Categories: ENTREVISTAS

“O Ministério da Cultura não existe”

Jorge Coli, professor da Unicamp e ex-secretário de cultura de Campinas, solta o verbo no Perfil desta semana: “O ministério da cultura não tem a menor importância, qualquer coisa que o ministro possa fazer não tem a menor importância. Passamos oito anos com o governo do Fernando Henrique Cardoso. Ministério da cultura mais inexistente do que havia então, impossível. Foi pateticamente inexistente, foi zero. Alguém se incomodou?

Do único encontro que tivemos há dois anos, quando jurados do prêmio Fnac Maison de France, restaram impressões e discussões sobre os livros concorrentes daquela edição e, de minha parte, a vontade de arrancar um pouco mais de seus conhecimentos sobre políticas culturais. Jorge Coli vem com muita freqüência multiplicar o saber e o gosto por arte e cultura com a gente paulistana. Um desses lugares é a charmosa livraria Augosto Augusta, de onde, numa tarde cinzenta de setembro, Coli concedeu a seguinte entrevista a Cultura e Mercado:

Leonardo Brant – O que é política cultural para você e quais os elementos que ela precisa ter para que sejam atingidos os objetivos de uma política pública?

Jorge Coli – É impossível dar uma fórmula de política cultural. Isso depende do meio de onde ela nasce. Eu poderia dizer que existe um aspecto importante: é aquele da cultura como negócio, todo um setor da cultura que se liga à idéia de ganhar dinheiro, de investir. Essa idéia não é forçosamente  ruim, existem esquemas que permitem produções culturais de alto nível e que funcionam a partir deste princípio. Acredito que talvez a maior manifestação cultural do século XX, a mais forte, seja o cinema norte-americano, baseado numa indústria de produção de objetos culturais que são os filmes. Esse aspecto é interessante, mas é necessário, por outro lado, tomar cuidado. O  que se tem é muitas vezes o sacrifício de um sentido mais forte da cultura em certos setores, que não têm um público tão vasto quanto o do cinema.  Acabam ficando muito fragilizados pois a questão cultural nela própria é dissolvida em benefício de uma aparência de cultura, espécie de visão exterior da cultura. No caso brasileiro o problema é grave, por causa dessas leis de incentivo à cultura, que trouxeram uma situação que não tem equivalente em nenhum lugar do mundo. Elas  representam um desconto de 100% no imposto de renda de empresas:  o dinheiro que deveria ir para os cofres públicos vai para empresas desenvolverem projetos que elas, empresas, têm interesse em fazer, a custo zero e com um ganho total. E essas empresas ganham prestígio, nome,  e se mostram como sendo as promotoras desses acontecimentos culturais quando elas de fato não o são. É  um benefício muito grande.  Independentemente do fato de que alguns projetos sejam bons, esta situação representa um problema. Primeiro, porque não se trata de um projeto a longo prazo de cultura, é uma cultura imediata naquilo que interessa mais imediatamente essas empresas.  Em segundo lugar não é possível investir para reforçar bases institucionais, que são essenciais para o desenvolvimento da cultura.  Instaurou-se uma prática da cultura de eventos, de acontecimentos efêmeros, que podem ser muito interessante mas, por outro lado, sabemos que  nossos museus estão à míngua, que é impossível hoje para os museus brasileiros terem uma política seria de ampliação de acervo porque não se tem dinheiro para comprar e nem para manter. É isso que eu chamo de investimento de base dentro de um processo de assentamento da cultura. Você  não pode trabalhar com a cultura  como se fossem lindas rosas com as quais se faz um buquê, mas que vão morrer em três ou quatro dias. Deve plantar um jardim, uma floresta. Eu diria ainda que não apenas nossas instituições são carentes, como há uma falta absoluta de instituições de base  completamente essenciais e que deveriam estar presentes na formação cultural de todas as pessoas. Eu me refiro, por exemplo, às bibliotecas ricas, com bom funcionamento, agradáveis, múltiplas, em vários lugares da cidade, do estado, do país . Discotecas de empréstimo  não existem. Em nenhuma cidade há  um lugar que tenha disponível música sertaneja ou Beethoven, onde alguém pode emprestar um cd para ouvir em casa . O investimento é zero nesse sentido. E da mesma maneira as videotecas, as dvdtecas, que deveriam existir. Ora, esses elementos de base são completamente sacrificados em benefício de coisas mais espetaculares. A rede de prática cotidiana da cultura não existe, o que me parece essencial. Você não consegue formar de fato um povo se ele não tem a prática cotidiana da cultura. E não é levando uma escola de vez em quando à bienal ou a uma exposição que você estará criando uma prática de cultura, isso é balela. É  uma saída para os alunos em que eles vão se divertir como o fariam  se estivessem num salão do automóvel ou no playcenter. Falta a idéia de uma formação de base, e isso é muito difícil de se ter com o sistema brasileiro, porque uma formação de base tem que ser evidentemente pública. Não há quem vá investir num sistema de bibliotecas na periferia, no centro, não há quem faça isso porque isso não dá prestígio.

