Aos poucos o tempo vai colocando quase tudo e todos em seus devidos lugares, responde perguntas e desfaz alguns nós da história. No entanto, há mais de meio século, a eficiente sedimentação histórica não consegue dar conta da assimilação da arte contemporânea por diversos segmentos da sociedade.
O que poderia fundamentar essa realidade se, afinal, não foi a arte contemporânea a responsável pelo desfecho radical do rompimento da representação, soberana por seis séculos de arte figurativa, já que as vanguardas européias e russas o fizeram? Também não foi a arte contemporânea que ousou ao romper com a ditadura do belo, arraigada à arte desde as culturas helênicas, visto que este trunfo também foi formalizado pelos epígonos modernistas?
O fato é que a busca pelo entendimento desse fenômeno, a dificuldade de diálogo entre a arte contemporânea e o público é múltipla de meias verdades, equívocos e contradições, sendo ao mesmo tempo antiga e atual, alimentando embates intrínsecos à sua subjetividade.
Sem preocupação de ser didática ou de buscar possíveis causas e efeitos para essa frustrante dificuldade de comunicação, o que me parece ser essencial é a compreensão de que a arte, antes de tudo, é uma área do conhecimento que se encontra no mesmo patamar dos conhecimentos científico, teológico e filosófico. Cada forma de pensar, questionar, apreender e expressar o mundo, representada por esses diferentes pólos do saber, possui uma lógica e uma metodologia próprias, e, por mais que essas áreas evoquem objetos comuns em suas abordagens, circundam-nos sob óticas distintas, obtendo respostas e visões de mundo díspares. No entanto, podemos dizer que esses estatutos do saber têm uma interseção fundamental: refletem o próprio tempo pelos caminhos da humanidade.
Kandinsky, entre outros artistas e teóricos da arte, sintetizou essa idéia em uma citação célebre, quando disse ser “a arte é filha do seu tempo e, muitas vezes, a mãe dos nossos sentimentos”. Evoco ainda outra citação, mais atual e local, afinada com esse pensamento, de Alair Gomes, artista e fotógrafo carioca, que afirmava ser a arte “espelho e antena”, concomitantemente refletindo seu tempo e espaço, captando antecipadamente novas frequências e antevendo mudanças. Basta puxar o fio da história para pescar vários exemplos que relatam conflitos e incompreensões advindos da falta de assimilação e de compreensão da arte por pessoas da mesma geração.
Não é novidade que a arte contemporânea frequentemente elucida manifestações céticas e críticas de toda ordem, cumprindo seu destino atávico. Assim sendo, instigada de maneira inevitável pela alta temperatura das palavras transcritas no jornal O Globo, em entrevista publicada dia 27/12/2008, com o escritor e crítico Affonso Romano de Sant’Anna, faço aqui algumas considerações.
Há mais de dez anos, em artigos, palestras e, agora, em livro lançado recentemente, O enigma vazio: impasses da arte e da crítica, o autor vem causando celeuma ao provocar, de maneira cáustica, momentos e integrantes da arte contemporânea, como se, ironicamente, bebesse na fonte do próprio movimento Dadá, absorvendo-lhe toda a acidez polêmica, alvo de muitas de suas provocativas críticas. Nas declarações publicadas na referida entrevista, ele cita a arte contemporânea como “um equívoco”. Também diz que inúmeros artistas contemporâneos produzem “falácias retóricas” e evoca Cy Twombly, Lucio Fontana, Joseph Kosuth, John Cage, entre outros, como quem diz “tolices como pretensa sabedoria”. Duchamp, naturalmente, vai para o olho do furacão, qualificado pelo autor como “cínico e estrategista”, “precursor do equívoco”. Atinge também o meio de arte, enfocando artistas e críticos como promíscuos, por uma pretensa falta de idoneidade e isenção profissional. Não poupou nem mesmo os museus, tratando-os como “neutralizadores das transgressões” da arte.
Tudo bem que o fato de Sant’Anna estar à vontade em seu tom pretensioso revela sua segurança apoiada em um conhecimento formal da arte, mas não disfarça um grande preconceito, sempre tangenciando o conservadorismo, que sugere uma visão extremamente unilateral.
Ao falar de Duchamp citando biógrafos como Tomkins, Housez e Clair, pergunto-me se o autor compartilhou a densidade indispensável de Hans Richter, artista, ideólogo e historiador do movimento Dadá, fundamental para conhecer Duchamp e imergir na atmosfera da época. Será que teve contato com o texto base da arte conceitual, intitulado “Arte depois da filosofia” (1973), ou ainda “Arte depois da filosofia e depois” (1993), ambos de Joseph Kosuth? Esses escritos são “peças de resistência” para o acesso ao estudo da arte conceitual e delimitam a ampliação do estado da arte para o saber filosófico, deslocando funções e objetos das diversas áreas do conhecimento por meio de uma intersemioticidade entre os saberes, código intrínseco da pós-modernidade, para abrir o espectro da arte enquanto filosofia através da imagem e o da filosofia como arte através das construções ideárias das palavras. Enfim, outros textos e autores poderiam ter contribuído para a ampliação dos ângulos de uma visão que me soa unilateral e circunscrita.
