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As políticas de cinema no Brasil e na América Latina

O cinema latino-americano tem como base a produção de três nações da América Latina: Argentina, Brasil e México. Simplesmente, esses três países representam no conjunto da indústria cinematográfica da região cerca de 90% da produção de filmes, dos espectadores e da arrecadação das bilheterias.

Contudo, o market share dos filmes desses três grandes produtores oscila entre 12% a 15%, em média, contra 85% a 88%, em média, dos filmes estrangeiros em seus países. Infelizmente, a luta do cinema latino-americano é de se estabelecer sustentavelmente, pois sofre historicamente o poder hegemônico das majors dentro do seu próprio território.

Acrescente a esta pressão o surgimento da televisão e da sua penetração nos lares latino-americanos, a partir dos anos 1950, com uma programação de filmes estrangeiros, que gradativamente se tornou o maior referencial de qualidade audiovisual nas novas e jovens gerações de espectadores, que se habituavam às grandes produções, especialmente, dos Estados Unidos a partir dos anos 1980.

As atividades governamentais de fomento e difusão da produção cinematográfica nesses três países representativos sofreram uma grande mudança a partir dos anos 1990, com a forte presença de concepções políticas e fundamentações econômicas de cunho neoliberal, a partir de uma diminuição progressiva da participação do Estado em políticas públicas que poderiam ser supridas pelo mercado.

A ideia de um Estado-Mínimo, condizente ao modelo exportado para a América Latina, pelo Consenso de Washington, que marcou o governo Bush (1988-1991), e a nova ação do Banco Mundial para países em desenvolvimento, especialmente, Argentina, Brasil e México.

Assim, no Brasil, o fim da Embrafilme e do Instituto Nacional do Cinema, no início do governo Collor (1990-1992), demonstrou na prática os malefícios dessa política econômica neoliberal, onde o Estado brasileiro “virou as costas” para o cinema nacional, chegando a quase anular a produção de filmes.

Já no México, a privatização e a eliminação da participação governamental no setor cinematográfico, tanto na produção, quanto na distribuição e na exibição de filmes nacionais mexicanos, que sofreu novo golpe neoliberal com a assinatura do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, o Nafta.

Porém a Argentina, mesmo atuando dentro de uma lógica econômica e política neoliberal, não desmantelou sua indústria cinematográfica. Pelo contrário, criou uma nova lei de fomento para o setor e aumentou em cerca de cinco vezes os recursos do Fundo de Fomento Cinematográfico, que se juntaria com outros recursos provenientes do imposto de 10% sobre a bilheteria dos cinemas, assim como dos recursos oriundos do faturamento das emissoras de televisão e distribuidoras de vídeo.

Os tristes anos neoliberais da América Latina representaram uma grande redução de quase a metade da média de filmes que se produzia nos anos anteriores. Isto é, de 230 filmes em média por ano, a produção cinematográfica latino-americana, na metade dos anos 1990, chegou ao patamar de pouco mais de uma centena de filmes realizados.

O fenômeno normativo cinematográfico na América Latina

Este panorama somente se superaria com novas políticas e gestões públicas, sociais e privadas, que experimentou o setor cinematográfico desde a segunda metade do século passado e a primeira década do século atual.

Isso representou uma mudança de postura da sociedade civil organizada, criando um efeito econômico associativo e de engajamento político entre produtores, realizadores e profissionais do cinema, que fez surgir uma série de leis e instrumentos normativos voltados para o cinema e o audiovisual, como a Lei Rouanet (1991) e a Lei do Audiovisual (1993), no Brasil, mas também, na Bolívia em 1991, na Argentina em 1994, no Uruguai em 1994 e no Peru em 1998.

O fenômeno que se inaugurou na última década do século passado se estendeu no início do novo século, causando uma revolução normativa do setor do cinema e do audiovisual em alguns países, que a princípio não tinham sequer algum tipo de legislação sobre o tema, como foi o caso da Colômbia, que criou sua primeira lei do cinema e do audiovisual, em 2003, assim como o Chile em 2004, a Venezuela em 2005, o Equador em 2006, o Panamá em 2007, a Nicarágua e República Dominicana em 2010.

O que já se constata no cenário político e econômico dos países latino-americanos, especialmente na Argentina e no Brasil, uma atenção tanto no segmento da distribuição quanto da exibição na cadeia cinematográfica, pois são neles que se concentram um forte oligopólio, muitas vezes controlados por multinacionais estrangeiras, principalmente, norte-americanas.

No gargalo da indústria cinematográfica na América Latina, tanto a distribuição quanto a exibição são os maiores arrecadadores das receitas dos filmes que são exibidos em cada país latino-americano. A lógica dos grandes distribuidores e exibidores é auferir o maior lucro possível e comumente acontece com a promoção dos filmes importados e no apoio em produções nacionais apoiadas com o capital estrangeiro. Portanto, não há uma preocupação com a constituição de uma cinematográfica nacional capaz de concorrer e ampliar seu espaço no mercado nacional.

Neste sentido, o mecanismo de cota de tela tem se tornado um dos instrumentos normativos mais apoiados e propostos pela classe cinematográfica e por dirigentes políticos no setor, especialmente no Brasil. Outro instrumento também proposto é a sobre-taxação sobre a quantidade de cópias de filmes estrangeiros no território, com o objetivo de mitigar a hegemonia dos blockbusters estrangeiros, como no caso da Argentina.

Sabemos que são ações normativas que podem ser combinadas para melhor servir a cadeia produtiva nacional e impedir o fim das cinematografias nacionais. Porém, o gradativo fortalecimento dessas mesmas cinematografias poderá gerar futuras gerações de realizadores e de espectadores que encontram e encontrarão no cinema de seu respectivo país o elemento formador necessário para a construção da sua identidade nacional cultural.

Por fim, o que podemos compreender sobre as recentes transformações no cenário cinematográfico latino-americano:

1)      O fim do modelo desenvolvimentista que tradicionalmente serviu de base para o surgimento da indústria cinematográfica nacional na América Latina deu espaço para iniciativas neoliberais;

2)      O fim do modelo neoliberal que recentemente buscou uma desregulamentação do setor cinematográfico nos países latino-americanos fez surgir iniciativas de associativismo em busca da regulamentação;

3)      O fenômeno da regulamentação do setor se tornou uma demonstração do crescente interesse dos países da América Latina para a indústria nacional cinematográfica e audiovisual que busca criar instrumentos fomentadores e reguladores aos desníveis do mercado;

4)      Em suma, o que se busca a médio e longo prazo é alcançar um maior nível de competitividade do cinema latino-americano, dentro e fora da América Latina, com relação às nações de maior desenvolvimento dentro de um perspectiva de globalização da economia e da cultura.

Norlan Silva

Distribuidor, realizador, professor e crítico de cinema. Criador da Revista Quem Viver Verá!, presidente da Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo - Seção do Distrito Federal da ABD Nacional e Secretário-Geral do Congresso Brasileiro de Cinema.

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