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A arte e o mecenato brasileiro


Badah escreveu e publicou no Cultura e Mercado, em parceria com Leonardo Brant, artigo intitulado Arte Patrocinada. O autor levanta mais de 20 questões – entre o texto original e um de seus comentários/resposta – que merecem, cada uma, uma profunda reflexão. Razão pela qual não pretenderei responder nada.

Apenas acrescentarei um pouco de lenha à fogueira, pensando todas as questões do ponto de vista do atual principal mecanismo de financiamento à cultura do nosso país: o patrocínio com incentivo fiscal – mecenato.

Questões:

O que acontece quando a arte se constrói a partir dos estímulos e intenções do patrocinador?
Acompanho os patrocínios culturais e com isso afirmo que esta é a situação menos comum. Ocorre mais nos casos de Fundações ou ações culturais com finalidade social, onde a empresa define diretamente o tipo e formato de arte que deseja desenvolver, investe com pleno domínio da situação, conduzindo mesmo o que vai ser produzido. E todos aplaudem, porque ainda que pese a interferência, parece mais interessante do que deixar crianças e jovens (maioria dos casos de investimento) nas ruas, sem uma atividade. Ninguém reflete muito sobre este direcionamento. Mas no patrocínio a obras de artistas, principalmente os mais renomados, a influência das empresas privadas é menor na produção das obras, nas temáticas abordadas. A questão se dá mais numa forma de censura, como no exemplo citado no texto do Badah, de 2006. O que é mais comum é a dificuldade de se obter um patrocínio em função de um trabalho com temática polêmica ou com materiais e formas inovadores ou provocativos demais. Existe sim uma arte que é produzida para o patrocinador, claro. Empresas solicitam produtos específicos, muitas vezes, para divulgar o seu produto de comercialização. Neste caso temos um caso de arte a serviço da propaganda mesmo. Uma obra produzida por encomenda, que se presta a um fim específico: é arte? Muitos vão dizer que não, que é propaganda, publicidade. Eu defendo que pode ser arte sim. Porque um tema sugerido por uma empresa, ainda que com a finalidade de divulgar seus produtos ou serviços, não pode virar uma obra de arte? Pode sim e com muita qualidade, até.  Depende do artista, de até aonde vai o estímulo do patrocinador e seu nível de interferência na produção da obra. A forma como a empresa vai se apropriar da obra e divulgá-la é outra questão importante a ser considerada. Mas a capacidade de refletir sobre a obra me parece o problema maior. O seu consumo como mais um produto é que pode transformá-la em simples objeto…

Qual o limite de subserviência e de liberdade da arte patrocinada?
Existe um jogo de interesses no patrocínio cultural via mecenato. Em geral, artistas e produtores procuram empresas que tenham afinidades com seus “produtos culturais” (e vice-versa, embora o primeiro movimento seja proporcionalmente muito maior). Acredito em jogos com regras claras e transparentes. Não gosto de jogos com interferências de “cartolas”, com cartas marcadas, especialmente por baixo da mesa ou nas mangas. Se a empresa impõe limites claros, de forma transparente (ou seja, assumida publicamente) sobre o que deseja ou não patrocinar e o artista tem uma obra que se encaixa dentro destes limites, estamos jogando uma partida bacana, concordam? O problema é quando artistas se deixam corromper para encaixar suas obras, adaptando-as, para caber nos limites do investimento privado. Ou quando a empresa induz, age de forma velada, conduzindo o artista ao que interessa ao seu negócio, deturpando o sentido original de um trabalho artístico.

Os dois jogos existem e, independente de julgamentos, cada parte tem que saber qual jogo quer jogar. Sempre se pode abandonar a partida no meio, é bom lembrar. Nesta questão, acho que a força está nas mãos dos artistas e produtores. Porém, será que se não abrirem mão de suas propostas e ideias em função de um financiamento, conseguirão expor e divulgar seus trabalhos? E adianta divulgar um trabalho alterado, modificado? Será que a interferência das empresas sempre é negativa? Não seria possível a condução de um patrocínio tornar uma obra ainda melhor ou simplesmente contribuir com a obra?

