Categories: PONTOS DE VISTA

Tambores do Brasil – Os Tigres da Abolição


“Quando chegou a hora da erupção, daquela cólera vingadora, toda a sociedade estremeceu, abalada, tomada de uma comoção entontecida. Nunca houve, no Brasil, uma voz que soasse tão alto, que ferisse tão fundo, que derramasse em torno de uma tão larga torrente de ódios, de sustos, de maldições, – e, ao mesmo tempo de esperanças e de bênçãos… E a raça negra viu aparecer o profeta esperado, o Messias anunciado nas eras, dentro de uma tempestade de raios e de flores, acendendo cóleras, pensando feridas, despedaçando grilhões, fulminando orgulhos, beijando cicatrizes, ateando a fogueira em que se havia de purificar o Brasil.”
(Olavo Bilac e José do Patrocínio).

Quando os primeiros tambores do Império Serrano soaram na Sapucaí, nesse domingo de carnaval em uma explosão de fascinante requinte humano capaz de produzir aquele manifesto tão vigoroso, tão intenso de alma, tão especialmente humano e, no dia seguinte, o “Tambor”, tema do Salgueiro, que levantou as arquibancadas do Brasil, mesmo antes de sua entrada na Sapucaí, pela força simbólica do enredo escolhido, lembrei-me das palavras de Mário de Andrade, de que a música é a ponte entre o homem e a magia, é a alquimia que nos entorpece, nos hipnotiza e nos redime. Quando vemos os maracatus pernambucanos, os blocos de afoxé da Bahia, os tambores dos blocos e das escolas de samba por todo o país, produzindo um magnetismo inexplicável, somos obrigados a buscar outro sentido para o carnaval no Brasil, o que foge da análise superficial de um gozo pequeno, proposto por um olhar menor. A história de luta vencida e cada vez mais certificada pelos tambores brasileiros, nos prova que há um caminho lúdico, carregado de uma intensa simbologia, dentro do nosso principal vetor, o tambor, que produz a magia da arte. Mais do que resistir, esse manifesto avança, como um tigre feroz, na defesa de almas, da liberdade contida em todos nós. Presos a algemaduras das mordaças das gargalheiras vira-mundo, dos instrumentos de suplício pertencentes ao comando que nos joga numa escravidão renitente.

Os tambores brasileiros são monumentos de sons erguidos, a arquitetura de almas expostas que nos devolve a esperança.

“Ninguém desanime, pois, de que o berço lhe não fosse generoso, ninguém se cria malfadado por lhe minguarem de nascença haveres e qualidades. Em tudo isso não há surpresas que se não possam esperar da tenacidade e santidade no trabalho”. (Rui Barbosa).

Se o cativeiro, o açoitamento, o tronco ainda impõem-se em nossas doutrinas sob o julgo da tortura, a pena que assina a nossa liberdade não está decididamente nos palácios de ouro, está sim outro manifesto dentro desse caos de perdidos sentidos que nos é imposto cotidianamente, onde reside tão somente a incultura. Cá entre tantos de nós, os tambores soam como sinos a nos convocar para a cerimônia em povoamento pleno em todo o universo que compõe o sentido da arte. Este que está naturalmente conosco.

“Estilo não se cria, nasce. Nasce por exigência do meio.
Ora, no meio incapaz dessa exigência, compete aos artistas provocá-la, criando o estado d’alma propício.
E que artista é capaz disso?
O anônimo, o artista legião – só ele.
Basta para isso incitá-lo a independência, ensiná-lo a olhar em torno de si e tirar da natureza circunjancente os assuntos das composições, o motivo dos ornatos, a matéria-prima, enfim, da sua arte.
Feita a semeadura, as mercês virão, com o tempo, fartas e consoladoras.” (Monteiro Lobato).

Esta orientação só nos é possível quando estamos no corajoso mergulho em nossas raízes, da guarda negra que nos dará sempre proteção do ambiente hostil e nos trará sempre as razões sentimentais do nosso sentido pleno, republicano de nos expressarmos e enxergarmos o resplendor do sol e alimentar a harmonia de nossas gargantas que nos jogarão num beijo as nuvens. A nossa inspiração se assemelha com o milagre.
A eterna luz vem da nossa imorredoura cor de bronze, a mesma que guarda os tambores que estão dentro de todos nós brasileiros.

