O rabo que morde o cão

Em vez de publicar receitas de bolo, como se fazia na época da ditadura, optei por vasculhar textos antigos, que dizem muito sobre a nossa realidade política atual. Este daqui, escrito em 2001 para o livro Mercado Cultural, traz sugestões de utilização de critérios para aprovação de projetos realizados via Leis de Incentivo à Cultura.

Vale ressaltar que essas sugestões vinham acompanhadas de pesadas críticas feitas à política cultural do governo FHC, centradas no incentivo fiscal. Cheguei a declarar, em um outro livro, que essa política realiza uma espécie de “institucionalização da corrupção”, pois transferia recursos públicos para as mãos de privados. Muito daquele discurso foi apropriado pelo atual governo para destruir o mecanismo, em vez de aprimorá-lo.

Mas o que mudou em relação à Lei Rouanet depois de quase 10 anos após esse diagnóstico? Nada, além de milhões em recursos públicos gastos com viagens e seminários pelo Brasil, além de uma publicidade manipuladora (para não dizer  mentirosa) a respeito da relevância deste que é o principal instrumento de financiamento à cultura do país. E uma desastrosa proposta de revogação, que me obrigou a adotar a máxima “se há governo, sou contra”.

Não é por falta de sugestões concretas e realistas que o Procultura tornou-se essa catástrofe política. A consulta pública da lei que modifica (e não necessariamente “moderniza”, como quer vender o MinC) o direito autoral é prova disso, pois contém um controle público mais efetivo sobre as mudanças e torna mais transparente o processo, o que foi negado à população brasileira no processo de revogação da Lei Rouanet, que segue firme e forte no Congresso Nacional.

Mas vamos deixar as lamúrias de lado e vamos ao texto de 2001:

Parâmetros para incentivos a projetos culturais

A análise realizada atualmente na maioria das comissões responsáveis por averiguar projetos culturais que farão jus ao incentivo fiscal leva em conta apenas o aspecto formal da proposta. Restringe-se basicamente ao orçamento e à forma de enquadramento do projeto, segundo as normas das leis de incentivo. Normalmente não são analisados os conteúdos dos objetivos, as justificativas e as estratégias de elaboração do projeto. Via de regra, eles são considerados apenas requisitos formais.

A partir da experiência dos profissionais do mercado cultural, depreende-se que tal análise seria mais eficaz se levasse em conta pelo menos os critérios de avaliação de conteúdo descritos abaixo, os quais receberiam pontuação e pesos diferenciados, aproximadamente nesta hierarquia, servindo ainda como parâmetros para calcular as diferentes proporções de concessão dos incentivos. Assim, um projeto que tivesse atendido a grande parte dos critérios artísticos, mas não oferecesse contrapartidas sociais, receberia proporcionalmente menor volume de incentivos.

Conceito: inventividade, ineditismo, originalidade, qualificação técnica da equipe de criação/produção e capacidade do projeto de provocar individual e/ou coletivamente o desenvolvimento da sensibilidade e da consciência estética, ética e social.

Pesquisa: referência do produto cultural ao conhecimento existente e capacidade de criação do novo, o que implica pesquisa e investigação teóricas e técnicas e a proposição de uma manifestação original.

Custo: relação custo/benefício compatível, que concilie a disponibilidade orçamentária com a dimensão do projeto.

Autoria: valorização do projeto cultural desenvolvido com autoria própria.

Repertório: priorização dos trabalhos de repertório que provoquem desdobramentos e desenvolvimento cultural cumulativos.

Formação de público: sensibilização e formação de novo público, buscando-se o envolvimento deste num processo de crescimento do interesse pela cultura.

Benefício social: capacidade do empreendedor cultural de retribuir o incentivo fiscal em contrapartida de interesse social.

Acesso: disponibilidade do bem cultural ao maior número de pessoas das variadas regiões e camadas sociais.

Profissionalização: capacidade do projeto de contribuir para a formação e o desenvolvimento profissional do setor.

Democratização: possibilidade de reprodução e divulgação por diversos meios para públicos que não são atingidos diretamente pela produção cultural.

Outra questão a ser observada é o volume de imposto de renda a ser deduzido ou descontado. Mais plausível seria o emprego de tabelas progressivas que permitissem empresas de menor porte a investirem um percentual maior, tendo esse percentual reduzido conforme aumente o volume de impostos. Essa experiência já está sendo utilizada na lei de incentivo do Mato Grosso, com sucesso. Assim, diminui-se a imensa concentração de renda em torno da utilização dos incentivos, permitindo inclusive uma maior expansão geográfica dos recursos, contribuindo para a diminuição do enorme abismo existente entre a oferta cultural das diferentes regiões do Brasil.