As leis de incentivo colocam a arte aos pés das corporações?
Esta é uma questão muito debatida, seja em redes que refletem o financiamento à cultura, como o Cultura e Mercado, ou mesmo no Ministério da Cultura, que inclusive alega este problema para querer modificar as leis, mas estranhamente cria um projeto de lei absolutamente desencontrado, que pode piorar mais ainda a questão. O fato é que parece existir um consenso de que as leis de incentivo tornaram a arte subordinada às corporações no Brasil.

Retomando o texto do Badah, que traz exemplos de obras de artes visuais proibidas de serem exibidas por incomodarem seus patrocinadores pelos temas abordados, cito o próprio autor para respondê-lo: “Os dois exemplos (…) expõem uma ferida aberta numa sociedade que financia a arte com dinheiro público por decisão das grandes corporações.” Concordo com o autor. E como podemos resolver isto? A resposta pode ser lugar-comum, mas me parece a única* possível: com um Estado que assuma a sua parte. A partir do momento em que o investimento privado deixe de ser a maior forma de investimento na cultura do país, o que as corporações definirem não representará risco.
* = em tempo: gostaria muito de ser confrontada aqui com outras opções!

O mais grave nisso tudo é que as corporações estão realizando seus investimentos com um recurso que é público! O Estado está deixando a critério do setor privado, que possui interesses específicos, a seleção do que deve ou não receber financiamento com dinheiro que é de todos nós.

Apenas uma observação, finalizando o tema das leis: eu creio que o maior mérito das leis de incentivo à cultura no Brasil será a formação do investimento privado em cultura. Acredito que as corporações entenderam a lição, perceberam a importância e força que a cultura pode ter para seus negócios e vejo nisso um processo educativo mesmo, onde por mais que as leis mudem ou deixem de existir, o investimento não cessará de todo. Pode ser reduzido, mas não acredito na sua extinção. Mas isso é tema para um outro debate…

Estaria a arte subordinada às grandes corporações?
A arte não está subordinada às grandes corporações, no sentido de sua criação. Não acredito que artistas deixem de criar porque não têm patrocínio. Ouso dizer que conheço alguns que pensam que deixaram de criar porque não têm recursos e entoam o discurso do “preciso fazer outra coisa para sobreviver”, mas continuam produzindo arte e cultura, às vezes até sem se dar conta de o estarem fazendo. Pode ser uma visão romântica de que a arte brota e existe independente de qualquer coisa, mas eu acredito nela. Então, não acredito que a arte deixe de ser produzida ou corra riscos, quando falamos da existência da arte em si. Mas no âmbito de sua fruição e difusão, no Brasil, atualmente, minha resposta seria SIM. De que outra forma se consegue fazer uma obra de arte chegar ao público (ou o público chegar a ela), circular pelo país, estar nos meios de comunicação? Reconheço a existência de iniciativas que tentam e conseguem quebrar esta regra (pra citar um exemplo bem básico, a fórmula da “auto-pirataria” que a banda paraense Calypso criou) mas vejo a maior parte da produção artística dependente do apoio das grandes corporações para conseguir seu lugar ao sol. E não entendo ‘lugar ao sol’ como espaço na mídia (ou enriquecimento de artistas) , mas sim, como difusão; alcance público, que é outra coisa bem diferente – e que me parece muito mais importante.

Artistas e curadores têm sua liberdade cerceada por esse sistema?
Sim e não, voltamos à questão do jogo de interesses. Talvez mais não do que sim se pensarmos do ponto de vista da palavra liberdade, de que artistas e curadores estão livres para entrar neste sistema ou não. Por outro lado, podemos dizer que sim, se pensarmos que o artista e o curador que não se adaptam a certas condições dificilmente conseguem financiamento. Penso que é mais difícil se manter fora do jogo; não impossível. Então eu tento concluir que o sistema é injusto, impõe condições, mas artistas e curadores são livres para participar deles ou não.

