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Quem sobreviverá de música?

A música sobreviverá ao século XXI, mas a ampla maioria dos músicos e principalmente os compositores não vai conseguir viver de música. Quem trabalha com música precisa entender a raiz do problema do setor em suas origens superestruturais, econômicas e políticas.

Na atualidade, tenho lido diversos artigos com dicas “valiosas” para quem pretende viver de música que, desde o marketing dos shows aos aspectos relacionados à fidelização de prosumers, network e formas de financiamento coletivo, ou através de leis de incentivo, colocam músicos, compositores e produtores frente a um precipício com uma pergunta na cabeça (“como sobreviver de música?”) e uma voz que diz: “Pulem! Podem confiar em nossa opinião”.

Parte desses artigos está vinculada a vendas de serviços como o “marketing 360 graus” (que promete te colocar em destaque no ranking de APPs musicais, mídia, distribuição, abertura de grandes shows e festivais etc., desde que você pague pelos serviços, obviamente), outra parte vem de consultorias em projetos de leis de incentivo, que dão como solução o fomento público. A maioria das matérias revela que o jornalismo e, em larga medida, artistas e público ainda estão presos à ideia de sucesso. Mas esses artigos não tratam nem dos seus direitos trabalhistas, autorais, nem de emprego, renda e muito menos das contas a serem pagas no final do mês.

Esta cena não pode seguir. Não se jogue sem saber onde vai dar o fundo desse buraco. Antes de pular nesse precipício, fique por dentro de algumas realidades sobre o que ocorreu no mercado da música e como isso afeta o mundo do trabalho.

No começo da década passada, a imprensa divulgava artigos com versões “propagandísticas” das gravadoras multinacionais que acusavam tudo e todos de piratas, amargando prejuízos seguidos e uma retração de mercado de mais 80%. A indústria da música perdeu só no Brasil 80 mil postos de trabalho, segundo dados da Sony Music que circulavam em uma comunicação institucional. Enquanto isso, a cena independente se favorecia pela popularização dos preços das gravações e das novas formas de difusão da música pela internet.

Mas o sonho de sucesso nas redes não tem se materializado em retorno financeiro para a ampla maioria, até mesmo artistas de renome. Desde Taylor Swift, Madonna, Neil Young, Quincy Jones, a Aretha Franklin e Björk, estão profundamente insatisfeitos com a atual rentabilidade da música online, paga por serviços como Youtube, Spotify, Deezer, Play Music, Tidal, Rdio, ou Itunes/Apple Music, entre outros. Imaginam a insatisfação daqueles que nada ganham mesmo tendo alguma visibilidade?

Os grandes contratos com majors já não existem, a sustentabilidade prometida pelos direitos autorais também não se materializam para a quase totalidade dos artistas, enquanto as promessas de uma carreira independente e com renda não vêm se realizando. Mas as afirmativas de que se algo vai mal “é na sua carreira” não são postulados afirmados, digamos assim, com alguma validade “científica”.

Não podem servir de referências para essa reflexão apenas a própria carreira do artista/grupo ou produtor, tampouco as ferramentas, novas mídias e ou serviços disponíveis, pois são acessados de forma desigual. O acesso a dados, histórico socioeconômico, ambiente e forma/função superestrutural do setor musical são fundamentais para que cada um chegue às respostas: Como sobreviver de música?

Sim, sobreviver é o termo mais adequado em um ambiente de concorrência darwinista. Trabalho com música desde 1989, e pesquiso o assunto seriamente há mais de 20 anos, mas somente por volta de 2005, com a mobilização de listas, fóruns e conferências por todo o Brasil, bem como a ampliação da troca de informação na internet, as redes sociais e artigos críticos que circulavam sobretudo na blogosfera, é que vi os dados começando a ser cada vez mais acessíveis e podendo ser comparados com fundamentos teóricos sobre o tema. Faltavam articulações entre as pesquisas teóricas e as de base empírica para confrontar com as muitas opiniões e poucas explicações convincentes que circulavam na imprensa.

Entre a teoria, dados empíricos e o que a imprensa cobria existia uma diferença gritante. Isso me chamou a atenção e me fez observar mais de perto o fenômeno, o que acabou rendendo uma monografia em ciência política tratando do caso da música brasileira. O que descobri na época não foi a existência de uma crise, mas a ampliação de conflitos decorrentes de uma forte expansão nas atividades musicais globais. Isso ficou ainda mais evidente com a observação das atividades musicais regionais e independentes de cada localidade formando um “fato social total”, ou seja, quando o todo explica uma parte, ou quando a parte explica o todo (pesquisa que publiquei em 2004).

Os dados obtidos em ambas as pesquisas, comparadas com dados socioeconômicos e de consumo, simplesmente não davam o menor sentido de crise ao setor musical. Enquanto as vendas de discos despencavam, os direitos autorais, os setores de eventos, venda de equipamentos e instrumentos disparavam. Se o mercado de quase 80 bilhões em vendas globais de discos se transformou em uma fração disso em menos de 20 anos, a soma de todos os outros segmentos de atividades relacionadas à música se ampliaram para quase U$200 bilhões ao ano. Não existia crise, mas apenas no mercado da indústria de objetos musicais (música enlatada, aprisionada em mídias físicas, como afirmou Walter Benjamin há quase 80 anos). Foi o que respondi ao Carlos Minuano em entrevista exclusiva para o Cultura e Mercado no ano de 2009: “Não há crise na música, o que existe é a crise das gravadoras”.

