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Quando o Estado quer ser mercado

Já não temos uma noção clara de como o Estado pode atuar de maneira consistente na area da cultura, suprindo o vácuo histórico em relação à sua responsabilidade constitucional de garantir direitos e liberdades culturais a todos os cidadãos: condição básica de cidadania em qualquer sociedade avançada. O campo de batalha em torno das políticas públicas de cultura tornou-se mera disputa por financiamento.

A nova política cultural anunciada pelo governo Lula nasceu para ampliar o escopo de atuação da cultura. O artista, sobretudo o consagrado pelo mercado e pelas políticas liberais do passado, deixaria de ser o beneficiário principal dos incentivos do Estado. O desafio era descentralizar, estimular o protagonismo da população brasileira. Sem dinheiro, estrutura e capacidade de gestão para alcançar pretensiosa meta, o Estado atuou diretamente na construção de novos setores, organizados e legitimados para brigar pelo Erário, concentrado nas mãos dos tradicionais produtores de cultura do eixo Rio-São Paulo. Sem uma arquitetura de gestão pública alternativa, deixou de atuar em função e à favor do mercado para atuar como o mercado, com seus formatos consagrados e seus vícios: priorizar a visibilidade da operação em detrimento da prioridade; exigir contrapartidas além da atividade cultural, garantir o foco de atenção para a marca patrocinadora (nesse caso, o governo). Foi inaugurada a era do marketing cultural governamental.

Cultura popular, pontos de cultura, griôs, ciganos, cultura digital, GLBTs e um sem-número de “setores” antes alijados do financiamento tradicional à cultura entraram na arena, como reconhecimento a todas as formas de cultura, além das artes e letras. O frágil e fácil instrumento utilizado para celebrar as mais diversas colorações da nossa diversidade cultural foi o balcão de financiamento.

O edital tornou-se sinônimo de política cultural, conferindo um ar de celeridade, lisura, transparência e critério na divisão do bolo. Como tecnologia importada do setor privado, o edital foi criado para ativar marcas em torno da repercussão gerada pelo conjunto das ações culturais patrocinadas. O patrocinador ganha no atacado e no varejo: ele dá as cartas, coloca a comunidade cultural a seu serviço e ativa sua marca em vários momentos, da convocatória à entrega do produto, passando pelo anúncio dos resultados. Se é bom para o mercado, pode ser melhor ainda para o Estado.

O efeito simbólico dessa nova “política” foi extraordinário, ampliando a percepção da imensa riqueza cultural da periferia, dos grotões e do fora do eixo. Por outro lado, apresentou sua faceta neopopulista. Zonas conceituais cinzentas, regulamentos pouco consistentes e comissões julgadoras comprometidas com o poder possibilitaram o escoamento de verbas para interesses de grupos partidários, movimentos e igrejinhas organizados para abocanhar seu naco desse novo “mercado”, anabolizado pelo Estado.

O gestor público age como uma espécie de cool-hunter, que se apropria dos modos de vida, das falas e dos jeitos das comunidades para, em seguida, traduzir isso tudo em discurso oficial competente. Publicidade, road-shows, blogs, redes sociais e uma forte relação com a mídia garantem que números distorcidos e teses mal traçadas ganhem força, com o aval dos setores contemplados com o dinheiro público.

De caráter personalista, essas propostas não sobrevivem ao segundo mandato. Sem critérios e metodologias, são esculpidas para valorizar os poucos e bons por trás do balcão que distribui recursos. Esses, por sua vez, responsabilizam o Estado pelo caos do financiamento público à cultura. A democracia, o sistema político e a legislação vigente seriam incompatíveis com as inovações propostas. Qualquer semelhança com o mercado é mera coincidência.

Assim como o Estado neoliberal virou refém da Lei Rouanet, o neopopulista se coloca a reboque de um complexo e caótico modelo de participação, que inclui conferências, colegiados, conselhos, câmaras setoriais, fóruns, comissões, grupos de trabalho, consultas públicas e até mesmo redes. O simulacro da cidadania se faz no contraponto e na sobreposição dessas diferentes instâncias.

O capitalismo de Estado, na área da cultura, impede a geração de novos modelos de gestão, tanto no âmbito público quanto no privado, pois assume o comando de uma atividade que deve funcionar de maneira aberta, livre e democrática. Enquanto isso, a infraestrutura e a prestação de serviços culturais ao cidadão, função primordial do Estado, são deixados de lado. As infinitas oportunidades de estímulo à criatividade e à diversidade cultural proporcionadas pelas profundas mudanças ocorridas na economia brasileira e nos modos de produção cultural, poderão ser desperdiçadas.

Leonardo Brant

Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

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  • Ainda que simplista - não podia ser dada as limitações de espaço - você tocou nas principais questões. Agora fiquei com várias dúvidas:

    1) estamos reféns dessa dicotomia neoliberalismo x neopopulismo?

    2) O capitalismo de estado na saude e na educação tira o mercado dos privados? Universalizar o acesso a um bem público é ruim?

    3) o neoliberalismo na cultura não tem marketing estatal? "Cultura é um bom negócio" não era marketing? O gestor público neoliberal também não agia como um "cool-hunter" a seu modo?

    4) ferramentas participativas - conselhos, consultas públicas, etc - são ruins? Quais são as alternativas?

    5) Editais não são as formas impessoais de distribuição de recursos públicos? Se não é, qual a melhor?

    6) Decisões em política cultural se resumem a qual "rent-seeking" privilegiar?

    7) a sociedade civil é casta e a soiciedade política é a vilã?

    Enfim, estas são apenas algumas questões não respondidas no teu texto, que é uma boa provocação ao debate. Mas fiz aqui um papel de advogado do diabo.

