Na ópera pop Jesus Christ Superstar, que agitou o sohwbusiness na década de 70, lembro-me quando Maria Madalena tenta no fim do dia consolar um Jesus estafado, prostrado diante de tanta miséria a seu redor. Ela então canta para ele alguns versos muito simples, embalados numa melodia suave, que traduzidos diriam mais ou menos assim: “Feche os olhos, tenta não se preocupar com nada nem com ninguém, esqueça os problemas que os afligem e te deixam triste, feche os olhos e deixe o mundo girar sem você ao menos esta noite”.
Vivesse nos dias de hoje, Maria Madalena se espantaria com a facilidade com que fechamos nossos olhos e, tranqüilamente, dormimos, não dando a mínima para o que acontece ao nosso lado, cara. Pouco importa, por exemplo, se o mundo está perdendo a guerra contra a fome e se vamos chegando a 1 bilhão de subnutridos, num planeta faminto. Não sei dizer quando essa indiferença começou a se manifestar, mas sei que a gente não era assim.
Em verdade, hoje ninguém mais consegue viver sem uma boa dose de indiferença da pura e um certo cinismo embutido na personalidade, sustentando uma pretensa normalidade do dia-a-dia. Antes de dizer que constituímos hoje uma classe de cínicos, diria, no entanto, que somos a classe dos sonâmbulos. O que parecer ser um pouco pior.
No mundo contemporâneo o ato de dormir não é mais apenas um estado fisiológico, uma necessidade do corpo. Passou a ser um estado político, uma necessidade social. Uma questão de opção a que somos forçados a aderir em nome da sustentabilidade moral. Dormir é a nossa maneira de nos relacionar com o mundo. Ou melhor, é a nossa maneira de “encarar” a realidade, tentando filtrar o que estamos vendo. E parece que agimos assim com razão, pois haveria outra forma?
Ao menor sinal de que o alarme da vida real vai soar, nós simplesmente desligamos o despertador e continuamos na sonolência possível, nesta irresistível letargia. Quando a nossa consciência quer se manifestar, perguntamos a ela: mas de que outro jeito podemos conviver com os milhares de brasileiros socialmente debilitados, os doentes sem atendimento, os “esmolers” por toda parte, os desabrigados, os famintos? Como enfrentar os miseráveis à porta de nossa casa, à porta do carro, à porta do nosso trabalho? Isso sem falar da violência assassina, da injustiça banalizada, dos desrespeitos flagrantes aos direitos humanos e à própria vida, das catástrofes ambientais causadas por descasos humanos grosseiros. A lista é longa. E o ser humano vai ficando a cada dia menor diante dos seus problemas cada vez maiores.
Muitos hão de convir, com todas as letras, que estamos rapidamente nos transformando em dormentes ambulantes, uns irresponsáveis sociais que dão as costas a um mínimo de solidariedade e a outros sentimentos agregadores que, ainda que de forma inconsciente, desde os primórdios acompanharam a nossa evolução social, se é que podemos chamar a isso de evolução.
Estamos tão anestesiados que não estendemos a mão ao próximo mesmo ele passando necessidade extrema. Preferimos não acreditar no que estamos vendo. Estamos tão cínicos que fingimos não estar ali vendo a cena, por maior que seja a pena alheia e por mais que esteja à frente dos nosso olhos.
Aonde isso nos levará, meus caros? Certamente à segregação da raça. À uma espécie de arrogância biológica. À definitiva e insana separação entre os bons, os habilitados, isto é, os ricos; e os tidos como relapsos, inconseqüentes e perigosos, eles mesmos em que você está pensando, os pobres, que certamente não estarão lendo este artigo. Pois estarão à cata de comida, de abrigo e de outras necessidades mínimas.
A mídia, que poderia e deveria servir como instrumento de alerta, passou a ser um meio sistemático de sedação e indução ao sono, estado de não vigilância, sonambulismo, graças à predominância dos discursos políticos vazios e às modernas técnicas de marketing..
A televisão nacional é um sedativo com todas as suas notícias do “mondo cane” que antes foram tidas como impossíveis e que hoje nos são apresentadas como espetáculos, o que começa a nos causar certo tédio, preocupando os diretores de audiência com as próximas e mais fortes atrações que deverão entreter a platéia humana.
Se a gente não era assim, talvez tudo tenha começado com o desenvolvimento do marketing na aldeia global descoberta por Mac Luhan.
Diante das novas leis de mercado os pobres, que sempre existiram, passaram a ser vistos como uma classe perigosa, uma ameaça a quem tem muito e que a gente deve evitar. Mas alto lá, não é só porque existe pobre que existe violência. Essa relação é falsa., fácil e obscurece os raciocínios honestos que tentam se localizar nessas tramas contemporâneas.
Bem sabem os deuses marquetológicos da abusada sociedade de consumo que a sonolência é o melhor estado para tocar sua boiada. Como assistimos a tudo com a mente adormecida, desprevenida, eles aproveitam para nos empurrar a felicidade instantânea que chegou agora, o produto que faltava, a nova forma de vida. Vendem-nos sonhos cada vez mais baratos e pelos quais pagamos cada vez mais caro, colocando-nos cada vez mais distantes do âmago humanitário. Só não oferecem nada para os pobres, esses duplamente miseráveis, qualquer ilusão que seja, pois eles não têm moeda.
E por que acordar se a gente pode ter a despensa da semana? Por que mudar de vida agora que o papel higiênico vem com essências e florzinhas estampadas e podemos comprar aquele carro ou decorar a casa exatamente como na revista?
Se alguém tentar sair deste padrão “bom sense” certamente vai cair no ridículo. Será tido como louco, desqualificado. Temos de manter a imagem. Por isso não fazemos nada. Nós, da classe dos sonâmbulos, temos a firme convicção de que o mundo só pode existir se for desta maneira.
E quem ousa nos acordar? Quem arrisca dizer que não devemos aceitar esta versão da realidade? Onde estão os dirigentes de alma grande? Onde estão os artistas, os poetas, os nossos pequenos heróis locais? Hoje, somente os cínicos respondem presente e pedem seu voto. Nunca a arte foi tão necessária, pois ela será a única capaz de descongelar a hipnose dessa serpente.
Uni-vos, sonâmbulos do mundo inteiro! É este o grito que parece ecoar na nossa dormência insana. O perigo, mesmo, é que sempre será mais fácil desligar o despertador. Mas sabemos que só os mortos dormem bem. Trimmmmmmm!
PX Silveira é cineasta documentarista, dirige a Fundação Nacional de Arte em São Paulo, órgão do Ministério da Cultura. E-mail: rasilveira@hotmail.com
Px Silveira