A segunda matéria do especial sobre TV Digital revela como esse sistema pode abrir o cenário da mídia para novos agentes culturais e sociais

Cerca de 90% da população brasileira possui um televisor em casa, o que representa entre 60 e 70 milhões de aparelhos em funcionamento. E cerca de 150 milhões de brasileiros não têm acesso a outro veículo de comunicação que não seja a televisão. A TV no Brasil influi enormemente na opinião pública, lança modas e tendências e permanece como o maior canal de contato do brasileiro com a cultura e o lazer. Mas o que vem sendo feito desse canal? O conteúdo da nossa televisão satisfaz realmente as necessidades da população e transparece a imensa riqueza e diversidade cultural existentes no país? Todos os segmentos sociais estão (bem) representados na TV? As informações que chegam aos lares dos brasileiros são transparentes e imparciais ou seguem os interesses de quem tem o poder de produzir o conteúdo?

As respostas para essas questões poderão ficar mais evidentes com a implantação da TV Digital, que possibilita uma verdadeira revolução nas comunicações do Brasil.

Resumindo e simplificando a questão tecnológica que permite que isso ocorra: os aparelhos receptores que terão que ser acoplados às tvs para que elas transmitam digitalmente possuem uma capacidade de armazenamento local, que faz com que eles operem de modo semelhante a um computador. Com isso, aplicativos podem ser adicionados ao conteúdo da programação e o setor de telecomunicações pode convergir com a radiodifusão e a informática. A conseqüência é que o televisor deixa de ser um terminal passivo, passando a oferecer informações em outros formatos que não apenas áudio e video e a possibilidade de que o usuário interaja com o conteúdo.

O que vem se destacando é que o espectador poderá assistir a novela pelo celular,  votar no Big Brother pela tela da TV ou acessar informações sobre seu jogador favorito durante a transmissão de uma partida de futebol. Segundo a Prof. Regina Mota, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), “a própria imprensa não conseguiu dar o tom, quase sempre noticiando exclusivamente a pendenga dos padrões. As televisões não têm noticiado nem colocado o debate para que o público possa entender o que isso tem a ver com a sua vida, para além da opacidade das caixas pretas da tecnologia.”

A interatividade que a TV Digital possibilita e que pode alterar o cotidiano de muitos brasileiros é de outra ordem. Ela poderá, por exemplo, servir de trampolim para a desejada inclusão digital, pois no limite, permitiria que todo cidadão com um televisor em casa pudesse ter uma conta de email e acesso à Internet (que atualmente, é desfrutado por apenas 8,6% da população).

O brasileiro também poderá desfrutar futuramente de serviços governamentais, como pagamento de taxas, consulta de dados do Imposto de Renda, acesso ao extrato do Fundo de Garantia e até mesmo votação. As possibilidades são múltiplas, mas Gustavo Gindre, do coletivo Intervozes, observa: “Aqui cabe definir se esta interatividade será usada, por um lado, para que se compre o vestido da mocinha da novela e se escolha quem vai para o paredão ou, de outro lado, para a prestação de novos serviços como, por exemplo, a introdução de um tele-jornal interativo”.

Além da interatividade, o outro ponto fundamental é a abertura para a entrada de novos “atores” no atual cenário da midia concentrada em poucas empresas. A TV Digital  permite a inserção de até quatro novos canais no mesmo espaço onde hoje se transmite um único deles, a chamada mutiprogramação. O resultado seria que representantes da sociedade civil como ONGs e  movimentos coletivos poderiam ter seus próprios canais, tirando o monopólio atual da produção de conteúdo das mãos das emissoras comerciais e permitindo novas alternativas em informação e cultura. Os programas de educação à distância, por exemplo, seriam bastante beneficiados com a entrada de novos agentes no processo e com os recursos interativos. No entanto, a multiprogramação só é possível caso não se adote um modelo de alta definição.

