Se não me engano em fevereiro, há cerca de dois meses, travou-se uma polêmica sobre o “vazio cultural” brasileiro, lançada por um número da revista “Carta capital” que discutia o assunto. Por algum motivo circunstancial (acho que eu estava em viagem) só me dei conta da discussão posteriormente, através de seus ecos. Não tenho condições de recuperá-la agora, mas o meu “vazio cultural” particular de hoje, em que a coluna gira em falso à procura de seu ponto de apoio, me impele de volta à questão. Considerar o tema como “ultrapassado” seria prender-se a uma lógica imediatista. A redução, aliás, de toda cultura a pautas, ganchos jornalísticos e mercadológicos, efemérides e fenômenos virais, é uma das partes do problema.
As instituições da chamada alta cultura, ou das instituições letradas, sofreram abalos e deslocamentos em todo o mundo, nas últimas décadas, sob a pressão dos meios de massa articulados com a onipresença da publicidade e com uma considerável corrosão da escola tradicional frente a essas novas realidades. Mesmo assim, a literatura, os escritores, a crítica, tiveram ainda um papel determinante no acompanhamento de todas as transformações que se deram na Rússia ao longo do século XX, por exemplo, ou na Argentina ou em Portugal. O lugar do escritor, garantido por um certo lastro letrado, não se evaporou completamente no processo. Certamente não se pode dizer o mesmo do século XXI, mesmo lá.
No Brasil, a tendência a deslocar as pautas culturais do campo das ideias para o das vendagens, comportamento, moda e polêmica de superfície lavou o lastro frágil da vida literária acumulada, e acuou a atividade crítica num papel incômodo, impertinente e estigmatizado, substituído pela atividade dos agentes e assessores de imprensa, dos releases, das entrevistas e notas em colunas sociais, pela participação em eventos, num ambiente de coquetelização da cultura (estou lembrando de um artigo contundente de Flora Sussekind, “A crítica como papel de bala”, publicado no Prosa em 2010, algumas balas do qual sobram para mim, se não estou enganado).
É certamente a essa perda de articulação e a esse rebaixamento do papel crítico na esfera pública que Vladimir Safatle se referia, ao intervir no debate caucionando o mote do “vazio cultural”. Vazio cultural, nesse caso, significa a falta de um senso totalizante e de um tensionamento da linguagem que comprometa as produções com algo mais do que sua inserção num mercado ou o seu reconhecimento por um grupo de participantes consumidores. É exatamente o contrário do que pensa Hermano Vianna, para quem a cultura vive da força empenhada nela por seus agentes, que dão a cada cena cultural um sentido total auto-bastante. Onde para um há o vazio para outro sobra excedente. Os pressupostos são tão opostos que não dão lugar a uma conversa possível nem ao entendimento da impossibilidade disso.
Para mim este é o ponto. Não falta acontecimento cultural no Brasil, das mais complexas aventuras intelectuais às mais saudavelmente elementares manifestações do apetite de viver. Faltam, quando faltam, e como faltam, nexos compreensivos capazes de dar conta dessa complexidade, em meio à entropia de um mercado voraz e de um debate reduzido muitas vezes ao quiproquó, à faccionalização dos discursos e à simplificação jornalística.
Em muitos sentidos, “vazio cultural” é um estado do mundo, hoje. Em cada caso, a questão é saber onde estão os “pontos luminosos”, e o Brasil é um vazio cheio deles.
*Publicado originalmente no jornal O Globo do dia 20 de abril
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