LBPelos elementos que você está colocando, você enxerga política cultural como um serviço público. Existe, porém, um novo paradigma norteador da política cultural, proposto por Gilberto Gil, que está presente desde o discurso de posse, que é o tal do do-in cultural, uma espécie de política feita pra estimular os pontos adormecidos das práticas culturais para que a população e as próprias comunidades passem a se desenvolver culturalmente por conta própria. A visão de política cultural neste caso, não é de serviço. O grande programa que o Gil tem nessa área são os pontos de cultura, que fomenta dinâmicas culturais das próprias comunidades. Existe uma contradição entre essas duas políticas?

JC – Eu acho completamente trágico que se reduza cultura a manifestações locais, mas é absolutamente terrível se você não der apoio a elas. Isso é essencial, as manifestações locais as mais diversas possíveis, têm de fato que encontrar o apoio necessário para que essa cultura se faça. Mas é preciso ter em mente que a cultura não é apenas isso. Que é um campo infinitamente mais vasto e que, sobretudo, a cultura é feita de cruzamentos e de encontros, e que mais que tudo a ela  é feita de descobertas. Eu corro o risco, se eu fico me repetindo a mim mesmo naquela cultura daquele local,  de nunca sair daquele ponto específico. É  claro que é preciso dar todo o apoio ao desenvolvimento das culturas locais, mas é completamente absurdo se imaginar que eu possa desenvolver um pensamento complexo e efetivamente rico se eu não tiver acesso a outros campos da cultura, à cultura clássica, à cultura de outros universos contemporâneos, de outros universos quaisquer. Eu  fico muito preocupado com os discursos do ministro da cultura que demonstram uma postura extremamente voltada pra si mesma, para a cultura brasileira, local, e tudo muito fechado sobre si.  Há  uma ausência de abertura em direção ao outro: aquilo que é fundamental na cultura que é o abrir-se ao outro. Os próprios textos em que o ministro fala da questão da miscigenação, um mito brasileiro que ele explora largamente, torna-se curiosamente paradoxal, porque ele vira um instrumento identitário, isto é, eu sou brasileiro porque sou miscigenado, e o outro, que não é miscigenado, é portanto diferente de mim, e oposto a mim, que eu tenho que recusar de alguma maneira. É  uma questão completamente contrastante: o processo de miscigenação, para que ele de fato funcione, não pode ser um processo fixo, tem que ser  um processo de contínua miscigenação com tudo. O ponto fundamental dentro  da concepção que se pode ter de cultura num país é de nunca fazer a separação daquilo que sou, ou daquilo que somos nós, e aquilo que são os outros. É o que dá  início a todas as formas de barbárie. Eu contra o outro, nós contra os outros. No começo pode não parecer contra, mas termina sendo sempre contra. A gente já viu aqui no Brasil do ponto de vista ideológico quantas pessoas pregavam, ou pregam ainda, uma cultura “popular” contra uma cultura “erudita”, como “o popular sou eu, o erudito é o outro”. Ou uma cultura “brasileira” contra uma cultura “européia” ou “norte-americana”, porque “brasileiro sou eu e os americanos e europeus são os outros”. Esse aspecto me parece absolutamente terrível. A  cultura se faz com cruzamentos, e não com uma miscigenação reificada, cristalizada, como aquela que tanta gente pressupõe no Brasil e que tenho a impressão de ser aquela que o ministro propõe.

