PONTOS DE VISTA

Remuneração do Captador de Recursos e o Novo Código de Ética da ABCR

Eu trabalho como captadora de recursos há 15 anos. Nesse período, atuei junto a organizações de diversas causas e segmentos, como CLT de cargo júnior à diretoria, bem como em consultorias pontuais e contratos de longo prazo. Em todo esse percurso, eu trabalhei por um brevíssimo tempo dependendo exclusivamente de remuneração percentual, e foi o período mais desafiador da minha carreira. Ainda assim, defendo firmemente que esse modelo seja parte do novo Código de Ética e Conduta da ABCR. E escrevi esse texto para explicar o porquê.

A Necessidade de Regulamentação pela ABCR

Vou começar pela conclusão: sendo a ABCR a única associação de captadores de recursos do Brasil, cabe somente a ela promover a regularização e monitoramento da atuação dos profissionais por esse (ou qualquer outro) modelo de remuneração. E para ser capaz de fazer isso, a ABCR precisa admitir que a prática já existe como parte da cultura e da legislação brasileiras e promover a inclusão, orientação e educação de tais relações de trabalho, ao invés de afastar e marginalizar os profissionais que assim atuam.

Há mais de 30 anos temos leis de incentivo no Brasil que são utilizadas, majoritariamente, por Organizações da Sociedade Civil. Atualmente, as leis federais de incentivo desse tipo alcançam segmentos ou causas ligados a pesquisa, diagnóstico e tratamentos oncológico, saúde e inclusão das pessoas com deficiência, esporte educativo, social e de preparo de atletas, artes e cultura, desenvolvimento de territórios por meio da economia criativa, de defesa de direitos e cuidado, pelas mais diversas formas, das crianças, adolescentes e idosos e, mais recentemente, a causa ambiental.

Em 2024, foram destinados a esses programas, segundo a Lei de Diretrizes Orçamentárias para o ano, cerca de R$4,5 Bilhões. Dados divulgados pelos órgãos responsáveis indicam que a captação total nesses programas se aproximou da marca dos R$5 Bilhões.

Das leis de incentivo citadas, somente a Lei Rouanet permite que pessoas jurídicas com fins lucrativos usem dos incentivos. No entanto, hoje o SALIC – Sistema de Apoio a Lei de Incentivo à Cultura, registra 11.828 ¹ organizações sem fins lucrativos como proponentes. Na série histórica da lei no mesmo sistema, podemos verificar que quase 60% dos recursos captados desde que se há registro, foram destinados para organizações sem fins lucrativos. Percentual que aumenta razoavelmente em um recorte dos últimos dez anos, após a criação de mecanismos que ampliaram os limites orçamentários para planos anuais e plurianuais das OSCs.

Histórico e Reconhecimento da Profissão

Cada uma dessas leis de incentivo tem uma normativa que define remuneração percentual sobre a captação de recursos, com limites rígidos não apenas percentuais, mas também financeiros. Inclusive, a captação de recursos como profissão é reconhecida nessas normativas muitos anos antes de ser reconhecida pelo Ministério do Trabalho (conquista essa, vale dizer, da ABCR).

Portanto, estamos falando de décadas de construção de uma cultura, no Brasil, que prevê em leis, decretos, portarias e instruções normativas, uma remuneração percentual com base no sucesso da captação.  Ao longo desses anos, milhares de organizações usaram desses incentivos e contrataram profissionais captadores de recursos, menos ou mais profissionais, com pouca ou muita experiência, com contratos transparentes ou sem contrato algum, de forma recorrente ou esporádica, em acordos menos ou mais justos, com carteira assinada ou não e, invariavelmente, sem que houvesse um código de conduta ou de ética, um guia de boas práticas, uma recomendação única, transversal às normas de cada incentivo fiscal, para que contratantes e contratados pudessem ter como referência.

O Papel da ABCR no Terceiro Setor

A ABCR sempre teve como objeto o captador de recursos das organizações do terceiro setor e, por consequência, o terceiro setor em si. No entanto, em 25 anos não havia demonstrado ainda um olhar mais cuidadoso para os profissionais de captação de recursos de um segmento que movimenta 30% de todo o investimento social no Brasil ². Eles foram deixados sem um farol.

