Julio Daio Borges é o nome por trás do “Digestivo Cultural”, projeto que revelou uma nova geração de jornalistas e demonstrou a importância cada vez maior da Internet para esse meio

O jornalismo cultural nos últimos anos tem virado quase sinônimo de agenda cultural. Os cadernos e seções de cultura de jornais e revistas dedicam-se a criticar burocraticamente filmes, espetáculos e cds, divulgar grandes eventos supostamente culturais e criar pautas baseadas em releases de assessorias de imprensa. O espaço para análise e reflexão é cada vez menor, e o comprometimento dos grandes veículos com anunciantes e parceiros poda a independência e a imparcialidade do que se publica.

Em 2000, Julio Daio Borges lançou o Digestivo Cultural, no qual prossegue até hoje como Editor e Redator. Ele conta que o projeto inicial era revelar novos talentos.  “E eu acho que, em grande medida, continua sendo. Acontece que alguns jornalistas mais atentos da ‘velha guarda’, digamos assim, perceberam que – apesar das fracassadas experiências jornalísticas no Brasil do tempo da Bolha – eles deveriam participar do advento da Internet em algum momento. O Digestivo acabou surgindo no horizonte como uma alternativa. E a ponte se fez então. É óbvio que eles sempre foram, com sua experiência e seus conselhos, a nossa inspiração”. E dá sua versão para a falta de oportunidades para os novos jornalistas na grande imprensa: “Eu acho que tem bastante a ver com o encolhimento das redações, em conseqüência de investimentos precipitados em outras (novas) mídias: digamos que eles estão, como disse Otávio Frias Filho, se segurando; não têm como absorver a oferta de talentos em botão – ainda mais depois da Internet.”

O que começou com newsletters de notas culturais e como projeto de uma pessoa só transformou-se em uma revista eletrônica que virou referência para o jornalismo cultural, abriga hoje diversos colunistas e ensaístas e fez o cruzamento entre as velhas mídias (leia-se publicações impressas) e as novas (leia-se Internet), assim como dos jornalistas mais experientes com os novos talentos. Com cerca de 80.000 visitantes-únicos por mês, com o tempo o projeto passou a fechar parcerias que permitiram que o site se tornasse sustentável economicamente. Julio tenta explicar o sucesso: “Considero que crescemos porque nunca adotamos uma postura ‘de cima pra baixo’ como o resto da mídia; cultivamos sempre o diálogo franco e aberto; e tivemos a humildade necessária para, constantemente, admitir erros e mudar.”

Ele entende que o papel do jornalista cultural deve ser o de mediação entre a indústria cultural e o leitor, e critica o jornalismo cultural que vem sendo praticado nas revistas e jornais do Brasil. “Quanto maior o alcance de um veículo, maior a pressão das assessorias de imprensa, que supostamente deveriam fazer a mediação entre a indústria cultural e os jornalistas. O jornalista cultural deveria então, como se diz, separar o joio do trigo – informar e, mais do que isso, formar o leitor, através de sua bagagem e de seu julgamento crítico. Infelizmente, porém, predomina hoje o jornalismo de agenda, onde as vedetes são os guias de fim de semana, e o modus operandi (até em termos de linguagem) é o mesmo da divulgação publicitária.”

A postura do jornalista cultural também é um pouco resultado da sua formação. As universidades brasileiras sabem formar esses profissionais? “Em primeiro lugar, eu acho que qualquer candidato a jornalista cultural deveria se preocupar com seu repertório: conhecer as principais manifestações artísticas, ler sobre elas e tratar de refletir criticamente. Eu tenho dúvida se a maioria dos estudantes de jornalismo tem essa consciência e maturidade. E mais grave ainda: eu tenho sérias dúvidas se os profissionais do jornalismo cultural têm essa abertura para, digamos, o legado de nossa civilização e, ao mesmo tempo, para o novo. Já os professores parecem muito preocupados com os modelos jornalísticos dos anos 60, 70 e 80. Como disse o Pedro Doria , ninguém está formando profissionais para a Internet, por exemplo.”

“Pelo que sei, os jornalistas, em sua maioria, são muito mal remunerados e, na área cultural, acabam seduzidos pelos produtos (diretos e indiretos) da indústria”, Julio prossegue em sua análise do modelo mais praticado de jornalismo cultural. “Pode parecer estranho para pessoas de outras áreas, mas os jornalistas culturais, principalmente os mais assediados, estão se vendendo barato todos os dias por causa de CDs, DVDs, entradas grátis, almoços em restaurantes… Existe toda uma volúpia em torno de ser convidado VIP, assistir aos espetáculos primeiro, receber os materiais em primeira mão… É lamentável, mas o jornalismo cultural está exposto a esse tipo de corrupção. As empresas de notícia, salvo raríssimas exceções, também devem levar a sua parte, eu suponho. Por isso tudo, eu acho que a Internet, por não estar totalmente estabelecida, é a única mídia que ainda consegue driblar esses mecanismos de cooptação.”