LBLogo que o Gil assumiu o ministério ele fez uma mudança de estrutura nas secretarias. Uma delas é conduzida pelo Sérgio Mamberti, denominada Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural, que me intriga muito justamente por aquilo que você mencionou, de que o Brasil, depois de ter passado por um período de ditadura, em que política de identidade era sinônimo de dominação. É possível fazer políticas de identidade cultural, ou isso continua sendo um terreno perigoso?

JC – Eu acho abominável pois ela é profundamente perigosa e está  na base de todos os fascismos e nacionalismos da história. Cada um de nós tem uma carteira de identidade, que é o elemento que me identifica para o controle de um ponto de vista policial, social. Agora veja que interessante: eu pego minha carteira de identidade, que está  bem velhinha, e quando olho para minha fotografia não sou mais eu.  Quero dizer o seguinte: para que você construa uma identidade, em primeiro lugar, tem que simplificar extremamente, pegar alguns traços apenas. Em segundo lugar tem que transformar esses traços em permanentes, porque a identidade não muda, porque se ela mudar não é mais identidade, eu viro outra coisa que não era aquela identidade anterior. A idéia da identidade, particularmente a identidade nacional, é ideologicamente aterradora porque ela dá  uma sensação de conforto muito grande, dá  a impressão de que eu sei quem eu sou, o que é absolutamente falso, eu não tenho a menor idéia de quem sou de fato em toda minha complexidade. E de um ponto de vista coletivo, mais ainda, você  simplesmente acredita em certos elementos e passa a aderir a eles,  passa a se comportar como aquela regra da identidade diz que você tem que se comportar e assim por diante.

LBEu não entendo, no discurso pelo menos, e também nos programas que a secretaria de identidade e diversidade mantêm, resquícios de uma política nacional de identidade cultural. O MinC hoje enxerga no país a convivência de diversas culturas. Mas existem “tribos, gruposque se identificam entre si e que precisam de uma política para reforçar esses traços de identidade.

JC – Quando eu falei em termos fascistas eu não estava falando num sentido dos tempos do Getulio Vargas quando se reduzia tudo a uma identidade brasileira onde todos somos irmãos. Não  é isso que está  ocorrendo, ao contrário. O que você chama de diversidade cultural na verdade é uma multiplicação de identidades. Você  alimenta aspectos específicos em que as pessoas se encontram e se comportam do mesmo jeito, vão usar às vezes a mesma camisa o mesmo tipo de roupa em que os grupos se reconhecem. Esse  tipo de coisa  que está  ocorrendo é provavelmente uma coisa inevitável, mas me parece ser, ainda uma vez, altamente perigosa.

LB – E isso não está ligado à conquista de direitos coletivos e até individuais?

JC – Em certos aspectos até podem estar ligados à conquista de direitos que são de fato importantes. Mas o que me parece ocorrer é um reforçar de formas fixas, inflexíveis. Existe uma identidade corintiana e uma palmeirense. O  que acontece quando esses torcedores se encontram? Um choque, e esses aspectos não são aqueles de cruzamento. A  questão fundamental é essa, a cultura é fecunda quando ela se cruza, quando  não se formam guetos não se isolam ou reforçam as tribos. É claro que é preciso dar um apoio às culturas  locais como eu disse. Mas  é preciso promover também os já ditos processos de abertura dessas culturas a outras práticas, e  isso só é possível com um sistema amplo de práticas culturais, com instituições que permitam a existência de  uma rede. E nelas, as pessoas descobrirem que existem outras além delas próprias. E além daquilo que elas fazem, sentem ou pensam.