E, ao sabor das correntezas, muitas práticas negativas se tornaram comuns, muitos aventureiros tentaram conquistar os mares, dificultando de forma intensa o trabalho dos profissionais de captação de recursos que agem de forma ética e estritamente legal. Porque sim, é possível e bastante comum que captadores contratados apenas com remuneração variável exerçam sua profissão de forma ética. Uma prática não impede a outra e a dualidade colocada por alguns textos publicados recentemente sobre o assunto é completamente injusta com eles.

Modelos de Remuneração no Terceiro Setor

Para muito além dos projetos de leis de incentivos, as ONGs no Brasil contratam profissionais de captação de recursos com remuneração fixa e variável ou somente variável em larga escala, inclusive aquelas que têm seus profissionais ou departamento de captação de recursos. Campanhas e planos por meio de telemarketing, face-to-face, geração de leads, doação online, entre outros, são contratados com base em alguma parte de remuneração variável, quando não apenas variável. Modelo este que tem sido exigido, em muitos casos, pelas próprias organizações, e que não se restringe a condição daquelas de menor orçamento.

A falta de olhar para esses captadores com contratos terceirizados me faz questionar: não são profissionais de captação de recursos aqueles que planejam uma campanha digital, que desenvolvem os roteiros e treinam as operadoras de telemarketing, que criam estratégias e gerenciam equipes de face-to-face?

Será que o que as instituições do Terceiro Setor realmente precisam é que todo e qualquer serviço de captação de recursos tenha como único modelo uma remuneração fixa pré-acordada, como está estipulado no atual código de ética da ABCR? Que qualquer acordo, independente das condições de ambas as partes, que não seja nesse modelo, esteja em desacordo com as diretrizes éticas da única associação que trata exclusivamente do tema da captação de recursos e de seus profissionais? Eu acredito que não.

A Proposta de Modernização e Inclusão

A ABCR está se colocando em defesa dos profissionais que atuam em diferentes etapas, funções e estratégias de captação de recursos, muitas vezes invisibilizados por uma forma ultrapassada de olhar para a profissão. A ABCR precisa ser a referência para todos que queiram trabalhar de forma honesta, ética e comprometida com as causas e organizações para as quais atua. Ao fazer isso, também atua em prol das organizações da sociedade civil, trazendo segurança e orientação.

As ações e anúncios recentes da Associação já demonstraram pelo menos três passos importantes nessa direção: i) está discutindo uma mudança de missão que traz o captador de recursos para o centro de sua atuação; ii) está buscando modernizar o código de ética e conduta da profissão a partir dos debates e demandas de seus associados e; iii) fez uma parceria com a Certificadora Social para certificar os profissionais de captação de recursos com três categorias diferentes: Captador de Recursos Qualificado, Captador de Recursos Experiente e Captador de Recursos Incentivados. Todos eles devem ser associados a ABCR e signatários de seu código de ética e conduta para manter sua certificação.

Com esse conjunto de medidas, pela primeira vez em sua história, a ABCR prevê um comitê de ética para o qual denúncias de práticas ilegais ou antiéticas podem ser enviadas e analisadas e podem levar um profissional a perder o seu Certificado de Captador de Recursos.

Valorização e Certificação Profissional

Ao trabalhar para que haja profissionais certificados no setor e comprometidos com um código de conduta, a ABCR age para valorizar o captador, dar segurança a organização contratante (independente do regime de contratação) e regular a atuação dos profissionais especializados, incentivando a profissionalização e busca por capacitação, ao mesmo tempo em que desmotiva aventureiros e profissionais com menor apreço pela ética e moral na profissão.

Proteção ao Ecossistema e Combate a Práticas Ilegais

Não me parece justo diminuir a importância desse movimento de evolução da profissão, reduzindo a complexidade das relações entre investidores sociais, indivíduos doadores, captadores de recursos e organizações da sociedade civil a um debate apenas sobre ter ou não remuneração variável. Insinuar, como tenho visto em artigos e discussões, que trabalhar com remuneração variável não pode ser ético é simplificar demais uma questão muito mais ampla.

A proposta do novo código (ainda em discussão, após receber sugestões) incentiva a contratação de profissionais com remuneração fixa. Defende, também, que sejam reconhecidos como captadores de recursos aqueles que atuam nas diversas estratégias e etapas da captação, reforçando a importância estratégica desses profissionais dentro da organização.

Precisamos reconhecer o que funciona para uma associação BRASILEIRA de captadores de recursos, adotando providências — por vezes inéditas — para regular nosso setor e proteger o ecossistema da captação de recursos no Terceiro Setor.

