do relatório resultante da investigação a respeito do funcionamento do sistema de gestão coletiva dos direitos de execução pública de música, promovida pelo Senado brasileiro, informavam o indiciamento de um grande número de pessoas, como se fossem todos membros de uma quadrilha, tão ou mais perigosa do que essa que estamos assistindo se formar em torno do poderoso chefão, Sr. Cachoeira, conhecido nas redes sociais globais como Mr. Waterfall.

No âmbito da CISAC, estavam os colegas preocupados com o nosso destino ao ouvir as notícias espetaculosas que circularam. Diante da perplexidade de todos, prometi levar para a reunião de junho informação atualizada e consolidada, a fim de mostrar que nem tudo que se lê em blogs, Twitter, Facebook e noticiários eletrônicos é verdade. É certo que muitos colegas não haviam lido e nem tomado conhecimento da investigação promovida pelo Senado brasileiro. Por isso, escrevi meu sumário sem levar em conta as notícias que antes de termos oportunidade de ler o relatório de mais de 400 paginas assinada pelo Senador Lindbergh Faria já nos consideravam culpados e condenados.

Em resumo, expliquei que vivemos uma situação que tem muitos pontos em comum com a que se apresenta em todo mundo, relativamente à discussão dos Direitos Autorais, seja na Europa, onde há intenso debate sobre a forma de garantir a proteção a esses direitos no atual estágio tecnológico das telecomunicações e a respeito do modelo de gestão coletiva vis-a-vis as normas que pretendem evitar práticas anticompetitivas e comportamento concertado.

O caso concreto que deu origem ao intenso debate europeu sobre o tema da gestão coletiva especificamente decorre de reclamação de operadora de TV por assinatura que deseja obter uma licença para a comunicação pública de audiovisuais e de música, válida para todo o espaço aonde o sinal tem condição alcançar por transmissão, ou retransmissão, considerando a capacidade tecnológica disponível com essa finalidade. Não se contentam os provedores de serviços digitais e outros tipos de serviços pagos pelos usuários, com as tradicionais licenças delineadas territorialmente, características do sistema decorrente do regime multilateral construído pela CISAC. Se a tecnologia permite o alcance da transmissão além dos limites territoriais e se, da mesma forma, a tecnologia permite o desenvolvimento de formas de monitoramento do repertório utilizado em extensão espacial muito mais ampla, com melhor qualidade, com menores custos de administração e de transação, devem as associações de gestão coletiva dos direitos autorais de obras artísticas e toda a indústria se adaptar ao novo modelo.

Nasce assim uma discussão jurídica, em torno de um problema político, cujo escopo inclui o debate sobre a criação de um mercado único para a União Europeia, assunto que não será abordado aqui. Comento apenas para mostrar que os questionamentos são parecidos ao redor do mundo apresentados em versão que refletem os arranjos institucionais e políticos específicos de cada lugar. O argumento de que a tecnologia modifica o modelo de negócio e consequentemente a forma como se entende e se administra o direito é o mesmo em toda parte, usado das mais diversas formas e com versões localizadas. Para muitos, especialmente aqueles que estamos chamando de contras, o direito deixa de existir, uma vez que não existe mais o público, um conceito que estaria limitado às práticas da comunicação em massa e superada na comunicação em rede, e que o compartilhamento de arquivos deve ser completamente livre. Portanto, para “os contras”, os “a favor” estão deslocados e precisam se ajustar, isto é, os autores, criadores de obras artísticas, que como bem disse o João Ubaldo, se acostumaram a viver do seu ofício, no caso dos escritores o ofício de escrever, a viver do resultado de seu trabalho, como qualquer outro trabalhador. Estes se encontram diante de um julgamento no qual ocupam posição de réus porque querem proteger seus interesses e o direito de usufruir do resultado de seu trabalho, como qualquer outro trabalhador, independentemente do regime de trabalho e de remuneração.

O mundo dá voltas, a tecnologia muda, os processos e meios de produção se transformam, mas ainda hoje, os homens desejam viver do resultado de seu trabalho, seja ele realizado através da venda do esforço físico de plantar, ou de participar em processo de produção industrial, seja ele realizado através de esforço intelectual, com finalidade específica de solução de problemas técnicos e tecnológicos, ou sem qualquer finalidade, apenas como forma de expressão do espírito, através da obra artística. Por isso, escreveu Caetano Veloso que, apesar de não achar que seus filhos devam viver de seus royalties, também não precisam ter de brigar por esses royalties. Concordamos com Caetano Veloso quando ele diz que se o Google e outros provedores de conteúdo protegido por direitos autorais obtêm vantagem econômica com a oferta de obras artísticas, os autores também devem ganhar a sua parte e que aqueles que pensam assim não são inimigos, nem deslocados, atrasados, ou anacrônicos. Querem apenas usufruir do resultado do seu trabalho, como os outros trabalhadores. Uma vez, ouvi o Will I Am do Black Eyed Peas falar assim sobre a participação do autor nos rendimentos obtidos pelos serviços que ofertam e cobram pela oferta ao público de suas obras. Muitos outros autores falam sobre isso, pensam assim e querem discutir o assunto.

*Clique aqui para ler a segunda parte do artigo

Marisa Gandelman

Diretora Executiva da UBC e parte do quadro diretivo da Confederação Internacional de Sociedades de Autores e Compositores (Cisac).

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