Existe saída para a situação?
Sim. A questão mais difícil de responder é COMO. Uau! Se eu respondesse esta perguntava ficava rica.

Acho que algumas coisas podem ser propostas com relativa facilidade de execução:

1. o Estado deve investir de fato em cultura, especialmente fomentando iniciativas inovadoras, novos artistas e todas as manifestações culturais cujo apoio privado seja menos provável;

2. as leis de incentivo precisam de uma revisão séria, não aquela atualmente proposta pelo Ministério, mas uma revisão que faça o investimento privado ser uma opção legítima para determinados produtores e artistas e que os demais tenham opções dentro do financiamento estatal (ou seja, esta segunda opção está intrinsecamente ligada à primeira);

3. a reflexão e o debate sobre o assunto devem ser tornados cada vez mais amplos a fim que possa haver uma maior capacidade crítica e participação do público. A sociedade brasileira não participa porque não se reconhece produtora e consumidora de cultura. Cultura e arte, ainda são, para a maioria dos brasileiros, assuntos secundários e supérfluos. A sociedade brasileira não se sente responsável pela sua cultura.

O patrocínio cultural continua sendo a grande saída para o desenvolvimento das expressões artísticas?
Não vejo o patrocínio cultural como “a grande saída para o desenvolvimento de expressões artísticas”. Acho que o investimento privado se dá muito mais no âmbito de expressões artísticas já consagradas, daí ser pouco expressivo no desenvolvimento de novas formas de expressão.

Podemos pensar numa relação de independência e não de conveniência entre as partes?
Acho improvável. A base da relação de investimento através do patrocínio é a relação de interesses, ou seja, a conveniência é o que dá forma ao patrocínio cultural, por mais “bem intencionado”, correto, transparente que seja.

Qual o papel do Poder Público nesse meio?
Deveria ser o de maior investidor, difusor, estimulador da cultura e nunca o de mediador de ações privadas de investimento.

A arte patrocinada estará sempre a mercê do interesse de seus intermediadores (mercado ou estado)?
Penso que um trabalho só será patrocinado se satisfizer o interesse – qualquer que seja – do patrocinador. Em relação ao Estado, penso que deveria ser o inverso: qualquer produto do fazer artístico deveria ter acesso a algum tipo de financiamento que permitisse a sua continuidade, aprofundamento, difusão, compartilhamento… enfim, o Estado deveria poder alcançar toda e qualquer arte. Mas não tenho a ilusão de que isso seria possível. É impossível dar cobertor a todos. Sempre vai haver alguma coisa de fora, acho que é parte também de um processo natural. Mas há que se ampliar o investimento estatal na arte: como fazê-lo de forma desinteressada, ampla?

Como a sociedade pode participar da atribuição de valor à obra de arte? Ou será que a única forma de participar desse processo é cada cidadão do mundo financiar os artistas diretamente? Se eu não tenho uma empresa, ou cargo político, significa que eu jamais poderei participar desse processo? Não tenho dúvida de que a obra de Márcia X é de gosto duvidoso (…). Mas este valor não deveria ser atribuído por toda a sociedade, ou por sua maioria?

A sociedade é quem atribui valor às obras de arte. Elas persistem ou sucumbem porque o público não assiste a uma peça, porque compra um CD, ou até mesmo porque uma empresa boicota uma obra numa exposição. Empresas são partes legítimas da nossa sociedade. Ouso dizer que todos participamos do processo, direta ou indiretamente. Poucos conscientemente. Mas o processo de atribuição de valor – entendo que a pergunta trata do valor não financeiro da obra – passa pela vida de todos, desde o voto até a opção escolhida para o lazer no final de semana. Se a pergunta é se a obra da Marcia deixaria de ser “julgada” por ter sido cortada, sabemos que acabou ficando mais conhecida pelo fato, que acabou chamando mais atenção para a obra. Mas se o corte tivesse sido feito antes da exposição e isso tivesse ficado nos bastidores: neste caso, o julgamento de empresa, curadores e artista não estariam refletindo o da sociedade? Não seria um valor atribuído por uma fatia da sociedade que está ali para esta função? Toda curadoria é uma atribuição de valores às obras de arte? Os curadores representam a sociedade ou apenas interesses comerciais, empresariais ou artísticos?