O que existe é conflito de monopólios do setor contra os novos concorrentes das cenas regionais e independentes, disputando os consumidores através de ações políticas, legislativas, tratados, ações judiciais que procuram regular as novas tecnologias de produção e difusão. Ou seja, monopólios tentando se manter monopolistas.

Sobre isso, afirmei que, anteriormente à internet, a “música contribui na modelagem da sociedade em seus diferentes tipos de arranjos institucional, social e econômico. (…) Controlada pelo monopólio da indústria fonográfica, entretenimento, audiovisual e copyright (direitos autorais), associada ao monopólio da comunicação, essa infraestrutura age em conjunto a serviço do poder do capital internacional (A música como produto do capitalismo, 2014).

Desde então, as contradições entre objeto físico, formas de audição, avanço da economia da música, em detrimento da valorização do tempo do trabalho e do valor unitário dos objetos, só aumentaram. Na medida que a música gera mais dinheiro, menos ela vale.

Essa reflexão, ampliada em outros artigos, demonstra que se no começo da última década se falava em crise e pirataria, hoje, compreendidas as diversas mudanças sociais relacionadas aos hábitos de produção e consumo musical, o que temos como síntese do fenômeno é um processo de aceleração das revoluções sociais e tecnológicas da música. O que nos permite saltar o precipício para não cair nele é esse entendimento de que a música, devido as mudanças tecnológicas, sofreu fortes pressões que condicionam “o processo social, político e espiritual da vida” (Indústria cultural, um “velho” debate?) E de que o contrário também tem validade, pois aquilo que vem do mundo da vida, afeta o processo tecnológico, forçando mais e mais transformações.

Chris Anderson apresentou seu conceito “teoria da cauda longa” na mesma época em que apresentei, através do livro “A [des]construção da música na cultura paranaense”, as contradições entre cenas regionais e independentes, com o mercado de mídia, indústria fonográfica e direitos autorais. As teorias se completam com outra ainda, da mesma época, do autor Lawrence Lessign. Se os mercados de música teriam migrado para os nichos, por outro lado a cultura livre libertaria cenas regionais e independentes da exclusão midiática e mercadológica provocada pelo monopólio das majors. Isso de certa forma ocorreu, mas junto liberou o pólo de demanda reprimida que foi responsável pela enxurrada de 100 vezes mais obras musicais lançadas na internet, empurrando a curva do valor dos objetos musicais ao chão. A crise anunciada, portanto, não é da economia do setor:

“a queda na taxa de lucro unitário do objeto musical teria por origem a super concorrência. O atual mercado simplesmente não fornece níveis de optimal prices para o lucro das majors, considerando que existem novos consumidores ouvindo novos artistas independentes (…) Teses que, ao serem aplicadas, derrubam argumentos de que a pirataria teria levado a indústria fonográfica a quase falência, sendo outras as razões da quebra (…) em especial, o excedente de produção musical que não encontra o consumidor.” (Revista Lugar Comum 43, A popularização dos meios de produção e difusão da música, e crise na indústria fonográfica. Revolução do precariado musical e contrarrevolução)

Com a forte retomada do controle das majors sobre o mercado, que representam os acordos com os serviços de streaming (serviço de música online) em oposição ao P2P (que permite o download da obra e relação direta entre artistas e usuários), o que ocorre agora é que os valores dos objetos musicais continuam baixos, mas os atravessadores (majors) assumiram novamente o controle através de acordos (judiciais e extra-judiciais), ameaças, mentiras, e contratos secretos, se colocando entre usuários, artistas e APPs. Na atualidade, são pagos centavos aos artistas mais executados e nada aos demais. Ainda que exista cada vez mais dinheiro circulando no setor musical, comprova-se a ampliação dos problemas sociais e de renda.

O mundo do trabalho global foi profundamente afetado, e isso precisa ser analisado, pois a música pode antecipar a sociedade com afirma Jacques Attali. Para que seja possível qualquer orientação aos envolvidos nos setores, será necessário colocar de lado as estratégias individuais, para antes nos aprofundarmos nas origens do conflito, podendo, com isso, ter maior entendimento dos efeitos e tendências decorrentes dessas transformações.

*Manoel Neto estará no Cultura e Mercado dias 27 e 28 de agosto, para o curso Carreira Musical – Sobrevivendo de música na era digital. Clique aqui para ver o programa e se inscrever. 

Manoel J. De Souza Neto

Pesquisador, escritor e agitador cultural. Diretor do Musin - Museu do Som Independente. Membro do Conselho Nacional de Políticas Culturais/MINC (2010/12). Facebook: www.facebook.com/manoel.j.de.souza.neto

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