“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos”. (Darcy Ribeiro).

Carlos Henrique Machado Freitas

Bandolinista, compositor e pesquisador.

View Comments

  • Eu acredito que vá além de Olavo Bilac...
    Embora o poeta seja abolicionista, e assim uniu-se a José do Patrocínio, deslumbrou-se com a capital francesa, local que visitou inúmeras vezes, e foi influenciado por seus poetas. Apreciava o rigor pela forma, buscava a palavra perfeita, a poesia seria um trabalho do pensar ( no sentido mais elaborativo), do que do sentir... Por isso, digo que vá além de Bilac...
    Carlos Henrique serviu-se do autor para fazer um paralelo direto com Darcy Ribeiro: Somos feitos da mesma força negra que tanto lutou, rugiu pela liberdade quanto daqueles que o supliciaram.
    Nós, brasileiros, somos feitos das batidas dos tambores africanos, que carregamos em nossos peitos e naquela noite de carnaval soou por toda a Sapucaí e arrancou de todos um grito: Campeão!
    Campeão não só por beleza estética ou harmônica (sentido elaborativo), mas por representar tudo o que somos: A força, emaranhados de sensações, sentimentos e lembranças latentes de nossos ancentrais ( diz-se aqui algo guiado muito mais pelo sentimento).

    Parabéns pelo texto!

  • Que nada Maria Alice!
    Não tenho a menor ligação com os pardais de Bilac. Na realidade, o Brasil tem grandes pensadores que prefiro nem citar aqui para não cometer injustiça. É provável que, pela minha formação familiar, a minha afinidade de pensamento esteja ligada a tudo o que se relaciona com Monteiro Lobato, seja na literatura infantil, principalmente os personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo, seja nas suas crônicas no Idéias de Jeca Tatu e Cidades Mortas. A sua visão empreendedora, revolucionária tanto no aspecto do ensino quanto no formato ainda hoje inovadora na questão da distribuição. Mas em toda a sua obra existe, a meu ver, a síntese de todo o seu olhar, e alí, ele, de forma cabal, nos apresenta toda a sordidez, todo o jogo pesado da artilharia jogada nas questões da soberania nacional no seu livro "O Escândalo do Petróleo e Ferro".

    Como já disse aqui, é provável que, por eu ser de Volta Redonda e, portanto, do mesmo Vale do Paraíba como Lobato que esses assuntos estratégicos de país que desde criança aprendemos por aqui, que o primeiro assunto, a cultura, me prenda tanto a Lobato. Me divirto com as engraçadas críticas, atualíssimas por sinal, do caípira Mazarope (Jeca Tatu) que representa tão bem a galhofa em cima do nosso imortal provincianismo urbano dos grandes centros do Brasil. E logicamente mostra, pela popularidade cada vez maior de Lobato, que suas críticas são profundas. Isso nada tem a ver com o modismo mediano do seu livro, "O Presidente Negro".

Recent Posts

Consulta pública sobre o PAAR de São Paulo está aberta até 23 de maio

A Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo abriu uma…

6 dias ago

Site do Iphan orienta sobre uso da PNAB para o Patrimônio Cultural

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) lançou a página Aldir Blanc Patrimônio,…

7 dias ago

Seleção TV Brasil receberá inscrições até 5 de maio

Estão abertas, até 5 de maio, as inscrições para a Seleção TV Brasil. A iniciativa…

7 dias ago

Edital Transformando Energia em Cultura recebe inscrições até 30 de abril

Estão abertas, até 30 de abril, as inscrições para o edital edital Transformando Energia em Cultura,…

2 semanas ago

Congresso corta 85% dos recursos da PNAB na LDO 2025. MinC garante que recursos serão repassados integralmente.

Na noite de ontem (20), em votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) no Congresso…

2 semanas ago

Funarte Brasil Conexões Internacionais 2025 recebe inscrições

A Fundação Nacional de Artes - Funarte está com inscrições abertas para duas chamadas do…

3 semanas ago