Para esse aparente paradoxo, Samira Margotto, diretora da Casa Porto em Vitória, tem uma explicação: “hoje a arte contemporânea rediscute conceitos de local, regional, nacional ”

Esta é a QUINTA entrevista da série realizada com curadores de importantes museus brasileiros, realizada por Cores Primárias (conheça aqui), site parceiro de site parceiro do 100canais, núcleo editorial do Cultura e Mercado. Nas semanas anteriores, publicamos a entrevista com o curador do MAM de São Paulo, Felipe Chaimovitch (leia aqui), com a curadora do MAM da Bahia, Solange Farkas (leia aqui), com Cristiana Tejo, que assumiu a curadoria do Mamam de Recife (leia aqui) e com Paulo Garcez, do Museu Paulista (leia aqui). Nesta semana trazemos os depoimentos de Samira Margotto, diretora da Casa Porto em Vitória que conta que o Salão do Mar ganhou projeção nacional ao fortalecer a cultura local.

Em Vitória, Espírito Santo, a Casa Porto das Artes Plásticas, antiga sede da Capitania dos Portos também carrega uma tradição histórica com a qual Samira Margotto procura estabelecer vínculos sem deixar de olhar para as mudanças que se impõem. Diretora do museu desde 2005, Samira centra suas ações em reformas emergenciais e em políticas culturais que agreguem o público às atividades. Em 1999, foi criado o Salão do Mar, a atividade artística de maior visibilidade no Estado que passou,em 2005, a ter dimensão nacional. Essa modificação levanta a discussão de confronto e entendimento entre a produção artística regional e a nacional.

Cores Primárias – O prédio onde está instalada a Casa Porto das Artes Plásticas, antiga sede da Capitania dos Portos, é revestido de um valor simbólico altamente significativo para a cidade de Vitória. É ao mesmo tempo recente a sua transformação em espaço cultural (leia histórico aqui). Como lidar com a tradição e as novas práticas culturais?
Samira Margotto – A ocupação de edificações de valor histórico é uma forma de preservá-las da especulação imobiliária ou do abandono. É largamente adotada no Brasil e no mundo, e tem suas vantagens, dentre elas a de criar vínculos históricos e de identidade entre a cidade e o museu, mas há desvantagens também. No nosso caso específico, temos um grande espaço útil para ser remodelado. As possibilidades atuais de montagem permitem que o espaço ganhe configurações diversas para cada exposição. Por outro lado, isso gera um custo alto. O chamado cubo branco é mais prático para se trabalhar. As verbas destinadas à cultura estão, quase sempre, aquém do que é necessário, portanto é complicado para quem administra o espaço “transformá-lo” para cada exposição, se não tiver um orçamento que permita isso.

CP – O acervo da Casa Porto é ainda pequeno e está em formação. Você diria que a natureza da Casa Porto está mais para museu ou para centro cultural com oficinas disponíveis à população? É possível haver uma combinação entre esses dois formatos?
SM – Em relação ao acervo, a Casa Porto convidou uma equipe externa que está, no momento, catalogando todas as obras pertencentes à Prefeitura de Vitória. Quando esse trabalho estiver terminado, iniciaremos uma fase de análise para podermos adotar uma linha curatorial mais precisa, que possa nos ajudar a definir o corte que nos interessa na produção artística contemporânea. Temos que saber com precisão o que temos e o que queremos deixar como legado para o futuro.

O trabalho que desenvolvemos com a comunidade é resultado de um convênio com o Ministério da Cultura. Oferecemos cursos de técnicas artísticas aplicadas ao design, com a utilização de materiais recicláveis comuns no Estado, tais como mármore e granito, sobras de cerâmica, tecidos etc. O que está sendo bom neste projeto é que juntamos o poder público, a iniciativa privada e a comunidade. E conseguimos participar da chamada “cultura local”, auxiliando o fomento do artesanato, em uma troca entre os saberes tradicionais das pessoas e o saber técnico que um museu pode proporcionar.

Devido ao alto custo de manutenção de um espaço cultural, é importante, no caso dos que são mantidos pelo poder público, que o maior número possível de pessoas possa ser beneficiado com a sua existência.
Conforme analisou Andrew McClellan, no livro A brief history of the art museum public, com a Revolução Industrial e a explosão da população urbana, tornaram-se necessários um novo controle social e uma educação sistemática. Tinha-se a esperança, na época, de que os museus contribuiriam para o refinamento moral e intelectual de todas as classes sociais, com uma formação com princípios comuns de gosto. De certa forma, essa maneira de pensar persiste.