E ainda que tivéssemos mecanismos para realizar tal feito: Arte de gosto duvidoso não tem o direito de ser patrocinada?
Sim! Tem sim, afinal, quem define o que é bom ou ruim em arte? Gosto se discute, mas não se impõe. Ou pode a força de um patrocínio ser uma forma de imposição de gosto através da mídia e de outros mecanismos que influenciem o “gosto” coletivo?

A obra de arte deve sempre provocar reações alegres e porque não dizer “consumíveis” para ter o direito de ser financiada?
Não! E muitas expressões do fazer artístico que tratam de questões negativas, tristes, conseguem financiamento. Ex: filmes sobre a ditadura; encenações teatrais dramáticas, mesmo que de ficção; músicas de dor de cotovelo…

Até que ponto a obra de arte pode receber o mesmo tratamento de qualquer outro produto cultural?
Estamos separando artes visuais das demais manifestações artísticas? Música, teatro, literatura não são obras de arte? Não são todos obras de arte e, ao mesmo tempo, pela lógica do financiamento à cultura via mecenato, todos produtos culturais? Existe tratamento diferente para obras de artes visuais e demais produtos culturais? Acho que não entendi a pergunta direito.

Como vêem, acabei fazendo mais perguntas do que respondendo às questões levantadas pelo Badah. Minhas respostas são impressões e observações de alguém que aprendeu a trabalhar a cultura dentro da lógica do mecenato – comecei junto com o nascimento da Lei Sarney – mas sempre procurou manter uma reflexão crítica acerca deste mercado. E teve a sorte de poder ver a questão dos dois lados, conhecendo bem os problemas e necessidades de cada parte: como produtora cultural independente, sem “quem indica”, e como gestora de patrocínios em duas das maiores empresas (e patrocinadoras) brasileiras. Mas que, ainda assim, nem que pudesse desenvolver uma tese para cada pergunta, poderia resolver estas questões, tão importantes para a arte e o mercado cultural brasileiro e abertas aqui à contribuição de todos.

Daniele Torres

Gestora cultural, captadora de recursos, museóloga e sócia-diretora do Cultura e Mercado e da Companhia da Cultura.

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  • Gostei muito das resposta da produtora Dani Torres, mostra que é na democracia que a cultura sai mais vitoriosa.
    Tudo é uma questão de bom senso.
    Qual o patrocinador não iria querer associar sua marca ao jogador Garrincha, por exemplo? Fooi um vitorioso, um herói nacional, o maior jogador de todos os tempos. No entanto era um alcoolatra, tinha inumeras mulheres e filhos espalhados pelo mundo e morreu como um indigente. Ou seja seria um péssimo exemplo pras futuras gerações.
    Hoje li uma materia no Jornal O Globo falando sobre a dificuldade que o cineasta Jose Henrique Fonseca (ex- COnspiração Filmes) teve para conseguir que um patrocinador financiasse seu filme "Heleno" sobre a vida de outro craque brasileiro dos gramados Heleno de Freitas. Nenhuma empresa queria vincular sua marca com uma historia de um homem que teve Sífilis e morreu louco internado em um hospício. Mesmo assim o Zé Henrique, meu amigo, conseguiu ir em frente e a duras penas está finalizando seu filme.
    O que quero dizer com isso é que toda arte tem seu publico, assim como todo produto tem seu consumidor. É uma questão de bom senso agregar valores uma à outra.
    Sou um artista brasileiro de idéias e pretendo continuar atuando nesta área incansavelmente, pois acredito que nosso país tem sede de cultura e, em qualquer lugarejo vai haver quem admire a minha arte.
    Se o dono da loja de pão de queijo faz o pão de queijo mais gostoso da cidade e vende muito, porque ele iria se associar a um artista que fala de peixes e parafusos? Será que ele quer confundir seu publico? Essa liberdade de expressão ele deixa para um artista. O comerciante precisa ser racional, o artista não. Mas se quiser o artista que faz arte com peixes e parafusos pode sim falar de pão de queijo pra se juntar ao dono da loja de pão de queijo, claro!!!
    Se o comerciante soubesse fazer arte não contrataria uma agencia de publicidade pra produzir uma campanha, ele mesmo o faria, não é mesmo?
    Portanto o artista livre pode sim adaptar sua arte ao seu patrocinador com muito bom gosto, sem perder suas caracteristicas, afinal foi por elas que ele foi escolhido para o trabalho!
    Viva o bom senso!
    Cultura pra todos e liberdade democrática de criação!!
    Luiz Nicolau
    http://www.brogdonicola.blogspot.com