LB – Essa universalização de serviços culturais citadas por você na primeira resposta exige um alto investimento. Você imagina que essas políticas culturais poderiam se alinhar com as educacionais, que têm mais verbas?

JC – Eu não sei, é  uma questão de estratégia você saber se a biblioteca deve pertencer à secretaria de cultura ou à de educação. O que me parece essencial é que elas existam no Brasil.

LBMas e para a gente fazer um exercício de composição de orçamento

JC – Eu não sei, você pode usar as escolas ou não, esses casos tem de ser estudados do ponto de vista das estratégias realistas das condições. Você tem alguma idéia a respeito?

LBSim. Deveríamos começar a criar um superávit humano. Temos que deixar de pensar no Estado como um agente econômico para pensá-lo num agente humano.

JC – É um outro ponto. Poderíamos  dizer que ao invés de se desenvolver superávit apenas na questão da cultura, teria que se investir em outras áreas também, não só na cultura. A questão aqui é saber também quem vai gerir isto. É  uma questão  de engenharia administrativa da cidade, do estado e do país . Lembro-me quando era Secretário da cultura em Campinas, e o debate era se a biblioteca ficaria na secretaria da educação ou na da cultura.

LBQual é para você o grande desafio do ministério da cultura? Eu fiz esse exercício com a Olgária na semana passada e chegamos à conclusão de que uma boa missão para o ministério da cultura é ser inteligência, pensar um projeto de país, porque quem pensa hoje um projeto do país? É o ministério do planejamento e da economia. Isso é um absurdo.

JC – Eu acho essa visão interessante, mas vejo um problema mais básico. O ministério da cultura está  esvaziado de recursos  porque estes vão para as leis de incentivo à cultura, que estão nas mãos da iniciativa privada. Mesmo que você queira pensar o país, como isso ocorre? Nos EUA quem pensa são as grandes universidades, na França são as universidades e em grande parte institutos que são supra universitários, permitindo o pensamento, a reflexão, etc. Esses exemplos podem ser tomados e podemos imaginar que se desenvolva esse tipo de coisa no Brasil, seja dentro das universidades seja fora delas, seja com sistemas supra universitários, seja convocando pessoas que não façam parte da universidade e da pesquisa, mas que tenham um aporte importante para dar. Tudo  isso é possível, mas como fazê-lo  no estado atual dos recursos dos ministérios que   temos aí? Volto a questões muito básicas. Pensar o país, essa missão intelectual, não acredito muito. Acho que a questão é básica: permitir acesso à cultura; bibliotecas com ótimos livros, cedetecas, dvdtecas, a prática cotidiana da cultura, é isto o básico e o fundamental, depois vem o resto.

LB – Havia um projeto no começo da gestão do Gil, as BACs, que tinha a função de espalhar centros culturais pelo país, como fez o Malraux na França. A meta era construir mil centros, universalizar o serviço público de cultura. Com a queda desse projeto e com o surgimento dos pontos de cultura, que veio substituí-lo, houve uma mudança conceitual que é justamente permitir que as comunidades

