Categories: PONTOS DE VISTA

Um olhar antropológico e cultural para o Belas Artes

Meu primeiro beijo na boca foi no Cine Iguatemi. Meu primeiro debate, na saída do cine Belas Artes ainda Gaumont Belas Artes, com amigos a caminho do café de mesmo nome virando na Paulista.

Ficávamos entre livros e revistas, conversando e fugindo do vento com garoa normal da cidade. Usávamos cachecóis e chapéus ou boinas. Carregávamos além de livros, inquietações, vontades e uma ânsia de fazer história. Artistas de primeira bagagem e pensadores sedentos de idade e conhecimento saíamos das sessões de fim de noite alguns dias atravessando pela galeria subterrânea e, dependendo do saldo financeiro, indo ao Riviera, ao Baguette ou desciamos ao lado oposto, indo ao Frevinho e algumas vezes até o Pirandello. As calçadas da Paulista com Consolação assistiam risos e frases de efeito e muita criatividade. Como vários jovens desde os anos 50, fomos criados assim, saindo de madrugada, na garoa, discutindo sonhos que criaram a consciência crítica, a ética e a postura inerente ao povo desta cidade.

Existe hoje o pensamento contemporâneo da história móvel, onde várias referências estabelecem o real conteúdo do momento ou fato histórico, não mais uma só escrita, um só olhar. Isso trouxe uma maneira diferente há pelo menos três décadas, de contar nossa vida. Filósofos e historiadores sociais no mundo vêm despertando pensares e atitudes vitais para nossa atualidade, para nossas sociedades. É fato que, uma construção de vida é fundamentada na memória (e no conhecimento), construindo um presente consciente e participativo para se alcançar a realização de um futuro possível e feliz.

Acredito que devamos lançar um olhar antropológico e cultural a esta situação do Belas Artes.

Qualquer que seja a definição adotada para a Antropologia é possível entende-la como uma forma de conhecimento sobre a diversidade cultural, ou seja, a busca de respostas para entendermos o que somos a partir do espelho fornecido pelo “Outro ou pelo externo”; uma maneira de se situar na fronteira de vários mundos sociais e culturais, abrindo janelas entre eles, através das quais possamos alargar nossas possibilidades de sentir, agir e refletir sobre o que nos faz ser seres humanos.

Para pensar nossas sociedades, a Antropologia preocupa-se em detalhar os seres humanos que as compõem e com elas se relacionam, seja nos seus aspectos físicos, na sua relação com a natureza (ou meio ambiente urbano no nosso caso), seja na sua especificidade cultural. Para o saber antropológico o conceito de cultura abarca diversas dimensões: o universo psíquico, os mitos, os costumes e rituais, suas histórias peculiares, a linguagem, valores, crenças, leis, relações de parentesco, e outros.

Hoje que respeitamos o traçado da Memória e entendemos a Historia de formação de nossa cidade, sua capacidade de renovação, emergência, superação e inquietude intelectual, abraçando pessoas vindas de todo país e estrangeiros de linguagem e dialetos distintos, não podemos nos aquietar e retirar o olhar antropológico do tema, deixando um ponto cultural de formação vivencial e formativa da personagem da paulistanidade ser retirado ou realocado.

O Cine Belas Artes, no endereço que o acomoda, além de local de encontro e ponto de referência pela importância de sua trajetória e filmografia exibida, é memória viva da cidade. É, não só a referência de um grupo, como o nosso, mas acompanhou a história de gerações de brasileiros, não apenas paulistanos. É um dos mais tradicionais cinemas da capital paulista e seu fechamento, ocasionaria uma perda real em valor histórico-cultural. Esquina de Cultura, é marco histórico do cinema brasileiro, carregando um traço antropológico da cidade. Este cinema marcou uma época nos apresentando o Cinema Novo, o Nouvelle Vague e o Neo Realismo Italiano, reuniu cinéfilos, proporcionou debates sobre Visconti, Fellini, Godard, Glauber, Eric Rohmer, Truffaut, fez projeções de filmes raros, festivais de cinema. Ponto de convergência de lazer, intelectualidade, vanguarda, política, projetava fitas emblemáticas e hoje clássicas. Nos tempos da ditadura, reuniu pessoas que lutavam contra o sistema da época. Pessoas de todas as idades tem se manifestado por sua preservação. Estamos acordados e de olhos abertos. Queremos preservar esta parte da nossa trajetória e permitir a conciliação do cinema de rua com a nova cidade que estamos construindo.

Anna Lucia Marcondes

Presidente da OSCIP VIA CULTURAL, é Bacharel LEA Plena em Artes Plásticas pela FAAP com especializações. Arte Educadora e Restauradora atua na área de Artes Visuais e Arte Multimeios desde o inicio da década de 80.

View Comments

Recent Posts

JLeiva lança pesquisa Cultura nas Capitais

A JLeiva Cultura & Esporte lança nesse mês a pesquisa inédita Cultura nas Capitais. O…

4 horas ago

MinC alcançou 100% de transparência ativa em avaliação da CGU

Fonte: Ministério da Cultura* O Ministério da Cultura atingiu 100% de transparência ativa de acordo…

23 horas ago

Ordem do Mérito Cultural recebe indicações até 10 de fevereiro

Até o dia 10 de fevereiro,  a sociedade terá a oportunidade de participar da escolha…

23 horas ago

Salic receberá novas propostas a partir de 06 de fevereiro

O Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic) estará aberto a partir…

1 dia ago

Edital do Sicoob UniCentro Br recebe inscrições até 14 de março

O Instituto Cultural Sicoob UniCentro Br está com inscrições abertas em seu edital de seleção…

5 dias ago

Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura (SC) recebe inscrições até 04 de fevereiro

Estão abertas, até 04 de fevereiro, as inscrições para o Edital Elisabete Anderle de Estímulo…

7 dias ago