  • Olá Dani,
    Muito interessante o texto, principalmente agora que me aventuro pelas mídias sociais fazendo relacionamentos de valor. Gostaria de saber como se dá essa relação entre o artista e o patrocinador em outros países. Para inovar é necessário saber o que já foi feito. Inovações radicais são raras, então tratemos das incrementais, melhorando experiências e leis de incentivo à cultura.
    Jaime Lerner, que revolucionou o trânsito urbano e a mobilidade das pessoas em Curitiba, falou algo mais ou menos asssim: "Não somos um bando de gênios. Apenas rompemos as barreiras da inércia". O que ele fez: enviou uma equipe para pesquisar as melhores soluções em diferentes cidades do mundo e as adaptou para Curitiba.
    Aqui em Brasília, o curador do Museu do Automóvel, o jornalista Roberto Nasser ofereceu uma jardineira para fazer o circuito arquitetônico e civil de Brasília. Mas, Brasília é um caso à parte, onde várias coisas, entre elas a circulação turística, é dominada por grandes grupos econômicos. Sei disso porque a faculdade em que eu trabalhava se ofereceu como patrocinadora do projeto.
    Como atualmente trabalho no Centro Interdisciplinar de Estudos em Transporte da UnB vou pesquisar os projetos relacionados a isso, mas o farei como cidadão.
    Em Ubatuba uma jardineira de 1931 percorre as ruas da cidade com bandas.
    Desconfio apenas que a jardineira de BSB foi vendida!

  • Muito bom Dani! Me alegro em saber que pôde aproveitar o trigo daquele monte de troca de farpas que infelizmente ocorreu nos comentários do outro texto. Acho que temos muito o que aprender com sua perspectiva. Uma leitura mais delicada do mecenato, como a que você deu e os exemplos de superação do conflito em questão que o Luiz Nicolau acima nos trouxe, podem indicar caminhos e saídas para uma arte patrocinada viável e livre.

    Recentemente assisti "O Cheiro do Ralo", obra audiovisual que compartilha destes elementos "malditos", mas que está aí, foi financiada com a criatividade dos produtores. Acho que tem um estudo de caso aqui no CeM mesmo.

    Agora, você trouxe algumas questões interessantes e eu vou tentar pincelar minha opinião aqui, em comentários separados, para não sobrecarregar.

  • Assim como as artes plásticas, música, teatro e literatura são linguagens artísticas que recebem tratamento especial sim, quando seu valor deixa de ser o de um simples produto cultural e atinge o patamar de patrimônio cultural, logo de interesse público e portanto não pode ficar sujeito as intempéries do mercado e suas demandas de consumo. Orquestra Sinfônica por exemplo, é financiada em boa parte diretamente pelo Estado. E podemos citar a arquitetura também e todos os projetos de restauração e preservação, bibliotecas públicas para literatura e editais públicos para o teatro, que de maneira mais ou menos direta passam a receber este tratamento especial. Bom isso é óbvio, mas eu cito para podermos recair sobre a questão principal: a atribuição do valor - estou emprestando esta idéia do professor Bonfitto que trouxe ela ao CeMcast e me contaminou profundamente.