JC – A questão das casas da cultura é interessante e pode ser debatida. Mas  acho que existe um processo anterior a isso, de disponibilização de cultura. Eu gosto muito de uma frase do pintor Courbet.  Quando oferecem a ele uma condecoração do ministério da cultura – na França do segundo império era o ministério das belas artes – ele recusa e seu argumento fundamental é o seguinte: “o governo é incompetente em matéria de arte”. Eu diria “o governo é incompetente em matéria de cultura”, não  é o governo que vai levar a cultura no sentido de se fabricar uma cultura. O  que ele pode fazer é disponibilizar o mais possível todas a culturas e os acessos a elas. É  um serviço público, uma questão de base. Como a alfabetização. Um serviço público que no Brasil é inexistente. Temos algumas bibliotecas num estado mais ou menos precário, ridículas em termos de número para as necessidades da população e não temos o resto. Não sei se isto pode parecer envelhecido mas eu fico me lembrando de grandes intelectuais brasileiros, como por exemplo Monteiro Lobato e sua idéia de distribuir os livros, de fazer coleções baratas, vender livros baratos; era uma velha utopia da iniciativa privada, porque o Lobato nessa época era editor. Eu  me lembro de uma coleção desse tipo, popular, que você assinava  e um livro chegava à sua casa todo mês. Na contracapa vinham os versos do Castro Alves: “ah bendito quem semeia livros, livros a mancheia e manda o povo pensar”. É isso, os livros fazem com que o povo pense. Eu  não estou pensando pelo povo, as pessoas pensam lendo, ouvindo, abrindo-se para formas variadas da cultura. São tantas as atividades que poderiam ser feitas nesse setor! Eu prefiro evitar o topo da pirâmide da reflexão de qual o destino que  vamos dar para o país, etc, e pensar, “olhe, falta o absolutamente básico”.

LB – Voltando àquela conclusão quanto ao papel do ministério da cultura, parece também que o ministério chamou para ele uma espécie de monopólio do pensamento da cultura. Há muito pouco diálogo com esses setores tradicionais de pensamento, tanto ONGs, quanto universidades, pesquisadores. O ministério precisou dessa forma se enclausurar para determinar seu próprio projeto de cultura, e nisso, acabou fechando um discurso, não conseguiu fechar um programa de ação completo

JC – O ministério da cultura não tem a menor importância, qualquer coisa que o ministro possa fazer não tem a menor importância. Passamos  oito anos com o governo do Fernando Henrique Cardoso. Ministério da cultura mais inexistente do que havia então, impossível. Foi  pateticamente inexistente, foi zero. Alguém  se incomodou? Quando a gente ouve as propagandas e debates na televisão, quando é que aparece a  questão da cultura, você já ouviu alguém debater? O que é que o Alckmin propõe  para a cultura?

LB – Estamos fazendo um ciclo de matérias sobre os programas de governo na área da cultura. Há candidatos que sequer tem programa para a cultura.

JC – A cultura é tratada de uma maneira tão secundária que os candidatos não tem necessidade nenhuma de expor suas intenções a respeito. Um candidato que não expusesse um plano ou programa para a segurança, não seria viável. Contemplo isso de uma maneira um pouco perplexa e melancólica, como se o poder público tivesse dito: “já passamos tudo para a iniciativa privada agora me deixem tranqüilo, não temos mais nada a dizer sobre a cultura, acabou”. O que um ministro pode fazer pela cultura no Brasil? Nada.

LB – Pegando o período do Gil, algumas lutas foram importantesbatalhas perdidas, mas que de certa forma foram minimamente discutidas pela sociedadecomo a questão da agência nacional de cinema e audiovisual (Ancinav) e a questão da tv digital, por exemplo, teve um momento de participação. O ministério não protagonizou nada, mas tentou inserir alguns elementos de discussão sobre os conteúdos.

JC – Qual o peso do ministério da cultura diante do peso da rede globo nessas discussões? Zero. Então pode-se discutir à vontade, isso não muda nada. Tudo é decidido fora do ministério.

