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Os rouanetes

Em matéria publicada hoje, dia 27 de agosto, no jornal Folha de S. Paulo e intitulada “Os rouanetes”, a jornalista Ana Paula Sousa descortina o que pensam e como trabalham os 21 encarregados de aprovar ou negar os projetos que utilizam a lei federal de incentivo à cultura.

A mesma matéria ressalta ainda a sobrecarga dos conselheiros, responsáveis pela análise e aprovação de cada projeto. “Nem conto quantos projetos tenho para analisar. Se contar, fico desesperada”, diz, entre risonha e assustada, Rosiclair Temperani. “Não dá prestígio, não dá dinheiro. É por um ideal. Me sinto trabalhando para o cidadão, não para o poder de plantão. Mas a Cnic é consultiva. A decisão final é do ministro. Nossas decisões valem até a página três.”, declara também o engenheiro agrônomo e produtor de tevê Luiz Alberto Cesar.

Veja abaixo a matéria na íntegra:

Folha de S. Paulo – Ilustrada, 27/8/2009
Os rouanetes

Quem são, o que pensam e como trabalham os 21 encarregados de aprovar ou negar os projetos que utilizam a lei federal de incentivo à cultura

ANA PAULA SOUSA
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA

Entre pilhas de pastas brancas, os olhares, compenetrados, movimentam-se entre a tela de computador e os papéis. Muitos papéis. Mesmo quando se levantam para pegar um café, os conselheiros da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, a Cnic, costumam levar nas mãos alguma das pastas. “Nem conto quantos projetos tenho para analisar. Se contar, fico desesperada”, diz, entre risonha e assustada, Rosiclair Temperani, nascida e criada no circo, atualmente integrante do grupo que, em 2008, foi responsável pela aprovação de projetos que movimentaram cerca de R$ 1 bilhão pela Lei Rouanet.

A Cnic, criada com a lei, há 18 anos, tem a função de avaliar tecnicamente os pedidos de concessão de incentivo fiscal. Durante muito tempo, esteve à sombra. Mas, conforme foram esquentando os debates em torno do tema, também a Cnic passou a ver holofotes voltados em sua direção. Sempre que se fala de um projeto aprovado ou recusado pelo governo federal está se falando, na prática, de uma ação da Cnic.

E quem são os detentores das canetas do sim e do não? A reportagem da Folha foi a uma reunião, em Brasília, para conhecer os rostos, as opiniões e a rotina dos 21 conselheiros indicados por entidades da sociedade civil, que trabalham de forma voluntária. “Somos pessoas normais querendo acertar”, resume o maestro Amilson Godoy.

Barba branca, rabo de cavalo, o músico diz que, entre as pechas todas que recaem sobre a comissão, a que o incomoda de fato é a de censor. “Estamos aqui para aprovar os projetos. Queremos ajudar a produção, não atrapalhar.”

Não há conselheiro que não tenha ressaltado, nas entrevistas, seu espírito público. “Você me olha como se perguntasse: “O que leva um sujeito normal a aceitar um negócio destes?”, adivinha o engenheiro agrônomo e produtor de tevê Luiz Alberto Cesar. “Não dá prestígio, não dá dinheiro. É por um ideal. Me sinto trabalhando para o cidadão, não para o poder de plantão. Mas a Cnic é consultiva. A decisão final é do ministro. Nossas decisões valem até a página três.”

Explique-se. A despeito de mais de 90% dos casos serem decididos, de fato, pela comissão, alguns dos projetos -sobretudo os que envolvem estrelas- tiveram o destino resolvido pelo ministro da Cultura, Juca Ferreira. Vieram a público os casos de Caetano Veloso e de Maria Bethânia, vetados pela comissão e aprovados por Ferreira. Alguns conselheiros (que não quiseram se identificar) disseram que, no caso de Bethânia, cogitaram abster-se na segunda votação -pós-intervenção, acompanhada de redução nos ingressos.

“A lei permite que esses artistas tenham patrocínio, mas, pessoalmente, preferia que fosse usada por iniciantes”, pondera Godoy. A designer Fernanda Martins, encarregada da área de artes visuais, é incisiva: “Acho que todo projeto 100% incentivado tinha que ser gratuito. Não tem sentido chamar R$ 60 de preço popular”.

Questionada sobre a possível frustração de passar dois dias recobertas por papeis e ver, depois, a decisão revogada, Martins diz que a frustração, se existe, está em outro lugar. “Frustrante é saber que as pessoas nem imaginam o que é nosso trabalho. Não somos funcionários públicos. Deixamos nossos empregos, dois dias por mês, para estar aqui. Nosso papel é representar a sociedade, mas a sociedade nem imagina isso.”

Folha de S. Paulo – Ilustrada, 27/8/2009
Estrutura e fragilidade da lei dificultam trabalho

Comissão avalia desde megaexposições até projetos apresentados por índios

Apenas em janeiro deste ano o processo de análise foi informatizado; até então, até mil projetos eram despachados à mão num dia.

DA ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA

Foi apenas em janeiro que a Cnic ganhou computadores. Até então, os milhares de projetos eram aprovados, literalmente, à mão. Vinha da estrutura manca a sensação, no meio cultural, de que mandar um projeto para a Cnic era entrar numa espécie de buraco negro. Em 2008, a situação piorou com a greve de funcionários do Ministério da Cultura (MinC). Em dezembro, os conselheiros chegaram a analisar, numa só reunião, 1,1 mil projetos.

Antes de chegar à comissão, os pedidos passam pelo crivo de pareceristas que checam desde certidões até orçamentos. “Não há mais razões para queixa. O proponente sabe, pela internet, em que estágio está seu processo”, diz Roberto Nascimento, secretário de Fomento.

Trata-se, ainda assim, de um labirinto de regras, papéis e propostas. O mundo criado pela Lei Rouanet faz com que haja, no MinC, 18 mil projetos nos mais variados estágios -alguns à espera de aprovação, outros a prestar contas. “É um mecanismo amarrado e complexo.

Analisamos desde exposições acompanhadas de projetos educativos até programas ligados a ecologia” diz Claudia Ramalho, diretora de Sesi, indicada por entidades empresariais.

Não à toa, são muitos os pontos de interrogação que pipocam na mesa de reuniões. “No começo, quando via um projeto de R$ 4 milhões, eu simplesmente não sabia o que fazer”, admite a designer Fernanda Martins. “Há projetos caríssimos, mas há também projeto mandado por telefone. A gente teve que aprender a aprovar pedidos de índios, que não têm nem CPF”, diz o economista Henrique de Andrade.

Nilson Santos, filósofo, conselheiro da área de livros, diz que as dificuldades nascem das próprias falhas da lei. “Como a lei é frágil, a gente precisa tomar cuidado pra não fazer uma análise ideológica”, diz, referindo-se a projetos que, a seu ver, não precisariam de dinheiro público. “Há os casos óbvios. Recusamos os projetos de uma rede de restaurantes que queria fazer um livro sobre culinária francesa e outro sobre uma família ilustre do Maranhão.”

A tentativa de travestir de cultura projetos promocionais é comum. A área patrimonial, não raro, tromba com propostas de festas que incluem grupos folclóricos em seu cardápio apenas para caber na rubrica “preservação de folclore”.

Outros pontos que merecem atenção especial são orçamento e acessibilidade. “Temos que zelar pelo dinheiro público”, diz Godoy, para em seguida ponderar: “Mas também não podemos punir a arte em nome de princípios sociais”.

Carina Teixeira

Jornalista e sócia da empresa CT Comunicações.

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