De tudo o que aconteceu na última Berlinale acerca do manifesto de cineastas brasileiros, a mais forte impressão que me ficou não diz respeito ao discurso contra o governo interino em exercício, nem menos ainda aos filmes exibidos.
Começa o filme, estou colado nas fileiras reservadas à delegação oficial, isto é, não muito longe da tela. Termina o filme, estou dentro da tela! Acabo de ser assassinado, ou teria sido um antepassado meu, nosso, um tataravô brasileiro – filme de época… Enfim, segurem a lágrima, interditem os olhos, façam como eu, agarrem-se aos créditos do filme como maneira de suspender o sentimento.
Significativamente, o filme era em preto e branco – como o Brasil. Os atores negros haviam sido tão cativantes em suas atuações, tão cativos em sua escravidão, tão verossímeis para um público alemão distanciado temporal e espacialmente daquelas específicas minas gerais que, ao final, a negritude ganhou tudo; ganhou a tela, ganhou a sala, ganhou os espectadores. Eis que acenderam as luzes e…
Aqui devo fazer uma pausa para o comercial.
A pausa é perfeitamente cabível, posto não estarmos no cinema. Além disso, o intuito da crônica é somente dar o relato de certa impressão, que fica melhor com alguma publicidade – e faço-o de coração aberto, escravo da boa vontade que sou.
Essa é exclusiva para você, meu querido cineasta! Venha à Berlinale!
Os tapetes vermelhos multiplicam-se, os fotógrafos, as câmeras de tevê! A imprensa mundial estará a postos para qualquer espirro!
Se tiver um filme selecionado na Mostra, comemore, mas não fique só nisso… Pensar pequeno para quê? Ouse! Você está na Berlinale!
Caso seja oriundo de um país exótico, uma dessas republiquetas em pleno colapso político, ético, social, e sabe-se lá mais quais agruras, será o momento perfeito para…
UM MANIFESTO!
Não desperdice essa chance!
Manifeste-se aqui, na
BERLINALE!
Repercussão mundial garantida.
Pois foi rigorosamente isso o que os cineastas brasileiros fizeram: aproveitaram a chance para manifestar o que lhes seria mais urgente. Não que a urgência deles carregasse laivos de paixão – longe disso! Também não foi assim um manifesto tão bem sucedido quanto o do diretor Kleber Mendonça Filho, no Festival de Cannes 2016. A propósito, qualquer comparação seria absurda. O manifesto da Berlinale nem mesmo chega a ser remotamente um manifesto.
Que houve a leitura de uma carta na competição oficial, sim, é verdade; que arriscaram até um jogral na Embaixada brasileira – extirpando-se cirurgicamente a acusação de “governo ilegítimo” –, era até imprescindível que o fizessem. Talvez a carta-manifesto tangenciasse a intenção de um manifesto. O resultado, no entanto, descambou em fleuma, ganhou contornos estéreis, desgraçadamente patéticos e terminou convertendo-se em pedido de clemência. Tanto é assim, que o próprio Ministério da Cultura soltou até uma nota oficial em que só faltava agradecer aos cineastas.
Como cineastas, poderiam ter lançado mão de uma imagem impactante e efetiva, a exemplo de Cannes – não o fizeram; preferiram o uso da caneta cautelosa. Se o tempo das cartas cheias de ouro ainda está em voga, aquela particular carta-manifesto não figurará sequer como opaco farelo na bateia da história.
Em resumo, a carta-manifesto da Berlinale foi um gesto acuado entre o corporativismo e o medo de uma retaliação governamental. Nessa tentativa de parecer engajado – sem queimar o próprio filme –, os diplomáticos cineastas brasileiros saíram distribuindo aperto nas mais variadas mãos, inclusive nas que rejeitam.
Por desconhecer a maldade, só posso acreditar no medo ou na ingenuidade, que me é mais próxima dos sentidos. De todo modo, esse estudar cauteloso das formas, essa mensuração de todas as consequências, esse ladrar e não morder, esse arrasta sola cheio de melindres, se isso é um manifesto, então é hora de recorrer às carpideiras e delegar a elas todas as dores da República.
Mas onde eu estava mesmo? Alguns comerciais são assim: além entreter, conduzem a pensamentos alheios à vontade… Ah, sim! Retornemos ao filme de escravos.
Como de costume, esse gênero de filme desperta interesse. Há os até bons, os até ruins, e entre bondades e ruindades, deparo-me com uma elogiosa crítica que destaca a “bem vinda” (sic) ambição do filme em revisitar as engrenagens de um país escravocrata. Com efeito, revisitou.
No acender das luzes daquela glamorosa première, é onde se situa a mais forte impressão que guardo da Berlinale. Como reza o cancioneiro, acenderam as luzes… Cruzes! Assombrado, descubro que os atores negros, escravos no filme, haviam sido tão persuasivos em suas atuações que a própria delegação brasileira esqueceu-se de tirá-los do cativeiro e levá-los à festa. Embora maioria no filme, nenhum ator negro estava presente. Parecia coisa de cinema!
Convidada ao palco, os holofotes revelaram a tez alvíssima da delegação oficial; algumas cabeleiras eram de um áureo tão definitivo com que o ariano jamais ousaria sonhar. É provável que, dado o contexto político atual no Brasil, teria sido um protesto ousado demais trazer ao palco apenas coadjuvantes acorrentados. Admito, entretanto, que essa expectativa habita também campo onírico…
O sonho: matéria-prima do cinema.
O cinema: máquina aplicada e ciosa de suas engrenagens.
Berlim, segunda-feira, 13 de janeiro de 2017.
O Coice
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