    Existem valores diferentes atribuídos a Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz em Belém, por exemplo, e a banda Calypso que você citou. Essa diferença faz com que uma seja financiada pelo Estado e a outra tenha que se virar. Por um lado, a música instrumental clássica tem pouca demanda de mercado, mas em compensação uma imensa herança cultural. Por outro lado, o forró brega tem uma imensa demanda de mercado. Tem uma herança cultural também, mais mestiça talvez, menos intercontinental, mas definitivamente invisível ao patrocinador Estado.

    O valor atribuído ao Calypso vem de uma grande parcela da população, é expresso pelo desejo de compra e comoção nacional. O valor atribuído a Orquestra vem dos representantes dessa população, portanto legítimo dentro de um sistema democrático - por mais que esse valor atribuído pelas secretarias de cultura possa ser incompreensível para a maior parte da população. Se fosse compreensível, a maior parte da população pagaria pela Orquestra, compraria o ingresso e as gravações, reduzindo a necessidade de intervenção estatal. Ou o sistema democrático ou o educacional estão com problemas.

    A questão é que o valor atribuído pelo Estado, seus aparelhos culturais e curadores, devidamente representados num sistema democrático, determinam a legitimação do patrimônio cultural, da obra de arte, daquilo que, independente da demanda do mercado, deve ser preservado por nos caracterizar como sociedade e indivíduos. Já o valor atribuído pela grande demanda de mercado legitima apenas o produto, o desejo, aquilo que caracteriza uma necessidade momentânea, programada para ser substituída por outra na sequência, dentro da lógica de produzir e consumir infinitamente para desenvolver a economia.

    Calypso então não é arte? Claro que pode ser - na relação que cada um ou grupo de indivíduos pode estabelecer com essa produção e na intenção dos autores. Infelizmente não existem mecanismos institucionais de legitimação dessa arte, mas nós sabemos que ela existe.

    Agora, se não há demanda de mercado para um produto, eu não posso dizer que esse produto foi "censurado". Mas, se um aparelho cultural como um museu retira uma obra de uma exposição depois dela ter sido curada, é o mesmo que dizer: isto não é arte. Note que, no caso do CCBB esta não foi uma decisão do curador, que por sua vez foi escolhido por um representante estatal, devidamente eleito num sistema democrático. Foi uma pressão de grupos que exercem poder financeiro e não foram eleitos por ninguém.

    Esta é uma mensagem forte. Para mim, diz que há problema sério nos processos de legitimação da arte e que o sistema democrático, neste caso, está ferido e precisa ser curado.

  • Bom dia, Badah. Acho apenas que para o seu comentário se ajuste perfeitamente ao texto da Dani Torres que você aponte para o fato de que os grupos que exercem poder financeiro censuram uma obra como a da Márcia X não porque ela ameace, de longe, o seu poder financeiro, mas apenas porque parte da população - os grupos religiosos, católicos e principalmente evangélicos - dotados de um ´grande número de seguidores e com poder financeiro nada desprezível - fazem pressão para que a obra seja censurada. Quanto à idéia de que se a exposição estivesse sendo custeada pelo Estado a obra não sofreria censura,ela é completamente errada. Digo isso porque já fiz parte de inúmeras seleções públicas de projetos culturais, ligadas ao Estado de São Paulo e a várias prefeituras e posso dizer com tranquilidade que eu tive que brigar muito para impedir a censura de membros dessas comissões sobre as obras selecionadas. Algumas vezes ganhei e outras perdi, chegando até a ser demitida da Prefeitura de São Paulo por conta de uma dessas brigas, na qual um membro de comissáo queria impedir o financiamento de um roteiro cinematográfico por "pornografia" (segundo ele). Então, a questão dos valores ditos "morais" se sobrepõe à questão econômica e não é igual: os ricos nao são obrigatoriamente pudicos nem os pobres são licenciosos. Temos aí dois assuntos que não se sobrepoem claramente.