Grandes jornais do mundo todo estão unindo suas redações de conteúdos impresso e online. Boa parte do público, atraída pela velocidade de informações da Internet, não tem mais interesse na leitura de jornais e revistas tradicionais. Estaria a mídia impressa condenada à decadência? “ No meu modo de ver, é fatal que o papel vá diminuir ainda muito. É caro, não é dinâmico e é muito pouco interativo. Em termos de notícias, quando o jornal chega na porta da sua casa, ele já está obsoleto. Já era assim com a televisão: você lia no dia seguinte sobre algo que havia visto na noite anterior. Posso estar exagerando, mas, para mim, lançar um jornal ou uma revista hoje é como lançar uma gravadora – nos velhos moldes – em plena época do MP3, do iPod, do iTunes… E nem é apenas um problema de suporte, é também um problema de mentalidade. Imagine o que é, para um jornalista que sempre viveu de escrever (de vender o que escrevia), entrar na internet e ter de, por exemplo, ‘blogar’ (de graça)? Ou então estar à mercê de ser contestado a toda hora por qualquer comentário mais atrevido, e-mail ou o que for? Os velhos jornalistas que mais resistirem são os que mais vão sofrer na adaptação.”

Por falar em blogs, Julio acha que eles não são apenas uma moda passageira, e que vieram para ficar. Aqui no Brasil, os blogs não foram adotados amplamente e, fora raríssimas exceções, estão ainda presos a uma certa adolescência… Mas nos Estados Unidos, qualquer especialista parece ter seu blog. Lá é uma ferramenta indispensável; é quase como ter um site… Em termos de imprensa, eu acho que a mídia constituída (jornais, revistas, rádios e televisões) perde um pouco esse papel de “fiscalizadora” da sociedade e, no longo prazo, acaba dividindo um pouco com os blogs. Num passado bem recente, os bloggers, por exemplo, derrubaram o âncora do jornalismo da rede CBS; os blogs ajudaram a financiar campanhas eleitorais; e todas as grandes empresas estão sendo pressionadas no sentido de criar seus próprios blogs. A comunicação, de maneira geral, vai ficando menos impessoal e mais humana.”

A nova configuração que aos poucos se impõe para o cenário das mídias cria também um novo tipo de jornalista. “Meu palpite é que não teremos mais jornalistas de longo alcance, como tivemos em outras gerações. Mas não acho que isso tenha necessariamente a ver com a Internet. Quando Paulo Francis morreu, há quase dez anos, foi quase unânime a constatação de que nenhum outro jornalista, dali pra frente, teria a mesma exposição, a mesma influência e até a mesma responsabilidade. A Internet está mostrando que vai-se trabalhar, daqui pra frente, a comunicação pessoa-a-pessoa e não mais o modelo de um-para-muitos. O especialista arrogante, nesse cenário, perde espaço e o palpiteiro descompromissado ganha.”

E para a nova geração de jornalistas, o editor do Digestivo dá algumas dicas: “Eu disse, no ano passado, que o jornalista, como o conhecemos, havia se convertido em commodity e que os estudantes de jornalismo deveriam dar seus primeiros passos em blogs. Choquei um monte de gente. Acontece que ainda não caiu a ficha de que o jornalismo tradicional acabou; é privilégio de uma meia-dúzia só. Quem pegou essa era de ouro – em papel –, pegou; quem não pegou, não pega mais. No meu ponto de vista, o grande desafio para esta e para as próximas gerações de jornalistas – culturais ou não – é garantir que o jornalismo sobreviva, de alguma forma, na internet. É um desafio que nós abraçamos, desde 2000, no Digestivo – porque uma imprensa cada vez mais encolhida não quis imediatamente nos ajudar; e porque a Internet, para os ‘tomadores de decisão’ de meia-idade (estatisticamente, a faixa no Brasil), é uma questão ainda de mudança de mentalidade. Os jovens jornalistas que querem se agarrar às oportunidades ilusórias da velha mídia, deveriam concentrar suas energias para desbravar a nova.”

www.digestivocultural.com

 

André Fonseca


editor

1Comentário

  • Antonio Cosme da Silva, 4 de dezembro de 2007 @ 15:29 Reply

    O texto é um retrato fiel da extinsão do profissional de jornalismo cultural no mercado.
    Estou iniciando uma luta solítária no interior do Espírito Santo.
    Tudo em nome do jornalismo cultural, minha paixão e minha vida.
    Até breve.
    Antonio Cosme.

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