Inglaterra como exemplo

Outro instrumento que o Governo Federal tem para atenuar o problema de má distribuição dos recursos públicos é o Fundo acional de Cultura (FNC), mantido principalmente por verbas das loterias federais. Criado para fomentar projetos regionais e sem fins lucrativos, a partir da aplicação direta de recursos pelo Ministério da Cultura, o FNC tem operado sob critérios subjetivos, aleatórios e desvinculados de um programa contínuo.

O trabalho realizado por Hermano Roberto Thiry-Cherques, denominado “Estrutura organizacional: práticas democratizantes”, em que desenvolve análise comparativa entre o financiamento de cultura de inúmeros países das Américas e da Europa, aponta muitos exemplos que podem ser aproveitados pelo Brasil, no que diz respeito à melhor utilização dos recursos públicos aplicados diretamente nos projetos culturais.

A Inglaterra, como o Brasil, adota o sistema de repasse de valores arrecadados com a loteria nacional para investimento direto em projetos culturais. Segundo Thiry-Cherques, o Arts Council of England (ACE) é um órgão financiador nacional das artes, responsável pelo desenvolvimento, sustentação e promoção das artes, por meio da distribuição de recursos orçamentários e das arrecadações geradas pela loteria nacional.

É um órgão independente, não político, instituído em 1946, como Arts Council of Great Britain. Conselhos autônomos de artes foram criados para Inglaterra, Escócia e País de Gales em 1994. O corpo diretivo consiste em 11 membros no Conselho, designados pelo Secretário de Estado da Cultura. O aconselhamento é feito por profissionais reconhecidos em sua área, não remunerados e sem autoridade executiva, oferecendo suporte para o Conselho e monitorando os órgãos de financiamentos. Os deveres da organização dentro do sistema de financiamentos das artes incluem: apoio financeiro, formulação de políticas, planificação estratégica, aconselhamento, pesquisa, aferição de desempenho. A sua função é de incentivar a criatividade, a inovação, a excelência, promover a sustentação das tradições, apoiar os interesses multiculturais e divulgar a produção artística. O princípio norteador de sua ação é o respeito à diversidade cultural britânica, local, regional, nacional e internacionalmente.

Percebe-se no modelo acima a importância de desenvolver um pensamento estratégico do Estado no fomento à cultura. No Brasil, esse direcionamento, quando existe, é errático. Não há um objetivo claro e de longo prazo a ser cumprido com a realização e o patrocínio de projetos culturais mediante aplicação de dinheiro público. Aferir resultados, por exemplo, é coisa que nem sequer sabemos fazer.

O dinheiro do FNC precisa ser investido na criação de corpos consultivos técnicos qualificados para decidirem sobre o destino desse importante recurso. Com isso, poderíamos reduzir a enorme concentração de investimento na região Sudeste e diminuir a desproporção que há entre o financiamento de projetos de interesse privado (das empresas patrocinadoras e artistas) e os de interesse público, mediante a aprovação de políticas claras que incentivem a produção cultural como instrumento indispensável ao progresso da cidadania.

Leonardo Brant

Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

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  • Muito legal, Leonardo Brant! Que o dinheiro público páre de ser administrado pelos departamentos de marketing das empresas e que o Estado crie concelhos curatoriais rotativos, independentes, apartidários para cada área artística formados por seus respectivos especialistas (artistas, curadores, críticos, produtores, pesquisadores).

  • Vasculhando no site do Minc alguns projetos que almejam recursos do FNC vi que havia um que solicita nada menos que 18 milhões de reais, para construção de um museu do trabalhador. O autor: a prefeitura de São Bernardo, administrada pelo PT. Na síntese do projeto fala-se inclusive " em agregar impacto político e cultural" Pesquisando um pouco mais o assunto, verifica-se que a construção do museu é dada como certa , pelo teor de notícias publicadas no próprio site do MinC. A mesma prefeitura ainda quer mais 5 milhões, para um estranho projeto de revitalização dos velhos estúdios Vera Cruz. Mais uma vez observa-se, pelas notícias, que a execução da obra é dada como certa pela prefeitura. O que uma instituição estatal pretende quando diz que agregar impacto político é um dos objetivos de um projeto cultural seu? Não estariamos diante de uma forma de dirigismo?

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