    • Exatamente! Para mim, as melhores perguntas são "quais as alteranativas para a seleção por meio de editais?" e "qual a melhor forma de garantir participação e transparência na seleção dos projetos?".

      Criticar é bom, mas propor alteranativas é melhor ainda.

      • Nos viciamos em editais, que por sua vez já estão viciados. Um remédio que vicia. Não sou contra os editais. Sou contra utilizá-los como solução para todos os males. Já organizei, planejei, escrevi vários editais. Não tenho dúvida em afirmar que o segredo do bom edital é a comissão julgadora, que precisa ser formada de pessoas desiteressadas no assunto, imunes às pressões do poder público ou do patrocinador, com compreensão da complexidade do objeto do financiamento. E a metodologia, com critérios claros e espaço para discussão entre os membros da comissão. Abs, LB

    • Boas perguntas JC. Muito obrigado pela oportunidade de debatê-las. Só não respondi antes pois estava em uma série de viagens. Vamos lá:

      1) Não estamos reféns, mas enquanto os movimentos culturais enxergarem o Estado como mercado, não há solução. O Estado atua apenas como balcão. Estamos muito distantes de enxergar política pública de cultura pelo viés dos direitos culturais.

      2) O Estado não pode atuar na saúde, educação e cultura como um agente que substitui, sobrepõe ou contrapõe o mercado. Precisa atuar em outra lógica, de conquista cidadã.

      3) Não sei o que é mais grave. O neoliberalismo transfere para o privado a gestão dos recursos públicos. No marketing cultural governamental (efeito do neopopulismo), o Estado replica o modelo privado. A lógica é da imagem, da agregação de valor. O Estado só quer tirar os dividendos da produção cultural, que só quer o dinheiro do Estado. Há um preocupante esvaziamento da função pública da cultura.

      4) São excelentes. Falta consistência metodológica, definição do papel de cada um e um sistema participativo mais amplo, que realmente incorpore as contribuições desse processo. No caso do Plano Nacional de Cultura vimos o melhor desse sistema sendo ativado. No caso das consultas públicas do Procultura, o pior. Ou seja, para tratar de assuntos fora da esfera dos interesses privados, a coisa pode funcionar bem. Mas para tratar da distribuição da grana, o modelo participativo pode virar massa de manobra.

      5) Podem ser, mas não são. Para ser impessoal, transparente, democrático, o edital custa caro e exige desprendimento do gestor. Para justificar o investimento, o montante investido precisa ser relevante e o objeto também. Eu não vejo sentido em abrir um edital de R$ 2 milhões de reais para abastecer um setor que não existe. Ou seja, o edital cria uma demanda política, reconhecendo um setor de interesse e coloca esse público a seus pés. Cria um objeto de desejo, um reconhecimento para algo que sequer existia anteriormente, como política cultural. As empresas fazem isso para agregar valor à sua marca e gerar demandas não existentes, uma velha e nociva técnica do marketing. Mas quando o Estado utiliza isso como paradigma de financiamento, devemos nos preocupar.

      6) Enquanto política cultural for sinônimo de financiamento, sim.

      7) Não necessariamente. Mas precisamos repensar a interlocução Estado/sociedade.

      Abs, LB

      • "7) Não necessariamente. Mas precisamos repensar a interlocução Estado/sociedade."

        Sim! E esse é o tema da minha pesquisa de final de curso! Poderia me indicar alguma referência?

        Agradeço antecipadamente.

        Abs,
        Samanta Sobral

  • Parabenizo-o por tão bom artigo.
    Penso que o projeto, ora na Câmara Federal, do VALE-CULTURA irá colocar o usuário como o agente propulsor da cultura em nosso país.

    • Oi Marcela, não tenho dúvida que a saída é ampliar e diversificar as ferramentas de financiamento. Política cultural não pode se resumir ao financiamento de projetos. Precisamos investir em infraestrutura, programação, circulação, pesquisa, estimular a produção, incentivar o empreendedorismo, potencializar a indústria cultural nacional. Os editais, sobretudo os públicos federais, tentam resolver no varejo problemas do atacado. Do ponto de vista simbólico, de valorização de setores e classes antes desprezadas, ele é excelente. Mas seria muito ilusão achar que eles dariam conta de atacar desafios mais profundos e abrangentes, como a universalização dos direitos e liberdades culturais no país. Precisamos sair da política do financiamento para a política de cultura. Bjs, Leo

  • Garantir direitos e liberdades só não basta, é muito mas não basta, no âmbito da Cultura é preciso que o Estado promova e preserve a Cultura nacional. Vivemos no perímetro da cultura e comunicação de massas norte americano cuja presença é avassaladora, precisamos reunir muitas forças para contrabalançar essa presença, eis portanto o coração de uma política cultural, mas o que vemos? A presidenta da República do Brasil deveria ter mais o que fazer a receber e tirar foto com Lenny Kravitz por exemplo, é no mínimo infame, e não pode passar batido. Assim como Lula batendo fotos com roqueiros importados é muito caipira, é demais caipira. Podemos mais e queremos mais. Não haverá afirmação da nação sem afirmação cultural e o marketing cultural governamental pode ser muito importante, se coerente e bem encaminhado. Cultura é confronto e é bom que se entenda isso de uma vez. Estamos muito atrasados, no digital então nem se fala. Perdidos nos entregamos a pirataria e a baixaria, chamamos isso de internet livre. O resultado é a debacle da música brasileira há mais de dez anos silenciada e reduzida paulatinamente no território nacional. Onde deveríamos buscar o entendimento com as grandes corporações, duvidamos. O resultado é essa derrota acachapante no âmbito cultural que experimentamos por conta da anti política cultural que procedemos, a que privilegia o produto cultural importado no mercado cultural brasileiro.

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