LBMas não é assim que se cria uma demanda social? Em dois momentos importantes o Gil enfrentou os interesses das mídias norte-americanas e da Globo. Ele chegou a bater boca com o ministro das comunicações. Existe uma coragem ali que pode ser inútil, mas

JC – Acho que talvez ele possa ter feito o que pôde nesse sentido, mas é inútil. Não estou interessado nos comportamentos do Gil, nos estados de alma do Gil, não estou interessado nessas coisas, é inútil. Eu volto à minha questão primordial: existem dois problemas fundamentais especificamente aqui no Brasil. Primeiro: a transformação das leis de apoio à iniciativa cultural e o investimento sério no ministério da cultura. Qual é a porcentagem de algum índice de imposto que pode ser dado ao ministério da cultura e que seja significativo?  É tanto, então vamos dar isso. Não é possível que a lei do audiovisual continue financiando filme da Xuxa. Este é o primeiro ponto; modificar a lei  e dar ao MinC instrumentos de fato efetivos para investimento na cultura, investimentos de base. Não são mega-exposições, super-conferências que resolverão o problema. É  uma infra-estrutura que permita um acesso à cultura para todos. O único meio universal que as pessoas tem de acesso à cultura  é a televisão. É  a cultura que a televisão veicula.

LB – Se a gente tem uma população que tem acesso à cultura institucionalizada pelos meios de comunicação, isso não é um instrumento próprio da cultura? Nesse sentido o MinC está correto

JC – Mas esse instrumento da cultura não depende do ministério da cultura, ele existe de outro meio. Temos no Brasil um leilão de rádios e de canais de televisão. As  pessoas que conseguem abocanhar seu pedaço nesses canais fazem a cultura  como quiserem. O  ministério da cultura não pode fazer nada contra isso. Eu não acredito de maneira nenhuma que uma regulamentação para a televisão e o rádio tal como ela existe no Brasil possa ser de algum beneficio. A única vantagem que pode existir é no máximo de liberdade permitido mesmo se os veículos de comunicação são o que são, condicionados pelos interesses os mais diversos. Eu  sou contra qualquer regulamentação: elas não resolvem. Seria  necessário que houvesse uma redistribuição, uma reforma tão radical nos meios de comunicação, que a própria reforma se torna impossível. Você acha que alguém vai conseguir se eleger propondo uma reforma radical que tire os privilégios dos donos de rádio e televisão? Nunca. Isso é impossível. Por outro lado, há muita gente que não tem acesso a cultura nenhuma e seu contato com o resto do mundo se dá  por  aquela telinha. Por  pior que seja, ela é um meio de saída  local.  Por pior que seja, ela funciona como um procedimento possível de abertura. Para que você possa completar, contrariar, introduzir elementos que sejam mais críticos, você precisa de um apoio efetivo de uma infra-estrutura que deveria caber ao ministério da cultura. Há  rádios interessantes, mas existe um grande número das que são  infames, aquelas que estão nas mãos dessas seitas religiosas, por exemplo, e que são terríveis. Temos  aqui em são Paulo uma ótima rádio, a rádio cultura, que toca música clássica o dia todo. Veja: existem cadeias de rádio que cobrem o estado inteiro, o Brasil inteiro. A rádio cultura só pega na cidade de São Paulo. “Ah, mas ninguém vai ouvir isso fora de São Paulo”. Não é verdade. Estatisticamente pode ser um número muito pequeno de pessoas, mas esse número reduzido encontra ali um acesso à cultura. Estou dizendo isso não  com o objetivo de elogiar a rádio cultura, mas para enfatizar que isso faz parte daquilo que eu chamo de infra-estrutura, de um projeto efetivo. A rádio cultura é uma das coisas boas que existem nas comunicações. Já  a tv cultura é um desastre. Mas a rádio funciona. Numa pequena cidade do interior perdido vai haver uma pessoa que vai ouvir um concerto de Beethoven.  Essa é minha idéia.

LB – E TV Cultura é um desastre por quê?