CP – Como você recebeu o acervo ao assumir o cargo por indicação da Secretária de Cultura do Município, em 2005, e quais seriam as políticas futuras para a sua ampliação. Há uma diretriz para a formação desse acervo?
SM – Fui selecionada para o cargo por uma análise meramente técnica. Ao assumir o cargo tive vários encontros felizes, como foi o caso da Secretária de Cultura de Vitória, Maria Helena Signorelli. Ela é culta e respeita imensamente a opinião da equipe técnica. As administrações anteriores fizeram muito pela Casa Porto; entretanto, como ela é recente, ficou faltando ainda fazer muito mais. Então, desde o primeiro momento, definimos com a Secretaria de Cultura que, em vez de utilizar o orçamento somente para exposições, teríamos um plano de trabalho que privilegiaria a execução de ações emergenciais, como a reforma/restauro do prédio, a catalogação do acervo, a criação de políticas de trabalho que permitam aproximar um público amplo, a aquisição de um imóvel anexo ao prédio para abrigar a reserva técnica e a nacionalização do Salão do Mar.

No momento, estamos fazendo a catalogação do acervo e solicitando ao Museu Nacional de Belas Artes a cessão de uso gratuito do programa Donato. A utilização desse Programa de catalogação e gerenciamento de informações será fundamental para garantir um controle maior das obras do nosso acervo, bem como ampliar o acesso e a divulgação dos dados para pesquisadores e a comunidade em geral. O professor Alexandre Emerick, da Universidade Federal do Espírito Santo, está coordenando a equipe desse projeto de catalogação.

CP – Um acervo precisa ser revisto, repensado. Como vocês pensam em revitalizar esse acervo, através de mostras, pesquisas?
SM – Sim, mostras e pesquisas. Após a catalogação, será possível traçar metas e propor a longo prazo ciclos de exposições, de palestras, de cursos, em torno do acervo.

CP – As primeiras mostras na Casa Porto tiveram como temas questões alusivas à história da cidade e às especificidades locais. Mas logo, a instituição definiu-se como referência da produção contemporânea na cidade. Como foi esse processo?
SM – É importante destacar que foi fundamental a criação do Salão do Mar, no final de 1999, ano em que a Casa Porto começou suas atividades. O Salão do Mar é a única mostra competitiva de artes plásticas do ES, e é fundamental para os artistas locais, sobretudo os mais jovens. Isto porque os salões de arte funcionam como incentivo à produção emergente de artes plásticas. Na última edição, fizemos também uma mesa-redonda com o objetivo de pensar soluções para adequar o formato do salão à realidade contemporânea. No Brasil, os salões continuam sendo uma alternativa para impulsionar a carreira de um jovem artista. Neste encontro, procuramos reunir debatedores com focos diversos: os que produzem, os que estudam, os que trabalham e os que intermediam a produção artística. Os participantes abordaram questões como: Quais são os motivos que continuam justificando a existência dos salões? Que tipo de premiação poderia contemplar o reconhecimento do valor de uma jovem carreira artística?

CP – O Salão do Mar é tido como o evento de maior significação para a comunidade artística. O que representou para os artistas da cidade esse evento?
SM – Recebemos um número expressivo de visitantes, aproximadamente 10 vezes superior à edição anterior mais visitada. Foi uma oportunidade também para os artistas locais entrarem em contato direto com colegas de outros Estados.

CP – No último Salão do Mar (7ª edição), foi alterado o regulamento para permitir a inscrição não só de artistas locais, mas também de todo o Brasil. Não é uma atitude polêmica?
SM – Pelo contrário. Conforme enfatizei, foi muito importante para os artistas locais o convívio com artistas de outras regiões do Brasil. Creio que a nacionalização foi bem recebida, pois os artistas entenderam que a produção do Estado precisa deste confronto, desta diversidade.
Atualmente, por mais que não pareça, é cada vez mais difícil circunscrever o que é “regional” em termos de arte contemporânea. As novas linguagens repensam, inclusive, as especificidades das várias culturas visuais em termos universais.

