Categories: PONTOS DE VISTA

Um minuto de silêncio pelas vítimas dos quase quatrocentos anos de escravidão brasileira


Segue o discurso de Joaquim Abílio Borges, abolicionista, orador por ocasião da visita do ilustre viajante africano John Augustus Otomba Payne, assim discursou na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, em sessão solene presidida pelo Imperador D. Pedro II em 1886.

Não podeis, senhores, fazer uma idéia exata das torturas e das misérias a que a brutal perversidade dos traficantes sujeitava suas pobres vítimas.

Não é dada a palavra, ainda a mais expressiva e eloqüente, reproduzi-las em sua horripilante realidade!

Não há cores bastante vivas e carregadas com que se fossem pintar os hediondos e inacreditáveis quadros, que apresentavam as desumanas cenas do tráfico negro, esse diabólico fruto da opressão do fraco pelo forte.

Senhores! Na história das misérias do mundo, poucas cenas confrangem tanto o coração como a da exportação da mercadoria humana; e o tempo, que, na frase sêneca é o túmulo de todas as coisas, não conseguiu ainda desbotar as lembranças desses horrores.

Amarrados ou presos a ferros, ligados uns aos outros, esperavam os míseros pretos a hora do embarque, hora em que por ventura iam deixar para todo o sempre as amadas terras da pátria.

Nem um raio de esperança lhes calava no peito descoroçoado.

Encerrados em massa em um porão infecto e abrasador; onde penetravam algumas réstias de luz pelas fendas das escotilhas, nus e alagados em suor, atolados nas próprias imundícies, famintos e sitibundos, alquebrados, comprimidos uns contra os outros, permaneciam aqueles desgraçados por dias e dias, até que chegassem ao ponto de seu destino.

Gritos de desespero, uivos de raiva, gemidos de dor, casavam-se ali com os delírios e as gargalhadas dos que enlouqueciam, os soluços dos que choravam o esterpor dos que agonizavam.

Que coro tétrico aquele que partia do lúgubre do antro!

Aos impropérios do negreiro seguiam-se o estalar dos açoites, que escreviam nas periferias daqueles corpos negros o poema de suas negras amarguras.

Nem as lágrimas que saltavam dos olhos esgazeados dos infelizes, nem o sangue que emanava daqueles corpos em chagas, nada movia o algoz tigre enraivecido sob a figura de homem!

A criatura humana sofria o que jamais sofreu!

E quando a pequena embarcação jogava, batida pelas águas em fúria, e acossava pelos ventos, quadro indescritível passava-se em seu bojo.

A cada guinada ou tombamento do navio, era aquela massa de corpos negros, como a escravidão em que jaziam, lançada violentamente de um lado a outro bordo, amontoando-se uns sobre os outros em horrível confusão!

No correr da travessia, não era raro ouvir-se o baque de alguma coisa pesada que caía no mar: era o cadáver de algum infeliz ou o corpo de algum agonizante, mercadoria avariada.

No dia da chegada, despejado o carregamento, mal tornados em si, olhos fitos no chão, só respirando mágoas, partia, cambaleando, a fúnebre procissão de múmias a refazer-se de forças em lugar apropriado, a fim de poderem começar a peregrinação pelo interior; até encontrarem compradores, sob cujo senhorio novo gênero de suplícios os esperava. O suplício do cativeiro.

Carlos Henrique Machado Freitas

Bandolinista, compositor e pesquisador.

View Comments

  • Que coisa!!!
    este relato acima, nos dâ claramente uma ídeia das ínumeras situações desumanas que o negro passou, sobreviveu, e ainda tem pessoas contra as cotas..
    Precisa-se , na verdade, é de se ter uma universidade SÓ para negros.
    sem cotas, somente para negros. e acabar com esta hipocrisia!!!
    País racista, sufocante, até os dias de hoje, e , sem sombra de dúvidas racista para sempre....
    Viva o povo negro, viva sua sabedoria, e valorizem-se negros deste país racista

  • Carlos Henrique: Esta descrição é tão forte que nos faz pensar em guerras. Não somente nas guerras bélicas, que mataram tantos no mundo inteiro, mas nas guerras das intolerâncias, que vivem nos guetos, nas vielas, nos morros, nas valas, nas faixas reservadas, nos acampamentos, nos "apartheids", enfim, no mundo afora.
    Parece cena atual, e que não foi e não é ficção. Nossa história é feita de muito sangue, como na África colonizada.
    Boa a reflexão para o momento.

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