Luiz Alberto César, Diretor-executivo da ABPI-TV (Associação Brasileira de Produtores Independentes de TV), explica que, para a produção audiovisual independente,  a multiprogramação “representará a possibilidade de um real mercado brasileiro,até então dominado pelas redes nacionais com a produção quase que totalmente verticalizada e monolítica,  mas é bom lembrar que se a multiprogramação não vier acompanhada de normatização, na prática, nada ou muito pouco, mudará.”

Ele lembra ainda que ” na eventualidade da TV Digital brasileira permitir a multiprogramação, portabilidade e canal de retorno permanente, estará aberto um leque incomensurável de possibilidades para o entretenimento, educação à distância, simpósios, conferências, aferição on line das preferências por programação e canais e sobretudo diversificação do olhar, com a real inserção de programação produzida por produtoras efetivamente independentes.”

Thiago Novaes, Coordenador Político do Departamento de Cultura Digital do Ministério da Cultura, afirma que “o maior benefício que a TV Digital pode proporcionar é permitir a circulação de mais conteúdos, produzidos local e regionalmente, quando hoje temos limitações claras de circulação no espectro e assistimos a uma produção centrada no eixo Rio-São Paulo, realizada pelas próprias emissoras. Com a TV Digital, novos atores poderão fazer parte da cadeia de valor da TV, e novos canais poderão surgir, além de novos serviços, digitais e interativos, pois a digitalização dos sinais analógicos otimiza muito o uso do espectro, bem público e finito, gerido pela União. Além disso, o país poderá investir na produção de conteúdos interativos, ainda incipientes no mundo digital, e com isso inovar num mercado crescente e importante.”

A Prof Regina tem visão semelhante: “Caso tenhamos um modelo descentralizado, que inclua novos players e atores sociais no negócio privado e público da TV Digital, o impacto pode ser importante sobretudo na diversidade da oferta de novos produtos. Mas se alternarmos a visão para uma outra midia que não a televisão como entendemos hoje, cheia de programinhas em horarios determinados, mas sim para um novo serviço múltiplo que amplia oportunidades e acesso a bens culturais de qualidade para toda a população e para as escolas, vamos ter pluralidade de produtores e de conteúdos e formação de novos agentes culturais em todo o país.”

Mas a adesão dos brasileiros à TV Digital não será imediata. Especula-se que o conversor que transformará o sinal analógico em digital deve custar entre R$100 e R$200, valor impraticável para a maioria da população. E esses aparelhos deverão ser produzidos em diferentes modalidades. Assim, o modelo mais simples (e mais barato) traria apenas a melhoria na imagem e som, e os modelos mais “sofisticados” é que possibilitariam a interatividade. Sem contar que a maior parte dos brasileiros não tem o conhecimento “tecnológico” necessário para lidar com a Internet, e que provavelmente terão dificuldades para aproveitar o sistema em toda sua amplitude.

Caso o governo decida pelo padrão de alta definição, a possibilidade de a sociedade brasileira ter a multiprogramação será esgotada? Gindre explica: “Em tese, a escolha dos padrões tecnológicos a serem adotados na TV Digital teria impacto apenas nas questões relacionadas à política industrial e ao desenvolvimento científico e tecnológico (que, por si só, já são muito importantes). Todas as demais questões ficariam pendentes de posterior regulação. O risco, contudo, é a criação de situações de fato consumado, como foi feito no caso do rádio digital. O governo define os padrões e permite o início das operações de teste. As emissoras recebem mais um canal inteiro de 6 Mhz para transmitirem em digital. E pronto! Todo o espaço do VHF e do UHF será ocupado pelas atuais transmissões analógicas e pelas futuras transmissões digitais das mesmas empresas. Ninguém mais entra e elas poderão fazer o que quiserem neste espaço. Esperamos que a justiça não permita que o governo e o empresariado criem situações de fato consumado à revelia da lei.”

André Fonseca


editor

1Comentário

  • marcia de carvalho, 23 de fevereiro de 2006 @ 14:42 Reply

    Excelente matéria, muito esclarecedora.
    Parabéns!

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