CP – O fato do Salão do Mar ter atingido dimensão nacional com a constante troca entre artistas brasileiros contradiz a idéia de que o museu local deva fortalecer a cultura local?
SM – Mas ela se fortaleceu. Até porque “local”, “regional”, “nacional”, “universal” são questões que a arte contemporânea revê o tempo todo em seus procedimentos. E as nossas relações com o Ministério da Cultura, por outro lado, levam à Casa Porto um público diversificado. Claro que muito deve ser feito, precisamos traçar metas mais específicas para que ela funcione como um pólo de difusão em todos os sentidos. Este, aliás, é um dos desafios de todos os museus e centros culturais do Brasil, serem pólos locais sem se tornarem sectários; serem pólos universais, sem fechar os olhos para as manifestações da comunidade.

CP – Nessa mesma edição, a escolha do júri de seleção e premiação, composto entre outros por José Cirillo, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, também contemplou nomes de circulação nacional como o de Agnaldo Farias, Fernando Cocchiarale e Daria Jaremtchuk. Como essa idéia foi recebida pelos grupos locais?
SM -A participação de nomes de circulação nacional no Júri do Salão é uma prática que foi adotada desde a primeira edição, com a participação, dentre outros, de Maurício Salgueiro, escultor capixaba residente no Rio de Janeiro; Paulo Schimidt, escultor e curador do Itaú Cultural de Minas Gerais; e Maria Amélia Bulhões, crítica e historiadora da arte do Rio Grande do Sul. A comissão da quarta edição foi composta por Marília Panitz, professora da Universidade de Brasília e curadora independente de Brasília (DF), Paulo Reis, professor da Universidade Federal do Paraná e curador independente de Curitiba, Regina Melim, professora da Universidade Estadual de Santa Catarina e curadora independente de Florianópolis (Santa Catarina), dentre outros. A grande inovação foi mesmo a nacionalização, pensada de comum acordo com a Secretaria de Cultura.

CP – No seu livro Cousas Nossas: pinturas de paisagem no Espírito Santo, 1930-1960 (Vitória:Ufes, 2004) sobre a formação da imagem de Vitória e do Espírito Santo por meio da pintura de paisagem, você ressalta o que há de ideológico nessas construções identitárias. Fale um pouco sobre esse seu trabalho.
SM – O livro é o resultado da minha dissertação de mestrado em História da Arte na USP. Este conhecimento da arte do ES provavelmente pesou na minha escolha para a Casa Porto. Mas a postura acadêmica, a postura do pesquisador, é muito diferente da postura do coordenador de um espaço cultural, que precisa, antes de tudo, ouvir seus pares, dar espaço para outras interpretações que não as suas. Uma exposição, apesar de ter um eixo curatorial, é sempre uma obra aberta, permite interpretações, pois as obras estão ali, provocando o espectador. Um livro constrói o argumento de forma mais unilateral, conduz mais o seu leitor, apesar de ainda assim permitir outras interpretações. Posso dizer que aprendo muito com as opiniões divergentes, com as várias construções identitárias que o museu abriga, apesar de reconhecer a força ideológica que muitas imagens assumem na busca por uma identidade unívoca.

CP – A nacionalização do Salão do Mar vem tentar repensar essas construções?
SM -Talvez o incentivo ao confronto das várias construções identitárias, dos vários Estados do Brasil, venha exatamente como antídoto à fixação de uma imagem como mais significativa ou mais verdadeira. Atualmente, podemos dizer que a “imagem” de Vitória não é mais apenas sua “paisagem”, felizmente…

CP – Quando será o 8º Salão do Mar? Quais serão as novidades?
SM – O regulamento será publicado no final de novembro deste ano e a abertura para o público deverá ocorrer na última semana de abril ou no começo do mês de maio do ano que vem. A Comissão Organizadora será definida em julho, e a equipe decidirá o formato da mostra. Como disse, o Salão é uma obra em construção, uma obra conjunta que envolve vários autores. Como coordenadora, posso vislumbrar o que acontecerá, mas há sempre surpresas…

(*) Margarida Nepomuceno é editora do site de jornalismo especializado em história das Artes Visuais, Cores Primárias, cooperador do 100canais.

Margarida Nepomuceno*


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