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O funk e a criminalidade


Recentemente fui solicitado a dar entrevistas a três rádios locais acerca do funk e de seus possíveis estímulos à criminalidade. Houve uma participação expressiva dos ouvintes e o tema despertou o interesse de pessoas envolvidas com a questão.

Ponderei que o funk, tal como rap e o hip-hop, são manifestações legítimas de grupos sociais geralmente mantidos à margem da sociedade. Por não serem formas artísticas aceitas pelos cânones estabelecidos pelas classes dominantes são quase sempre consideradas com desconfiança e rejeitadas por força dos preconceitos que fundamentam o apartheid social entre ricos e pobres, em uma sociedade tão desigual como a brasileira. As letras das formas musicais debatidas nos citados programas, repletas de erotismo e de situações extremas regidas pela violência, apenas retratam o cotidiano de uma parte significativa de nossa população.

Os roubos, os assassinatos, as drogas e as necessidades sexuais desregradas não foram inventadas por esse gênero musical e, muito menos, lhe cabe a culpa de tais anomalias sociais. Na realidade ele é a sua maior vítima. Criminalizar as vítimas, além de preconceito reflete uma profunda falta de compreensão dos problemas sociais graves que afetam e estruturam a sociedade brasileira.

Ao contrário do que pressupunham muitas das perguntas, as letras do funk  não são a causa, mas o reflexo de uma sociedade violenta. O que de fato estimula a criminalidade são, por exemplo,  inúmeras atitudes de nosso congresso nacional e do judiciário  protegendo bandidos de colarinho branco;  é a miséria, a falta de trabalho e de moradias decentes; as trapaças no mundo financeiro; a participação constante de empresários na rede do crime organizado que vai do contrabando de armas e drogas ao roubo de cargas; os vários desvios impunes de verbas públicas, a morosidade infame na execução da reforma agrária e a desintegração dos valores morais e da família.

O estímulo indiscriminado à pornografia pode ser visto, aliás, nas TVs abertas nos domingos à tarde, nas quais acompanhamos também atitudes nefastas e sem quaisquer resquícios éticos proclamadas pelos reality shows. Derrotar o outro a qualquer custo é um dos valores mais difundidos por nossos meios de comunicação.

Em alguns países europeus não é muito diferente. Na França, o tecktonic, ritmo criado por africanos na periferia de Paris, com suas danças sensuais e sua suposta apologia ao crime, deixam a classe média francesa de cabelo em pé. Um de seus clipes no youtube foi acessado por 11 milhões de pessoas mostrando a força de seu alcance.

Na Alemanha, a rapper Lady Bitch Ray, de origem turca, abusa dos palavrões e obscenidades e chegou a presentear um apresentador de um programa de TV, para o qual foi convidada, com um frasco de secreção vaginal, para horror dos moralistas de plantão.

Vivemos novos tempos e devemos estar preparados para formas desiguais de manifestação artísticas, com origens e motivações múltiplas. A diversidade cultural impõe assim a sua existência atropelando preconceitos e reações hipócritas.

Erlon José Paschoal

Gestor Cultural, diretor de teatro, dramaturgo e tradutor. Foi gerente na Secretaria de Políticas Culturais do MinC e é sub-secretário da cultura do Espírito Santo.

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