No último sábado, 26/09, ocorreu a “Vilada Cultural”, um evento que buscou chamar a atenção da sociedade paulistana para a vida cultural que existe na Vila Itororó, uma vila centenária no coração da Bela Vista.
Este inédito e repentino desejo de intervenção da administração pública na Vila Itororó equipara-se ao futuro dizimando o presente. Que incontestavelmente se faz com gente. Mas, o que é gente? Se comparada aos anseios e empreendimentos dos que detém o poder. Pois é deles o todo certo! Assim sendo, há mais glamour em grandes feitos. Que embora não eternos, também resistem ao tempo. Gente é apenas gente, meras vidas que se ceifam, que hora ou outra também cessam. Não eternas como ideais ou diamantes. (Rener, morador da Vila Itororó)
Foi um dia inteiro de atividades, com apresentações do grupo de teatro Trupe do Trapo, com performances de integrantes do Teatro da Vertigem, intervenções e oficinas do Ponto de Cultura Bixigão, ligado ao Teatro Oficina, e dos grupos Parabelo, Mapa Xilográfico e (Em)pulso Coletivo. Além da exibição de vários filmes, alguns inclusive mostrando a história da Vila, e apresentações do grupo musical Meia Dúzia de Três ou Quatro, do compositor Daniel Mã, do sanfoneiro Thadeu Romano e da capoeira e roda de samba da Casa do mestre Ananias, Quilombolas de Luz e Zungu Capoeirado.
As atividades contaram com a participação efetiva dos moradores, que receberam com muita alegria todos os muitos visitantes – a Vila, devidamente enfeitada para a festa, esteve todo o tempo lotada, desde o início da tarde até o final da programação, já tarde da noite. A troca de vivências foi enorme entre os moradores e os visitantes: estudantes, artistas, arquitetos, professores, jornalistas e líderes de movimento de moradia.
A efusão, naquele espaço histórico, de todas as linguagens artísticas com as experiências dos habitantes deixava evidente a riqueza cultural do lugar. Uma certeza que trazia esperança quando se via que grande parte dos participantes das atividades, cantando, dançando, atuando, conversando, sorrindo e interagindo eram crianças. Muitas crianças, correndo e ocupando todo o espaço, e gritando ao final de cada espetáculo: “I-to-ro-ró’. Prova viva da continuidade da tradição cultural da Vila.
Um dos momentos mais fortes da Vilada foi a encenação da canção “Saudosa Maloca”, de Adoniram Barbosa. A letra, numa interpretação que mostrava a dor real daqueles moradores, virou texto arrebatador, declamado pelos atores que, acompanhados das crianças, ocupavam todos os espaços da Vila: pátio, casas, telhados, escadarias, becos e ruelas. Os presentes, moradores e não-moradores, sentiam-se parte da Vila e se emocionaram quando, do telhado do casarão central, do ponto mais alto, viram ser estendida a gigantesca faixa com o dizer: “vende-se”.
Uma vilada cultural
O nome “Vilada” foi uma alusão direta à “Virada Cultural”, megaevento com várias atrações artísticas, realizado anualmente pela Prefeitura de São Paulo. Prefeitura que, para construir um grande centro cultural na Vila Itororó e para a preservação do patrimônio histórico, está desalojando todos os seus habitantes, sem qualquer garantia de novas moradias nem da preservação de sua memória.
O trecho citado, em epígrafe, foi extraído da carta de um desses moradores e traz um pouco da sensação de estarem prestes a perder suas casas, desde que foi concedida a liminar da imissão na posse, no dia 4 de agosto desse ano. Na prática, a medida é uma ordem de despejo das 77 famílias residentes no local. A maioria morando na Vila há cerca de 30 anos. Algumas vivendo lá há mais de 60.
A ação de usucapião especial, impetrada em 2008 visando garantir o direito dos moradores permanecerem no local, ainda não foi concluída, porém o atual estágio da ação de desapropriação – que corre em processos distintos – permite o despejo, mesmo sem estar acertada a indenização.
O projeto de um centro cultural na Vila Itororó é parte da política cultural da prefeitura e governo de São Paulo, baseada na construção de grandes teatros e casas de espetáculo no centro da cidade, e segue também as diretrizes da política urbana dessa gestão. Alinham-se o deslocamento da população carente que reside na região central – a chamada “higienização social” – e a implementação de medidas que valorizem o espaço para que as camadas mais altas da sociedade possam freqüentá-lo, como a construção desses aparelhos culturais.
Modelo dessa política é a chamada Nova Luz. A exemplo do que vem ocorrendo na Vila Itororó, para a construção do maior de teatro de dança do país na região da Luz o Estado de São Paulo desapropriou prédios abandonados e ocupados pela população e uma antiga rodoviária que sediava um comércio popular, e deslocou os moradores de rua do local. Tanto na Vila Itororó quanto na Nova Luz, a finalidade histórica da região e toda a população que ali mora e trabalha não são incorporados nos projetos.