JC – Porque não é uma tv culta e não leva a sério a cultura, mas transmite programas cuja criação está  nas mãos de pessoas que até são competentes nas comunicações, mas não são pessoas concernidas pela cultura, e sim pelo mercado. E tv cultura é chato de morrer, não tem programa sobre cinema que seja estimulante, bem escolhido, nem programa sério sobre artes plásticas, artes visuais. Tem o metrópole, que é extremamente superficial. “Ah , mas se não for assim as pessoas não vêem”. Mas cabe ao Estado oferecer para quem quer, por minorias que sejam, as possibilidades que o mercado não oferece. Nos Estados Unidos você tem na tv aberta setores que são excepcionalmente bons. Aqui temos uma tv de estado chata de morrer. Não dá  para fazer uma tv cultura se você não tiver pessoas cultas por trás.

LB – E o que são pessoas cultas?

JC – São pessoas que sabem das coisas da cultura, pessoas que lêem, se interessam por arte, por cinema, por música… Por que a rádio cultura funciona? Porque os que fazem os programas  são cultos em termos de música erudita, de jazz, música contemporânea, são concernidos, sabem o que estão fazendo e do que estão falando.

LBVocê não acha que a rádio cultura tem pessoas cultas num campo específico, da cultura clássica?

JC – Pode ser culta em outro campo, pode-se fazer um programa de rádio com grupos de hip-hop. Tudo é possível, desde que a coisa seja feita com interesse e  conhecimento.

LBMas me parece que o pêndulo dessa gestão está muito mais voltado pelo que se determinou como cultura popular, porque a questão da cultura erudita, das belas artes, a gente tem uma infra-estrutura que está acabada, que não consegue sobreviver direito, mas tem. Mas nãoinfra-estrutura para a cultura popular, equipamentos e instrumentos de difusão dos valores culturais locais. O maracatu, os folguedos, também para o hip- hop, cultura afro-brasileira, nipo-brasileira…

JC – Eu não sei se a metáfora que eu vou usar é boa.  Parece que os esquimós têm novecentas palavras para designar neve e gelo, foi o que me disseram. O que significa uma extraordinária possibilidade de nuance lingüística em relação ao gelo. Nuances que fazem parte da cultura esquimó. Mas a cultura esquimó se pensa, a si mesma, por essas sutilezas lingüísticas? Não. É a tradição do ocidente que permite pensar as diferentes culturas, que é capaz de sair de si e pensar outras culturas, além de pensar-se a si própria também. É isso que ocorre, não adianta você querer obrigar com que o cara do hip-hop possa pensar a ópera e a música de câmara. O  que tem de ser feito é  permitir o desenvolvimento do hip-hop, da ópera, e da música de câmara. E os instrumentos reflexivos mais universais e amplos são aqueles que são capazes de englobar outras culturas, capazes de incorporá-las. Eu costumo dizer que Mozart  é subversivo. A hora que você começa a fazer as pessoas ouvirem Mozart você estará dando instrumentos de sensibilidade que elas não tinham antes e que são complexos. Privar essas pessoas de Mozart, do meu ponto de vista, é um crime. O Ocidente tem um modelo complexo, elevado, de organizar os sons, que permite acesso a uma visão extremamente complexa da organização dos sons. Da mesma maneira que é preciso pensar em termos literários por meio da alta literatura, da grande literatura. Apesar dos delírios ideológicos passados no qual certas pessoas achavam,  e algumas até hoje acham, que Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda são tão grandes poetas quanto Castro Alves e Camões. Não são. É outra coisa. Você não pode privar as pessoas do acesso às formas complexas da cultura; que permitem uma reflexão complexa sobre o mundo, reflexão sobre a própria cultura e sobre nós mesmos.  É preciso estimular todas as formas de cultura, mas essas que chamei de complexas também, com sentido forte, pois elas não são privilegiadas hoje. Ninguém  hoje, no Brasil, privilegia Mozart, ou a leitura de Fernando Pessoa. Eu acho que o hip-hop, o grafiteiro, tudo isso é extremamente interessante, merece investimento de fato; mas é criminoso que não se permita o acesso à população a outras formas mais universais e mais complexas da cultura.

