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Vota Cultura


A proposta de estabelecimento de uma dotação orçamentária para a Cultura é um dos temas mais importantes a serem votados ainda este ano pelo Congresso Nacional. Para ser realmente sustentado o desenvolvimento precisa de uma política continuada de cultura. Além da PEC 150/2003, que garante até 2% dos recursos federais, 1,5% dos estaduais e 1% dos municipais para a Cultura, outras propostas de emenda constitucional (PECs) e projetos de lei (PL) estão prontos para entrar na pauta de votação da Câmara e do Senado.

Das PECs e PLs com os quais o Ministério da Cultura (MinC), apoiado por artistas, produtores e gestores culturais, pretende construir uma nova institucionalidade para a cultura brasileira, convém destacar como de grande relevância o Vale-Cultura (democratização do consumo cultural), o Fundo Pró-Leitura (financiamento das ações de promoção do livro e da leitura), a nova Lei Rouanet (financiamento das atividades culturais), o Simples da Cultura (ajuste pertinente da carga tributária às empresas do setor), o Sistema Nacional de Cultura (rede de articulação federal, estadual e municipal, para a gestão e promoção de políticas culturais), o Plano Nacional de Cultura (estabelecimento de políticas públicas de cultura em todo o País) e a PEC 236/2008, que coloca a Cultura na Constituição como um direito social, assim como a Saúde e a Educação.

O único projeto que suja a intenção do MinC na transformação da cultura em uma política de Estado é o que os burocratas chamam de Modernização do Direito Autoral. Não que a Lei 9610/1998 não deva ser adequada aos tempos das práticas digitais, mas pelo fato de o governo federal ter imposto agressivamente a utilização do novo sistema de copyright dos Estados Unidos, o Creative Commons, como padrão brasileiro, tomando o partido das transnacionais hegemônicas do pós-neoliberalismo, em detrimento do nosso patrimônio cultural, tema que tratei neste espaço em cinco artigos (DN, de 4 de dezembro de 2008 a 15 de janeiro de 2009).

Em que pese este equívoco entreguista do Ministério da Cultura, ao forçar a cessão gratuita dos nossos conteúdos para a comercialização por parte das grandes empresas do mercado digital, camuflada de cultura livre, não encaro essas ações como dirigismo estatal. Prefiro chamar de ativismo cultural tudo o que vem sendo feito, e bem feito, pelo MinC. Desta forma, resta-me fazer coro com os que acreditam na sensatez do ministro Juca Ferreira, para que o propósito que levou o ministério a impor o modelo de lincença do Creative Common possa ainda ser atendido por um sistema menos subordinado aos interesses do mercado e mais próximo do respeito que o Brasil vem tecendo com tanta maestria no diálogo global.

Na campanha Vota Cultura, que desde o mês passado procura mobilizar parlamentares na votação das emendas e projetos que elevarão a cultura à condição de posicionamento estratégico, como a agricultura, a indústria, a ciência e a tecnologia, eu faria apenas essa ressalva no projeto de Modernização do Direito Autoral. As demais proposições me parecem encomendas públicas legítimas e bem conduzidas, dignas de um Brasil que caminha para o desenvolvimento sustentado. A cultura, como setor, deve ser tratada mesmo como negócio; mas não podemos esquecer de que há uma parte significativa da cultura que é outra coisa, que é direito humano. Portanto, será lamentável se prosperar essa equivocada decisão oficial de dar aos nossos conteúdos culturais o mesmo destino do pau-brasil, do açúcar e do ouro.

O que está em questão nessa abordagem de desenvolvimento e cultura é a inflexão política que está ocorrendo em um País que tem demonstrado grande habilidade quando pensa por si e se afirma no mundo como autêntico líder continental. A ilustração mais recente de tudo isso acaba de acontecer, com a conquista da atração dos Jogos Olímpicos de 2016 para o Rio de Janeiro, em acirrada disputa com Chicago (EUA), Madri (Espanha) e Tóquio (Japão).

Mudar a nossa relação com a cultura é uma maneira de libertar o sujeito social que nela se movimenta. A cultura, diz o deputado José Fernando Aparecido (PV) em seu relatório, aprovado na Comissão Especial, incorpora elementos simbólico-constitutivos que fundamentam a subjetividade natural de nossas interpretações do mundo, o sentimento de pertencimento a grupos sociais e o reconhecimento do outro como semelhante e diverso ao mesmo tempo em que abre espaços para a interação e cooperação social.

O fortalecimento da cultura traz as relações do mercado para o plano social que o originou, ao mesmo tempo que a recebe no interior da subjetividade que lhe dá razão de ser. O mercado, mesmo tendo grande importância na produção e circulação de bens e serviços culturais, não atende sozinho às condições necessárias para a criação de uma base de acesso da população ao usufruto do patrimônio cultural. Com os recursos almejados na PEC 150, o MinC, as secretarias estaduais e municipais de cultura, passam a ter condições de contribuir para a redução da estandartização das pessoas e das iniquidades regionais, econômicas, sociais e étnicas.

Sem cultura, de pouco valerá a riqueza da biodiversidade dos nossos biomas. A conversão da riqueza biológica da Amazônia, da Caatinga, do Cerrado, da Mata Atlântica e do Pantanal em riqueza econômica passa pela cultura, pois somente nos dando valor saberemos dar valor ao que temos. Uma parte da economia é produto, mas o produto da outra parte é a própria vida, a maravilha de viver. Sem cultura, bichos, plantas e bactérias não passam de mercadorias a serem exploradas à exaustão da fertilidade.

É pela cultura, como garantia de aceitabilidade do desenvolvimento, que podemos dar respostas verdadeiramente humanas aos problemas ambientais, demográficos, democráticos, pandêmicos, energéticos e de segurança alimentar. O ponto crucial do desenvolvimento não é a educação, mas a cultura. Por não percebermos isso, a sociedade brasileira vem sedimentando uma incrível democracia empírica, capaz de driblar arranjos e mais arranjos político-econômicos, mas ainda não conta, salvo isoladas exceções, com o suporte de uma teoria não-colonial, que esteja à altura da sua consistência.

Já são consumidas mais de duas décadas desde que o Brasil passou a ter um Ministério da Cultura. Apesar de à época ter sido contra a separação das pastas da cultura e da educação sempre vi na criação do MinC uma oportunidade para mudarmos a perspectiva dos nosso desenvolvimento. O Brasil é hoje uma sociedade relativamente avançada em termos de transmissão de dados e de informação e em diversos padrões tecnológicos de comunicação. Sabemos facilmente nos movimentar na dinâmica das redes, mas não sabemos muito bem para quê, devido ao descaso com a cultura.

Avançamos em nossa sabedoria miscigenada e parte significativa das nossas lideranças políticas, econômicas e intelectuais estão tendo dificuldade de acompanhar os passos da sociedade, de forma a transformar essa pujança em desenvolvimento: as pessoas querem direitos e a política oferece privilégios; as pessoas querem cidadania e as empresas tergiversam com a retórica da responsabilidade social; as pessoas querem autores que as inspirem e os lobistas do mercado de conteúdos dizem que o autor morreu; as pessoas querem comunhão e os especialistas estimulam ressentimentos e promovem divisões; as pessoas querem ser fraternas e solidárias, mas são sufocadas por toda sorte de papel modelo a pregar a rivalidade e a competição.

Flávio Paiva

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