A Vila
A Vila Itororó é uma construção de 1920, na rua Martiniano de Carvalho, entre o Bexiga e a Bela Vista. Construído pelo imigrante português Francisco de Castro, o prédio recebeu esse nome por estar localizado na nascente do antigo Rio Itororó. Sua arquitetura é peculiar, objeto de estudos científicos em arquitetura e urbanismo. Foi erguida com restos de materiais de um antigo teatro que havia sido demolido na região e foi a primeira casa com piscina na cidade de São Paulo, motivo para agregar a comunidade local em seu entorno.
Tombado pelo CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), o conjunto possui 37 casas interligadas por um pátio, com a piscina no centro, num espaço de 4,5 mil metros quadrados.
Foi declarada de utilidade pública em 2006, quando se iniciou o processo de desapropriação em face da Fundação Leonor de Barros Carvalho. A Fundação, que administrava a Vila e cobrava o aluguel dos moradores, abandonou-a completamente desde 1997. A partir de então, coube aos moradores a preservação do local, sem qualquer apoio público.
O aspecto histórico embasa e demanda a ação de preservação do patrimônio cultural constituído pela Vila. Contudo, o projeto de construção do centro cultural, como está posto, exclui a sua população, historicamente ligada à região.
Cultura e moradia: direitos incompatíveis?
Para a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Raquel Rolnik, é necessário que um projeto cultural como esse seja compatível com a questão habitacional. Relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia adequada, ela afirma ser possível a concepção de um projeto que una a finalidade cultural à permanência dos moradores.
“É necessário que se leve em conta os indivíduos que ali residem, vivem e trabalham já há tantos anos. A função moradia é plenamente compatível com a função centro cultural. Ainda mais se a cultura for vista como parte da vida e não apenas como espetáculo”, diz Rolnik.
A opinião é compartilhada pelo professor Celso Fernandes Campilongo, da Faculdade de Direto da USP, que, em artigo publicado no Estado de São Paulo, em de 12 de agosto desse ano, enfatizou: “cultura e moradia não são valores antagônicos”.
No texto, o professor contextualiza a desapropriação para a construção do centro cultural na problemática do centro de São Paulo. Segundo ele, “um dos grandes problemas do centro de São Paulo é justamente não possuir moradores. Fica deserto após o horário comercial. A ideia do centro cultural amplia o erro. Um dos grandes problemas do País é o déficit de oito milhões de moradias. Qual a contribuição da proposta da Prefeitura para a questão? Nenhuma. Por que não combinar as soluções? Basta, simplesmente, defender o patrimônio cultural, reconstruir e equipar a Vila Itororó, como deve ser feito, e, também, oferecer condições de habitabilidade ao conjunto urbano.”.
Um projeto com esse escopo já existe. Foi desenvolvido pelo grupo Vida Associada, composto por alunos da Faculdade de Arquitetura do Mackenzie, e discutido com os moradores e com outros grupos que vem apoiando a Vila Itororó.
Um desses grupos é o Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU-SP), de estudantes da Faculdade de Direito da USP. Paulo Leonardo Martins, integrante do SAJU, afirmou que o projeto alternativo é viável e poderia ser considerado pela prefeitura. “Seria paradigmático. Uma maneira de utilizar a revitalização do centro como forma de valorização do espaço e das pessoas, baseado na integração dos usos habitacional e cultural e na manutenção do vínculo e das relações ali estabelecidas”, disse.
Sem ouvidos nem satisfações
A dificuldade, entretanto, está na falta de diálogo com a prefeitura. Desde o início do processo de desapropriação, em 2006, nunca houve uma audiência para a tentativa de compatibilização dos projetos de modo a manter os moradores no local. Tampouco para uma explicação acerca da finalidade do projeto e da solução para o problema da perda das casas.
Quem explica isso é Antonia Candido, moradora da Vila Itororó há 28 anos, integrante da Associação dos Moradores da Vila Itororó (AMAVILA). “Nunca nos deram satisfação alguma. Tudo o que sabemos é pela imprensa, quando saem notícias sobre a Vila, sobre o bolsa-aluguel de R$ 300,00 ou o prédio não sei aonde que vão construir. Mas, e nós? É nossa cultura, nossa casa, nossa vida. Tem que nos perguntar se estamos de acordo com isso!”.
Antonia afirma que há uma dificuldade ainda maior, pelo fato de a prefeitura tratar a Vila como se fosse uma invasão ou uma ocupação. Todos os moradores da Vila, segundo ela, sempre pagaram aluguel à fundação proprietária, que abandonou a administração e o cuidado com o espaço. Assim como a prefeitura, que desde a declaração de utilidade pública, nunca mais destinou recursos para conservar o local.
Cultura da Vila ou cultura para a Vila?