  • Mastruobono, o maior colecionador de Volpi e que conviveu com o grande artista diz que o estímulo da sua produção era estritamente de mercado, ele produzia para vender. Por muito tempo se dedicou a miniaturas , a esboços pequenos que eram objeto de apresentação. Aprovados eram reproduzidos no tamanho do freguês. Depois, esses mesmos esboços passaram a valer milhões. Picasso dizia que pintava por dinheiro. Gerchman me disse que a arte que eles faziam nos 60 era manifestação, não havia mercado, ninguém pagava nada por aquilo, e assim tudo começou. Deve haver, nunca vi artista que subestimou seu valor de mercado, ou sua remuneração. Antonio Cicero me disse que não compõe mais canções, pois não ganha nada com isso.
    Gerald Thomas ao final da apresentação de uma Ópera encomendada pelo governo carioca da ocasião, em pleno Teatro Municipal, no palco, arriou as calças e mostrou a bunda para a platéia. A Öpera foi cancelada e ele foi execrado. Foi censurado? A arte foi impedida? Há casos, e há casos...o acidente não demonstra necessariamente que há um mal a ser curado, o acidente é um acidente, os episódios pinçados não constituem questões estruturais.
    Por outro lado, nem é o Estado, nem seus representantes, nem mesmo o mercado quem legitima uma Obra de Arte...é a História.

  • Me parece, Badah, que a questão central do seu artigo, que volta a retomar em seu comentário, é a democracia. Nem só no aspecto da censura ocorrida, mas no sentido de uma nova questão que pode ser formulada: seria o sistema de incentivo fiscal à cultura brasileiro democrático? Podemos pensar só nos aspectos de acesso e seleção e já ficar com dúvidas.

    Penso que o patrocínio privado pode não ser o sistema mais democrático para se financiar cultura. Mas será que o Estado brasileiro o seria mais? Existe também um enorme perigo de se centralizar tudo nas mãos do Estado. Basta lembrar que Estados totalitários e autoritários sempre julgavam saber o que era melhor para o seu povo (ou para seus interesses) e, com isso, apontavam caminhos únicos. Quantas obras de arte foram jogadas em porões ou mesmo destruídas na antiga URSS?

    Luiz Nicolau defendeu aqui mesmo o bom senso, o equilíbrio. Este é o desafio em tudo – mesmo em nossas vidas pessoais, não é isso que, afinal, buscamos?

    Mas com certeza, o gesto de tirar uma obra de exposição porque ela incomoda determinados grupos, não é democrático.

    Mas Badah, em relação à questão das Orquestras, por exemplo, posso te garantir que elas não são financiadas pelo poder público. Existe investimento, mas os custos de manutenção são caríssimos e o governo não cobre. Em geral, o governo paga os salários – baixos – dos músicos, mas as orquestras dependem de patrocínio privado (de empresas e pessoas físicas, com as famosas assinaturas de temporadas) para fazerem turnês pelo Brasil - de que adiantaria uma Orquestra Brasileira que não sai do Rio de Janeiro? -, para comprarem instrumentos e roupas e até para terem local para ensaiar! Acompanhei isso de perto (viajei alguns estados brasileiros acompanhando a OSB), daí eu poder te dizer que, mesmo quando um produto cultural “atinge o patamar de patrimônio cultural” o nosso governo deixa muito a desejar. Poderia citar outros exemplos que corroboram com o que digo nas áreas de patrimônio e restauração mas isso estenderia o texto desnecessariamente.

    O que eu quero te alertar é que a Orquestra do Theatro da Paz tem que se virar tanto quanto uma banda Calypso. Talvez a primeira, por ter um caráter institucional forte, se sinta menos à vontade para buscar soluções mais criativas e inovadoras do que a outra, mais livre, constituída por um grupo menor e mais coeso, com um líder que tem total autonomia para definir caminhos, pois é o dono da banda.