As últimas décadas, no Brasil, já mostraram que não é a remuneração variável que fragiliza a profissão, e sim as práticas extorsivas de empresas que trabalham para os investidores e cobram percentuais “de captação” das organizações.

Essa é uma prática contra a qual a ABCR vem lutando de forma firme, chegando a conquistar inclusões claras na legislação recente, classificando-a como vantagem financeira indevida e ilegal. Trata-se de mais uma ação em defesa dos profissionais de captação de recursos e das organizações, como todas as demais que a ABCR promove.

A Responsabilidade de Incluir e Regular

Há anos, captadores de recursos que trabalham, exclusivamente ou não, com remuneração variável, são associados da ABCR. Eles participam como palestrantes de sucesso nos festivais, lideram voluntariamente GTs e Núcleos, e são referência em suas regiões ou segmentos.

São profissionais que se dedicam à melhoria das condições da profissão e à quebra de estigmas sobre o trabalho do captador de recursos. Mesmo quando o Código de Ética da ABCR praticamente proíbe e exclui esses profissionais, a associação — em diferentes gestões nos últimos 25 anos — sempre contou com a colaboração deles.

Seria irresponsável (além de hipócrita) continuar ignorando as práticas de mercado quando a ABCR é a única associação que pode regulá-las, elevando padrões éticos e atuando junto à sociedade civil, órgãos de governo e investidores sociais, para que o captador de recursos seja reconhecido e valorizado em toda a complexidade da sua atuação.

Olhando para o Futuro da Profissão

É importante lembrar que a questão da inclusão de outros modelos de remuneração é apenas um de muitos avanços que o novo código de ética proposto pela ABCR traz. Uma leitura atenta, comparando com o código anterior, vai demonstrar avanços em temas como princípios, direitos do captador e do doador, conflitos de interesse, medidas disciplinares, entre outros. Quem sabe, com essa mudança de rumo e um olhar mais atento e cuidadoso com o profissional por parte da ABCR, possamos alcançar os mesmos patamares de reconhecimento que os captadores de recursos têm em outros países, tão citados em comparações?

Eu não acredito que chegaremos lá se continuarmos dedicando tanta energia a excluir boa parte da nossa própria gente.

¹ Dados do SALIC Comparar em 10/08/2025.

² Segundo relatório BISC – Benchmarking do Investimento Social Corporativo 2023 – Comunitas.

Suellen Moreira

Suellen Moreira é Diretora de Desenvolvimento Institucional da Orquestra Ouro Preto, Vice-Presidente da Casa Nutri, Sócia-Diretora da Sociat Consultoria e Membro do Conselho Deliberativo da ABCR.

View Comments

  • Excelente reflexão sobre a história e pontos relevantes sobre quem é o captador de recursos no Brasil. ❤️

  • Excelente esclarecimento sobre a profissão. Ao longo dos anos vejo o quanto a área da cultura tem procurado se formalizar a fim de atender as necessidades das leis . Os profissionais das artes estando com suas atividades regulamentadas se fazem representados e protegidos. Parabéns 😍

Recent Posts

Observatório Fundação Itaú divulga resultados da 6ª edição da pesquisa Hábitos Culturais

O Observatório Fundação Itaú divulgou na última terça-feira (11) os resultados da 6ª edição da…

30 minutos ago

Secretaria de Cultura de São Paulo lança novos editais com recursos da PNAB

A Secretaria da Cultura, Economia e Indústrias Criativas do Estado de São Paulo Abriu inscrições…

6 horas ago

Edital de Chamamento Viagem Teatral, do SESI-SP, está com inscrições abertas

Estão abertas, até 15 de dezembro, as inscrições para o Edital de Chamamento 2026 –…

1 semana ago

Edital de Ocupação do Centro Cultural Banco da Amazônia recebe inscrições

O Banco da Amazônia está com inscrições abertas para o Programa de Ocupação do Centro…

1 semana ago

MUNCAB portfólios de artistas visuais negros

O Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (MUNCAB) está com chamada aberta e contínua para o…

1 semana ago

Concurso de Fotografia “Miradas al Patrimonio Cultural Inmaterial” recebe inscrições até 30 de novembro

Estão abertas, até 30 de novembro, as inscrições para o Concurso de Fotografia Miradas al…

1 semana ago