A professora Raquel Rolnik destaca a origem operária da Vila, que abrigava os trabalhadores do Bexiga, e a importância cultural de essa memória urbana ser preservada. “A Vila Itororó é um dos focos da vida cultural do Bexiga, uma das regiões de maior riqueza cultural de São Paulo. A preservação da memória operária e urbana da Vila é essencial para a própria memória cultural da cidade. Esse viés operário da história e da produção cultural tem que ser considerado”, afirma.
Atualmente, além de objeto de estudos de arquitetura, urbanismo e patrimônio histórico, a Vila Itororó, como explica a moradora Antonia Candido, é espaço de locação para novelas e filmes, para a pesquisa de diversas linguagens artísticas e para apresentação de vários grupos de teatro. Os grupos (Em)pulso Coletivo e Mapa Xilográfico são dois que adotaram a Vila – ou foram adotados por ela.
Ator e diretor do (Em)pulso, Jorge Peloso reafirma a vocação cultural da Vila Itororó. A ação artística de seu grupo, desenvolvida sem apoio financeiro, envolve artes cênicas, música, cenografia, vídeo, arquitetura e antropologia. Mas sua atuação, para além das artes, abrange os demais coletivos que freqüentam o espaço, no intuito de desenvolver, juntamente com os moradores, uma política cultural específica para a Vila, que se contraponha à política implementada pela prefeitura.
“A importância do patrimônio cultural da Vila”, diz Peloso, “está na interação das pessoas com o prédio, no uso cotidiano que se faz dali, na convivência, na memória das famílias e no valor simbólico desse conjunto. Qualquer projeto de cultura para a Vila tem que levar tudo isso em conta”.
De acordo com Raquel, “há um erro estratégico em se construir um centro cultural num lugar que já é um centro cultural. Construir algo ali, eliminando sua população, é desconsiderar toda a diversidade étnico-cultural existente, a convivência cultural estabelecida e a grande produção cultural historicamente realizada nesse importante espaço do Bexiga”.
Paulo Leonardo, do SAJU, garante que a população tem clareza da importância de cada morador para a história da Vila. Com os outros membros do SAJU, ele desenvolveu várias discussões com os moradores sobre temas como educação popular e concepção de cultura. “Os moradores têm firme convicção sobre o papel cultural que exercem e plena consciência que um centro cultural construído ali vai trazer cultura consumível não para eles, mas apenas para quem tem dinheiro para consumir”, resume.
Vida, Vila e Vilada
“Como é possível falar em revitalização sem vida? Se você valoriza o patrimônio físico em detrimento do patrimônio humano, a humanidade não vale nada”. Assim Antonia resumiu a sua opinião sobre a visão de cultura da prefeitura quando olha para a Vila Itororó.
A ideia de mostrar a importância da manutenção da população local para a vida cultural da Vila e do bairro, para além da simples preservação do patrimônio, tem movido a AMAVILA e os diversos grupos, artistas, arquitetos, urbanistas e políticos que apóiam a causa.
Uma das medidas foi um abaixo-assinado dos moradores, solicitando uma audiência pública para a discussão do caso na Câmara Municipal. O pedido foi aceito, resta agora agendar a data.
Outra ação foi a organização da Vilada Cultural, que ocorreu nesse final de semana. Jorge Peloso, um dos organizadores, diz que a idéia não foi apenas chamar a atenção para a Vila, mas “gerar reflexões e discussões acerca do papel da cultura na sociedade e trazer o simbólico para ajudar a entender o espaço e enxergar relações que no cotidiano passam despercebidas”.
Para Paulo Leonardo, que garante a disposição dos moradores em permanecerem na Vila até que se resolva o impasse, disse que “a Vilada foi essencial para demonstrar que na Vila são possíveis diversas formas de uso cultural, sempre aliadas à habitação”.
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Apenas uma errata no texto. Logo no seu início, falei sobre intervenções de integrantes do Teatro da Vertigem. O nome correto do grupo é Coletivo Clandestino, e a intervenção chama-se "Vende-se".
Agradeço à Carol Dias, atriz do Coletivo, pela lembrança. E, mais que isso, por atentar-me ao fato de que o grupo boi batizado ali, naquele dia. Algo que apenas me ratificou a vocação da Vila para despertar ações culturais e simbólicas.
Abs,
Guilherme
Lendo o texto lembrei do exterminio (rsrsr) da Pequena Africa por conta dos projetos de Pereira Passos na decada no centro do Rio, para montar algo parecido com o padrão de Paris. Ate hoje não conseguimos reverter ou obter informações corretas daquele periodo. Comportamento, vertentes musicais, miscigenação, figuras importantes do inicio do seculo, etc. Hoje faz falta e poderia auxiliar na explicação antropologica...
A extinção pura e simples sem criterios de locais de manifestação popular vem se repetindo ao longo de um seculo no Brasil inteiro.
Espero que os avanços tecnologicos ajudem na divulgação para evitar esses desastres sociais.
Pereira Passos ... decada de dez ...