Já que falamos em equívocos, percebo que estes vêm muito mais daqueles que esperam da arte de hoje o que podem ser derivativos, mas não são sua essência, e que não cabe a ela oferecer, como diletantismo, entretenimento, engajamento, beleza, dinheiro, poder.
De fato, não me sentiria estimulada a escrever em decorrência dessas citações, que são inócuas para mim; porém, aqui escrevo apenas para falar um pouco de arte, da arte “do depois do agora”, parodiando Herbert Read que citou a arte moderna como a “arte do agora, agora”. Falamos de uma arte que não mais se importa com a busca do novo, uma arte cujos suportes, técnicas, ações, nações, culturas, tecnologias, vida e ideia, se encontram para criar mundos, objetos, imagens, sob o signo da liberdade criativa conquistada, em muito, pelas corajosas radicalizações modernas.
Em um texto antológico de Lygia Clark, “O vazio-pleno” (1959), a arte é citada como “a vivência do sentir”. Logo me lembro de Fernando Pessoa, que escreveu “tudo que em mim sente está pensando”, e remeto à autonomia e à abertura da arte interagindo com as novas tecnologias que potencializaram um apogeu em liberdade, amplificando, mais ainda, novas possibilidades de experiências sensoriais. Ou seja, todas as ações dos sentidos: olhar, ouvir, cheirar, tocar e degustar, e ainda o pensar, que, como um sexto sentido, dá sentido aos outros e cria a tecnologia, como instrumento acelerador do pensar e do fazer. De fato, é difícil acompanhar essa velocidade, ainda mais quando tudo pode ser convocado pela arte contemporânea para comunicar.
Só para citar alguns universos da imagem muito além do fim em si mesma, podemos captá-la como mero registro de ações ou ideias, um momento de potência poética – contundente ou amena –, como vivência do belo ou experiência da “estética do feio”, como diria Joseph Beuys, ou mesmo como uma célula dispersa no cotidiano? Para finalizar, poderia me juntar aos que dizem que a arte segue seu curso como um rio heraclitiano, que nunca se repete, cuja correnteza não permite a estagnação. E, mais que o rio que não para, a arte é imortal, como o tempo ou a vida, que jamais voltam.
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Kátia!
Sublinhar essa vaga ideia de "Vanguarda" em defesa de um claro afago a ditadura estética imposta pela classe dominante, é rabiscar o céu com um spray que pode, no máximo, virar laquê de penteados e coques das matriarcas de uma certa civilização.
Subjugar todo o histórico contexto social para nos ajoelharmos num plano laboratorial de cruzamentos de dados, é negar o próprio espelho numa aventura, comprovamente, infértil ainda mais sendo vista como base de política pública de cultura. Essa rasteira tem custado muito caro ao ambiente artístico no Brasil, sem falar, lógico, que pelo seu resultado especifico, é um retumbante pedregulho na botina do pensamento acadêmico, que acaba trasnformando pit stop em estacionamento rumo ao depósito, esperando uma nova onda de valorização de antiquários para aproveitarmos a alta de um ambiente de oráculo e nos afortunar de preceitos bíblicos de pensamento de gueto.
Em cultura não existe minoria, existe um todo de dinâmica humana. Não há tempo futuro e nem passado, há o agora. Qualquer especulação pedagógica que não esteja calcada num mínimo de realidade contemporânea em todos os campos da atividade humana, é um festejo, com confestes e serpentinas, em condomínios fechados onde só entram os devidamente e socialmente credenciados. Convenhamos, nunca se associou vanguarda à sociedades pobres ou miseráveis. Esse gesso só pode ser assinado por gente da patota.
Não acho que Sant'Ana tenha sido agressivo, ele foi reativo a um mercado nítido de charlatanismo que está, infelizmente, sempre acompanhado de um belíssimo sobrenome para comprovar que o produto ou crédito tem pedigree.
Kátia, muito bem-vinda! Será ótimo contar com suas opiniões, sempre contundentes e embasadas, para gerar debates e motivar a expressão de outros pontos de vista. Bjs, Cainha
Ana Carla e Carlos Henrique,
Amiga e colegas, valeu a interação!
Trocar idéias com pessoas como vocês, com tanto a dizer em vertentes múltiplas, será uma experiência muito enriquecedora.
Kátia