    Gostaria aqui de ressaltar que tenho o maior respeito pelo trabalho da banda Calypso. Morei no Pará por dois anos e conheço o poder que aquele estilo musical possui junto ao povo paraense. O que eles produzem é legítimo, tem tudo a ver com a cultura local (e por isso mesmo não são os únicos a fazerem muito sucesso com o estilo; existem várias bandas e “subestilos” do tecnobrega ou tecnomelody). Em termos de gosto pessoal confesso que não aprecio. (É certo que gosto não se discute?) Mas como produtora admiro imensamente o fato de terem inserido o Pará na cena musical brasileira (em plena crise da indústria fonográfica eles encontraram uma fórmula própria para baterem recordes de venda de discos) e mais: acho que a Calypso é responsável por fazer a mídia voltar a atenção para outras possibilidades musicais. Agora, fica todo mundo tentando encontrar alguma banda que possa ser uma surpresa como foi a Calypso. O que não é ruim do ponto de vista de que outros estilos e musicalidades brasileiras estão sendo ouvidas com menos preconceito.

    Não culpo o Estado por não absorver a Calypso. É um fenômeno muito novo, rápido demais para o ritmo estatal. Acho que em nenhum lugar do mundo seria possível absorver um grupo assim. Claro, deveria ser responsabilidade do Estado que bandas novas tivessem lugar para ensaiar, se apresentar, infra estrutura para se gerir, produzir, tocar pelo país... Ok, podemos pensar por este ponto de vista e voltar a bola para o Estado novamente.

    Mas eu concordo com você que o sistema democrático e educacional do nosso país tenha problemas. Muitos!

    Quanto à atribuição de valores que instituem a nossa representação cultural, eu acho que os dois movimentos são complementares: tanto o Estado reconhece alguns produtos e os elege, como o mercado o faz e eu creio que ambos se contaminam. Tanto o mercado influencia o Estado, quanto o Estado influencia o mercado. Não seria esta uma “eleição” de representatividade legítima da nossa sociedade? Afinal, quem mantém o mercado? E o Estado?

    Acho forte demais dizer que tirar a obra de arte da exposição seja deixar de reconhecê-la como arte. Acho que o impacto do moralismo hipócrita da nossa sociedade pesou mais naquele caso, a despeito da questão artística. Mas pode ser que você tenha razão.

    Ao Niro, respondo que existe um livro interessante sobre a questão dos patrocínios no exterior, que acabei de ler recentemente, embora não seja novo (se não me engano foi lançado em 2006). É o livro “Privatização da Cultura”, de Chin Tao Wu, da Ed. Sesc/SP. Ela analisa o patrocínio privado à cultura nos EUA e Inglaterra, nas décadas de 80 e 90 de forma bastante crítica. Sites sobre patrocínios, captação de recursos, costumam ter bibliografias interessantes sobre o tema também. Fundraising, sponsorship podem ser palavras-chave para pesquisas em inglês.

    Acho interessante a proposta do Niro de pesquisarmos mais para encontrarmos um modelo que possa ser adaptado à realidade brasileira. Fomos muito influenciados pelo modelo francês de política cultural. Atualmente acho que somos um híbrido, com boa influência americana, com adaptações meio distorcidas... Mas talvez o que falte mesmo seja pensarmos soluções nossas, nos aprofundarmos nos nossos problemas e criarmos nossa forma própria de gerir a cultura, aliando Estado, mercado, produtores, artistas, empresas, terceiro setor, público e toda a sociedade.

    Aí é que está nosso calcanhar de Aquiles. Penso que dentre todas as questões abordadas aqui, nosso maior desafio é fazer com que a sociedade se mobilize e efetivamente participe do debate sobre a cultura brasileira. Legitimidade, democracia, representação, são questões essenciais que deveriam ser do interesse de todos, mas enquanto a própria população não se importar, continuaremos tendo distorções, seja qual for o sistema.

    E sim, Badah, eu acredito ser viável termos patrocínios livres, porém nunca desinteressados. Volto a lembrar que esta é uma relação de troca.

    Abs! Dani

  • Dani,

    Gostei demais do seu texto. Que bom que teremos outros para desfrutar. Você tem razão sobre o patrocinio de orquestras. Foi um belo trabalho. Parabéns

  • Oi Dani!
    Que maravilha reconhecer que a "mascote" da nossa turma de Museologia tenha crescido tanto. Que autonomia de pensamento1 Parabéns!
    Obrigada por me fazer ver que as questões que acreditava serem minhas sejam tão bem partilhadas e com especial propriedade.

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