LB – No começo da entrevista você abordou a questão da economia da cultura. Parece-me que existiu no Brasil uma espécie de espírito empreendedor na área da cultura que me parece fundamental para se ter universalizado tanto nos EUA e na França esses serviços culturais, o livreiro na França, etc.

JC – Monteiro Lobato tinha um projeto de se vender livros nas farmácias. Dizia que se não há  livrarias numa cidade de interior, haverá sempre uma farmácia. Então, era tentar convencer os farmacêuticos a ter um pequeno setor onde se possa vender livros baratos para a população. É uma forma utópica, e apenas uma astúcia, mas entra na ilustração disso que você está  dizendo. São  empresários que têm uma idéia de desenvolvimento cultural do país.

LB – É possível esse do-in cultural atuar nessa área da economia da cultura? É possível estimular através de políticas públicas o surgimento de novas idéias, de negócios culturais sustentáveis e que dêem acesso à população? Isso não é um desafio para o governo somente, mas para toda a sociedade, de desenvolver infra-estrutura cultural. Não é porque o Estado esta cada vez mais vazio.Tem esse papel do Estado estimulador, incentivador, esse elemento de incentivo à cultura que não funciona como deveria, mas que poderia funcionar como políticas de estímulo. Somente cidades com mais de 500 mil habitantes têm livrarias. Isso é absurdo. É possível pensar em políticas governamentais de estímulo?

JC – Claro que sim.  Existe  outro aspecto interessante que a gente não abordou ainda, e que me parece difícil de prever as conseqüências. É  o acesso à cultura permitido pela Internet. São caminhos um pouco inesperados. Há dez anos não esperávamos esse tipo de caminho para a disponibilidade de textos da Internet. Pode-se consultar as obras, ler, imprimir, por meio da Internet; tudo isso significa formas novas que poderiam ser pensadas nesses termos de uma infra-estrutura. Tudo  isso caberia ao projeto cultural do Brasil.

LB – Voltei da Argentina e fiquei impressionado com o número de lojas com acesso à Internet da Telefônica. O Alfredo Manevy me disse que aquilo é a contrapartida do processo de privatização das telefônicas, que se comprometeram a criar uma infra-estrutura de acesso. Por que no Brasil não se pensa nisso?

JC – Se nas cidades pequenas houvesse um cyber café com um número suficiente de computadores, isso seria uma abertura extraordinária. Eu estive em 1999 em Istambul e fiquei surpreso com a quantidade de cybers cafés que havia na cidade. Lá, os  computadores eram caros e poucos podiam comprá-los, mas existia uma tal  vontade de sair daquele mundo fechado no qual eles vivem, que os cyber cafés se multiplicaram. A Internet nos países mais repressivos do ponto de vista da política, da ideologia, da censura, têm um papel subversivo.  Parece-me  ser esse um caminho importante.

Leonardo Brant

Leonardo Brant

Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

View Comments

Recent Posts

JLeiva lança pesquisa Cultura nas Capitais

A JLeiva Cultura & Esporte lança nesse mês a pesquisa inédita Cultura nas Capitais. O…

2 horas ago

MinC alcançou 100% de transparência ativa em avaliação da CGU

Fonte: Ministério da Cultura* O Ministério da Cultura atingiu 100% de transparência ativa de acordo…

21 horas ago

Ordem do Mérito Cultural recebe indicações até 10 de fevereiro

Até o dia 10 de fevereiro,  a sociedade terá a oportunidade de participar da escolha…

21 horas ago

Salic receberá novas propostas a partir de 06 de fevereiro

O Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic) estará aberto a partir…

1 dia ago

Edital do Sicoob UniCentro Br recebe inscrições até 14 de março

O Instituto Cultural Sicoob UniCentro Br está com inscrições abertas em seu edital de seleção…

5 dias ago

Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura (SC) recebe inscrições até 04 de fevereiro

Estão abertas, até 04 de fevereiro, as inscrições para o Edital Elisabete Anderle de Estímulo…

7 dias ago